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domingo, 14 de abril de 2013

Jorge de Sena e o haikai

Os haikais de JS

X
     Jorge de Sena sem dúvida conheceu bem o haikai clássico. Introduziu 20 deles, de Bashô, no seu Poesia de 26 séculos. Por isso, a questão que se coloca ao ler os poemas de sua autoria por ele denominados hai-kais não é essa, e sim o que o poeta desejou fazer ou conseguiu fazer ao convocar o nome e o espírito da forma.
     A questão não tem resposta simples. Tecnicamente, poucos desses poemas, se lidos isoladamente do conjunto e da denominação, seriam considerados haikais. Talvez um, talvez nenhum. Não só por não guardarem a estrutura do terceto, com a qual se popularizou o haikai no Ocidente, mas principalmente porque a quase todos falta a objetividade despojada que identificamos como essencial para a definição do gênero.
     Ao vincular tais textos ao gênero haikai, então, o poeta buscava outra coisa. De imediato, é evidente que a denominação promove uma disposição de leitura. O leitor se prepara para um tipo de poesia, propõe-se uma atitude interpretativa.  Essa disposição e atitude é que serão contrariadas ou confirmadas ao longo da leitura. Mais contrariadas do que confirmadas, nesse caso.
     O efeito de sentido é complexo. Trata-se de um poeta reconhecido, de um estudioso muito conceituado e de um evidente conhecedor da forma e da tradição do haikai. Mas os textos que produz e insere, por um gesto soberano, nesse gênero, não parecem pertencer a ele.
     A forte personalidade do autor determina o afastamento, marcando presença não apenas nas referências ao “eu”, mas também na escolha da forma do dístico e do tom aforismático.
     Para um leitor pouco familiarizado com o haikai japonês, a forma do dístico surpreende mais. Entretanto, quem já o leu no original sabe que a estrutura básica do haikai é a justaposição de dois segmentos frasais. A medida nada tem a ver com a utilizada por Sena, cujo dístico se compõe de dois versos de aproximadamente a mesma extensão. Mas em alguns do poeta português, a justaposição faz com que o texto mimetize a estrutura profunda do haikai.
     Dos poemas do autor, o que mais pareceria, pela estrutura, um haikai é “para encontrar-se o acaso / ai quanto caminhar!”. Mas esse é justamente o que menos se sustentaria como haicai, por ser abstrato, não trazer nenhuma indicação de lugar ou de tempo, nenhum kigo.
     Já o que me parece ter mais espírito de haikai é este “O mar se alonga ao longe tão sereno. No temporal, há pouco, era mais curto”. Porque aqui se tem uma observação muito precisa, muito objetiva. O horizonte se encolhe no temporal. Qualquer outro sentido simbólico pode construir-se, mas a base objetiva é firme e indiscutível.
     Jorge de Sena poderia ter escrito pelo menos dois desses poemas na forma tradicional do haikai. Mas por alguma razão o quis fazer.
     Como exercício, para mostrar as diferenças e as aproximações, faço-o eu aqui, sem pretender evidentemente corrigir, mas dialogar divertidamente com o poeta.
     No primeiro, bastaria suprimir a notação subjetiva e teríamos um haikai, facilmente reconhecível como tal:

Tem chovido tanto…
Na noite do quintal,
O sapo canta.

No terceiro, seria o caso de eliminar a torção da frase, em nome da naturalidade da expressão:

O temporal passou.
O mar sereno
Parece mais longo.

Assim teríamos haikais. Mas esses textos, eu creio (embora conheça pouco a obra poética de Sena), dificilmente poderiam ser assinados por ele.
X                   
                
HAI-KAIS
Tem chovido bastante: insuportável tempo.
Na noite do quintal, o sapo canta.
*
Conversam como ao longe
não comigo.
Se comigo falavam
Cansar-me-iam.
*
Por nuvens as montanhas não têm picos.
Mas, negras e escalvadas, cabeleira branca.
*
O mar se alonga ao longe tão sereno.
no temporal, há pouco, era mais curto
*
O ano inteiro esta árvore
larga folhas mortas.
*
Roupa que se abre e cai:
surpresa; ou muito ou pouco.
*
No escuro cresce o amor
que só nocturno se ama.
*
Para encontrar-se o acaso
ai quanto caminhar!
Sentado, escreve e lembra
imagens que não viu.

HAI-KAI
Um pássaro canta: não tem voz
que só cantar dos outros ele imita.
11-12/1/1974
In: 40 Anos de Servidão. Lisboa, Ed. 70, 1989, p.140-1 eVisão Perpétua, Lisboa, Ed. 70, 1989, p. 192





Publicado origalmente em Ler Jorge de Sena
http://lerjorgedesena.wordpress.com/2013/04/09/jorge-de-sena-e-os-haikais-2/

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Entrevista - Balacobaco

Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão nosso habitante para o Balacobaco (2002)

Paulo Franchetti nasceu em Matão (SP), em agosto de 1954. Professor de Teoria da Literatura e Literatura Portuguesa na Universidade Estadual de Campinas, publicou três livros de poesia (Várias Vozes, 1975, Indigo Blues, 1984, e Hacais, 1994) e vários trabalhos de crítica e história literária, entre os quais se destacam Alguns aspectos da Teoria da Poesia Concreta (1989), Haikai - Antologia e História (1990), Correspondência de Eça de Queirós e Oliveira Martins (1994), a edição-crítica da Clepsydra, de Camilo Pessanha (1994) e a edição comentada de O Primo Basílio, de Eça de Queirós (1998). Durante dois anos, dirigiu a lista de discussão Haikai-L, dedicada à prática do haikai.

Como foi o seu percurso poético até encontrar o haicai?
Eu cheguei ao haikai por dois caminhos. Por um lado, pelos textos de Haroldo de Campos. Fiz uma tese de mestrado sobre a teoria da Poesia Concreta, que defendi em 1982. E como Haroldo de Campos escrevesse sobre haikai, valorizando a etimologia dos kanjis, e Augusto de Campos várias vezes abordasse o sistema de escrita da China e do Japão, interessou-me aprender a língua japonesa (o que fiz, por alguns anos), e ver como funcionava o kanji numa língua que o empregava como sistema de escrita. Por outro lado, nos estudos de literatura e cultura portuguesa, deparei pela mesma época com os livros de Wenceslau de Moraes, que retratou a vida japonesa no início deste século e também traduziu haikais. Interessado pelo assunto, e tentando ter do haikai uma visão mais fundamentada, acabei chegando à obra fundamental sobre o assunto no Ocidente: os livros de R. H. Blyth. Isso foi no começo dos anos 80, e a partir daí passei a estudar mais sistematicamente o haikai e a sua história no Japão e entre nós. Foi apenas no lançamento do livro "Haikai -- antologia e história", no VI Encontro Nacional de Haikai, realizado em 1989, que comecei a fazer haikais e a participar de reuniões de um grupo nipo- brasileiro, presidido por Hidekazu Masuda Goga na Aliança Cultural Brasil-Japão.
Caetano Veloso, numa letra de música, diz que: "está provado que só é possível filosofar em alemão". Plagiando o cantor, só é possível fazer o haicai em japonês?
Nem a blague de Caetano é verdadeira, nem a idéia de que só é possível fazer haikai em japonês. Da mesma forma que é possível fazer ikebana no Brasil, é possível fazer haikai em português. O haikai, tal como o entendo, é mais uma atividade e uma atitude frente à linguagem, do que uma forma poética.
O que um haicai exige do haicaista? É necessária concisão, concentração?
Exige um distanciamento da nossa tradição poética. Pelo menos de uma certa tradição, que identifica a poesia com um conjunto de práticas lingüísticas. Haikai é um texto curto, sem metáforas, sem rima, sem preocupação de brilho lingüístico. É basicamente isto: um texto breve, despojado, modesto, em que uma sensação, uma percepção de algum fenômeno natural é colocada em palavras de modo muito objetivo. Concisão, assim, é uma palavra de sentido muito específico: significa recusa tanto ao derramamento sentimental, quanto ao descritivismo detalhista. Diz-se usualmente que o haikai é sintético, mas isso não é bem verdade. Em haikai não temos síntese no sentido de "dizer o máximo com o mínimo". O haikai é, antes, a arte de, com o mínimo, dizer apenas o suficiente para o desenho, em traços rápidos, de uma cena ou situação em que se surpreenda algum índice de alteração sazonal.
Qual a diferença da linguagem do haicai para a linguagem poética. É possível um haicai sem poesia? e um haicai que não é poema?

Colocada nestes termos a pergunta, a melhor resposta me parece ser:haikai não é poesia. É uma formulação que parece paradoxal, mas que faz todo o sentido, quando se pensa nas expectativas que temos frente a um texto que denominamos "poesia" ou "poema" e a um texto que denominamos "haikai". Se pensamos o haikai como "poema" ou "forma poética", ele tem pouco a nos oferecer: é mais uma forma exótica, como o pantum malaio que fez sucesso entre os parnasianos, ou uma forma fixa datada e hoje pouco empregada, como o rondó, por exemplo. O que ele tem a nos oferecer de mais interessante é uma outra concepção de emprego da linguagem. Nos meios haikaísticos mais interessantes, o haikai é uma forma de viver a alteridade, de nos afastarmos momentaneamente da nossa própria tradição. É um jeito de estar no mundo e na linguagem; e é também uma prática coletiva, uma atividade que se faz em conjunto, dentro de um certo estado de espírito e com o objetivo de interação com outros praticantes.

Quais são os principais haicaistas brasileiros? Quais são os mestres nipônicos?
Os mestres nipônicos mais conhecidos são Bashô, Buson, Issa e Shiki. Bashô, que viveu no século XVII, é o iniciador do que chamamos "o caminho do haikai". Shiki, que viveu já nos tempos modernos, é considerado o restaurador do haikai, o homem que recuperou o prestígio da atividade num Japão fascinado pela literatura ocidental. No Brasil, creio que os haikaístas mais interessantes são os que permanecem ligados à prática coletiva do haikai e que estão mais perto da tradição japonesa. Dentre esses, creio que os melhores são Teruko Oda e Edson Kenji Iura.
Como foi estar à frente da lista de discussão Haikai-1?
Foi uma experiência muito gratificante, durante um certo tempo. A lista foi criada para ser uma oficina on-line e funcionou assim durante uns dois anos. Depois, virou um lugar de disputa entre tendências concorrentes. De um lado, os que têm do haikai uma visão como a que expus acima. De outro, os que vêem o haikai como uma manifestação do "zen" ou como uma mera forma literária, que pela sua brevidade exige uma linguagem trocadilhesca ou piadista. O haikai "zenista" ou piadista me parece uma prática cansativa e rebaixada. Creio que a lista é importante e deve continuar funcionando. Para mim, entretanto, perdeu boa parte do interesse que tinha, pois ao invés de uma oficina dedica a uma prática específica e à construção de um caminho específico de haikai, passou a ser um lugar de publicação mais ou menos indiscrimida, como acontece nas listas dedicadas à prática da poesia de modo geral.
O que falta para o haicai ser mais difundido no Brasil? O que falta para ser difundido além dos limites da colônia nipônica?
Acho que o haikai é muito difundido no Brasil. Na colônia japonesa ele ainda é muito praticado em japonês. O Grêmio Haicai Ipê, a que me referi acima, foi o primeiro esforço de juntar as duas tradições: a do haikai produzido no Brasil em japonês e a do haikai aqui produzido em português.
Como a tradição do haicai pode estar a serviço de uma renovação da linguagem do poema aqui no Brasil?
De várias formas, às vezes muito diferentes. Sem dúvida, o haikai e o ideograma desempenharam um papel importante na formulação e na prática da Poesia Concreta. Pouco depois, Paulo Leminski escreveu haikais, traduziu haikais e incorporou elementos do haikai à sua própria poética. A objetividade do haikai, sua modéstia e despojamento são elementos que encontramos em lugares muito prestigiados atualmente na poesia brasileira, como, por exemplo, em alguma poesia de Manoel de Barros. Mas creio que o haikai, por ser uma prática que se aprende no convívio com outros praticantes, por ser objeto de muitas oficinas em vários lugares do país, tem um papel importante na criação de novas formas de usar a linguagem com objetivos artísticos, e que as conseqüências disso na criação poética brasileira só vão ser sentidas e melhor avaliadas daqui a alguns anos.
Quais os principais trabalhos sobre o haicai publicados no Brasil?
Sem falsa modéstia, creio que o mais completo trabalho publicado em português é o que saiu pela Editora da Unicamp em 1989: Haikai -- Antologia e história. Mas há outros textos importantíssimos disponíveis: os ensaios de Octávio Paz, publicados em "Signos em rotação" e o livro de Carlos Verçosa, "Oku, viajando com Bashô".
O tema da sua tese de mestrado foi a poesia concreta. O que poderia nos adiantar? Quais os caminhos pelos quais a sua tese navegou? Quais > conclusões chegou? Poesia concreta é design? Ainda existe hoje? Foi substituída pela poesia visual?
Trabalhei apenas com a teoria da Poesia Concreta. Meu interesse, naquele momento, era observar a argumentação que desenvolveram os seus principais formuladores, os valores que defendiam, as questões que privilegiavam no debate. Isto é: tentei pensar a Poesia Concreta como movimento cultural e apreender a sua articulação com o momento histórico brasileiro, buscando entender o que tornou tão persuasivas as suas propostas. Creio que Poesia Concreta é uma expressão que designa, mais do que um tipo de produção poética ou um certo número de procedimentos lingüísticos, um conjunto de proposições culturais. Nesse sentido, a Poesia Concreta existe ainda hoje, isto é: é um vetor importante da nossa cultura. Mas se quisermos utilizar a expressão para designar uma expressão homogênea, um tipo de texto, teremos dificuldades, pois a produção de um Augusto de Campos ou de qualquer um dos outros dois é muito variada e mesmo o verso, ou a forma de figuração analógica que foram abolidos programaticamente em 1956 ou pouco depois, reaparecem em momentos vários da sua prática poética.
Como estão os estudos sobre a poesia portuguesa simbolista?
Minha tese de doutorado foi a edição crítica dos versos de Camilo Pessanha. Recentemente, defendi, como tese de livre- docência um trabalho de análise de poemas desse autor, que deverá ser, em breve, publicado pela Editora da USP. Reúno ali tudo o que há vários anos tenho pensado sobre a poética simbolista, e com isso sinto estar fechando um estudo iniciado há mais de dez anos. No momento, meus interesses estão concentrados na elaboração de uma nova descrição da poesia brasileira produzida entre o Romantismo e o Modernismo: a de extração simbolista, principalmente, mas não só.
É notória a sua condição de grande estudioso do haicai. Também se sabe de todo o tempo que dedica ao estudo do mesmo. Por que o haicai ainda não foi alvo de seu estudo na universidade?
Tenho feito alguns estudos acadêmicos sobre o haikai no Brasil. Mas como sei pouco japonês, não me aventuro a estudar o haikai no original, sem a ajuda da minha colega Elza Taeko Doi. Tenho pensado o haikai, assim, basicamente como uma imagem produzida pelo Ocidente. Meus estudos sobre o haikai no Japão sempre foram apenas uma tentativa de encontrar parâmetros que me permitissem entender as apropriações que dele vimos fazendo no Ocidente, principalmente a partir das primeiras décadas deste século.
Tem alguma epígrafe que o acompanhe?
Sim. Uma frase de Bashô: "o que diz respeito ao pinheiro, aprenda do pinheiro; o que diz respeito ao bambu, aprenda do bambu".
Qual o papel do escritor na sociedade?
Mallarmé dizia que era dar um sentido mais puro às palavras da tribo. Pound, que era manter a linguagem eficiente. Acho que é um pouco por aí.
(2002)

publicada originalmente em:

http://www.gargantadaserpente.com/entrevista/paulofranchetti.shtml


terça-feira, 10 de julho de 2012

Haicai - entrevista a Álvaro Kassab


Haicai – entrevista a Álvaro Kassab


[Jornal da Unicamp - Edição 399 - 16 a 22 de junho de 2008]

O professor e escritor Paulo Franchetti, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), acaba de lançar Oeste (Atelie), reunião de haicais traduzidos para o japonês por Masuda Goga Hidekazu. O interesse do docente pelo gênero foi despertado há quase 30 anos, quando o escritor desenvolveu pesquisa acerca da poesia concreta. Na entrevista que segue, Franchetti fala sobre sua nova obra e analisa o papel do haicai na literatura brasileira contemporânea, sem perder de vista sua dimensão transnacional.
-
Jornal da Unicamp – O haicai é um tema recorrente no conjunto de sua obra e em suas áreas de interesse, com ênfase nos aspectos estéticos e históricos. Agora, com a publicação de Oeste, o senhor deixa o ensaio de lado e parte para a prática, digamos, poética, já presente de certa maneira nos contos de O Sangue dos Dias Transparentes, nos quais a concisão era uma das características mais acentuadas. Como foi construído esse processo?
Paulo Franchetti – Tenho trabalhado com o haicai desde o final dos anos de 1970. Minha dissertação de mestrado foi sobre a teoria da Poesia Concreta, para a qual a escrita chinesa (e japonesa) era uma referência importante. Para entender melhor as reflexões de Haroldo e Augusto de Campos, via Ezra Pound, sobre a escrita então chamada de “ideogramática”, dediquei-me ao estudo da língua japonesa. E, na seqüência, sob a supervisão e com a parceria da minha colega do IEL, professora Elza Doi, à leitura e tradução de haicais.
Foram vários anos de trabalho, de que resultou, entre outros textos, o livro Haikai – antologia e história, publicado pela Editora da Unicamp, em 1990. Aos poucos comecei a escrever haicai, depois de assistir aos concursos nacionais que se realizavam no Centro Cultural São Paulo e de me aproximar de um grupo de praticantes da arte que se reuniam, em São Paulo, numa sala da Aliança Cultural Brasil-Japão. Creio que foi o estímulo dessa convivência que me levou a escrever haicais de modo regular. E essa é uma característica do haicai que me agrada muito: o seu caráter de prática coletiva.
Nisso, o haicai se parece com outras artes tradicionais japonesas: o ikebana, o origami, o chá, o sumiê – é simultaneamente uma forma de sociabilidade e um exercício prático de domínio de uma técnica artesanal. Ao mesmo tempo, como as demais artes, é um “caminho”, um “dô”, isto é: uma forma de ver, numa dada prática, um modelo do mundo e, complementarmente, um jeito de olhar para as coisas derivado diretamente do exercício de uma dada arte.
Daí que seja difícil, no caso do haicai e demais artes tradicionais, estudá-las sem as praticar, pois a prática é o lugar onde se pode avaliar o progresso da aprendizagem. Penso que esses anos de estudo e exercício do haicai, de convívio com os haicaístas e, principalmente, de leitura sistemática de textos clássicos do budismo deixaram marcas. Uma delas, eu creio, é o gosto da concisão que você percebe nos contos que publiquei naquele livro.
JU – Os haicais de Oeste foram traduzidos para o japonês, fato raro (inédito?) não só no gênero mas também no mercado editorial. Como se deu essa transposição? O fato de a edição ser bilíngüe trouxe novos elementos à obra?
Franchetti – Talvez existam outros livros de haicai, escritos por brasileiros, com versão para o japonês, embora eu não me recorde de ter visto nenhum. No caso de Oeste, o dado relevante é o tradutor. Os haicais foram vertidos para o japonês por Hidekazu Masuda Goga, que foi um dos fundadores da associação a que me referi há pouco, o Grêmio Haicai Ipê.
JU – Masuda Goga é considerado um dos mestres do gênero no país. Qual foi sua importância no campo teórico e na difusão do haicai no Brasil?
Franchetti – Goga nasceu no Japão em 1911 e veio para o Brasil em 1929. Como todos os imigrantes japoneses, trabalhou primeiro na lavoura. Depois estudou e dedicou-se a outras atividades, entre as quais o jornalismo. Discípulo de Nempuku Sato, que foi o grande mestre do haicai na colônia, Goga dedicou sua vida ao estudo e difusão do haicai, tanto em japonês quanto em português, sendo autor de pelo menos dois livros essenciais: uma história do haicai no Brasil e um dicionário de palavras que podem ser usadas para marcar a sucessão das estações neste país.
Ao lado disso, escreveu sempre, tanto em japonês como em português, haicais que serviram de inspiração para todos os que se interessam por esse gênero de poesia. Sua presença nos encontros de haicai e nas reuniões do Grêmio era fonte de inspiração e estímulo para todos os que o conheceram e tiveram a alegria de com ele conviver.
No caso de Oeste, sinto que as traduções têm um interesse que em muito extrapola o dos originais. Ou seja, não tenho dúvida de que o maior interesse do livro, para quem lê japonês, reside na qualidade da tradução. Para valorizar o trabalho do Goga, o editor do livro deu um tratamento especial ao texto japonês, que foi belamente caligrafado e impresso sobre fundo colorido. De modo que o livro termina por ser, além de um agradecimento, uma homenagem ao velho mestre e à sua generosidade em se ocupar, nos seus últimos anos de vida, da tradução desses poemas.
JU – Num dos primeiros registros sobre haicai feito no Brasil, Afrânio Peixoto escreveu em 1919 que o gênero era “ainda mais simples que nossa trova popular.” O senhor concorda com a afirmação? Em sua opinião, há algum gênero no país que se assemelhe ao haicai e consiga ter, ao mesmo tempo, a sofisticação deste e apelo popular?
Franchetti – A declaração de Peixoto é ao mesmo tempo falsa e verdadeira. É verdadeira se pensarmos no haicai como forma. Por esse aspecto, ele é ainda mais simples do que a quadra, tendo apenas três versos, sem rima. Ou se pensarmos que a forma básica de estruturação do haicai é, como a da maior parte das quadras, a justaposição de duas notações (uma íntima e outra objetiva), deixando a relação entre elas por conta do leitor.
Mas a declaração é falsa se entendermos que o haicai é tão simples quanto a quadra, do ponto de vista da sua composição ou da sua compreensão. Basta ler um conjunto de haicais, ainda que escritos por brasileiros, americanos ou franceses, e um conjunto de trovas, para que as diferenças saltem aos olhos. O haicai recusa o dito espirituoso, a graça evidente, a expressão sentimental direta. Sua beleza provém da contenção, do que é apenas insinuado, da economia de recursos e da modéstia dos objetivos.
Uma forma de resumir o haicai é dizer que ele é a arte de, com o mínimo, obter o suficiente. Uma arte minimalista, portanto. Daí vem a sua característica mais notável, que é a aliança de simplicidade de forma com sutileza espiritual. E o efeito mais impressionante do haicai é que uma anotação rápida e lacunar de uma cena qualquer produz muitas vezes, no leitor, uma impressão poderosa, que fica vibrando na memória, sem muita explicação. Nada disso se encontra na trova, de modo geral.
Penso que é o fato de não haver, na nossa tradição, um gênero de poesia que junte simplicidade formal, sofisticação e apelo popular que se deve justamente a grande voga do haicai no Brasil.
JU – De Guilherme de Almeida a Paulo Leminski, passando pelos concretistas [irmãos Campos, Pedro Xisto e Pignatari], o haicai foi celebrado e teve entusiastas e praticantes na maioria das correntes literárias ao longo dos últimos 80 anos no Brasil. A que o senhor atribui esse interesse?

Franchetti – O haicai foi descoberto pelo Ocidente no começo do século XX. Na França, foi uma verdadeira febre. Seu grande divulgador foi Paul-Louis Couchoud (1879-1959), escritor hoje esquecido, mas nome-chave no orientalismo do começo do século XX. Couchoud esteve no Japão de setembro de 1903 a maio de 1904 e tomou contato com a literatura japonesa por meio dos trabalhos de europeus ali radicados. Em decorrência dessas viagens e leituras, em 1905 Couchoud produziu com dois amigos seu primeiro conjunto de poemas inspirados no haicai: 72 tercetos sem métrica nem rima, que buscavam antes reproduzir o espírito do que a forma desse tipo de poesia japonesa.
A partir daí, tem-se uma intensa produção de haicais, em grande parte estimuladas por outro livro de Couchoud: uma apresentação do haicai japonês, com prefácio de Anatole France. Pela mesma época, Ezra Pound publica as notas e reflexões de Ernest Fenollosa, sinólogo de língua inglesa, nas quais a escrita ideogramática é proposta como um modelo explicativo da poesia chinesa (e japonesa). Desse momento em diante, o haicai passa a ser uma referência básica também para a poesia moderna de língua inglesa. E a partir dos anos de 1950, quando a contracultura busca, no Oriente, formas alternativas de religiosidade, conduta e expressão artística, o traço simultaneamente moderno e marginal do haicai faz dele um objeto de grande interesse.
De modo que, nos nomes que você citou, encontramos representantes das várias linhagens de interesse no haicai. Guilherme de Almeida provém, em certo sentido, de Couchoud, os concretos de Pound e Leminski de uma convergência da tradição radicada em Pound com a contracultura zen dos anos 60. O interesse pelo haicai é, assim, resultado de vários fatores, que aparecem, em cada caso, em combinação variável.
JU – Autores como Leminski e Millôr Fernandes recorrem ao tom declaradamente anedótico e irônico na feitura de haicais. A “matriz” japonesa comporta – ou admite – esse tipo de abordagem?
Franchetti – Existe um tipo de poesia japonesa que se parece mais com o que Millôr Fernandes chama de hai-kai: o senryu, poema que tem a mesma forma do haicai, mas espírito mais jocoso e mesmo sarcástico. Já o tipo de haicai do Leminski se afasta menos da tradição do haicai que, como todas, tem muitas modalizações.
JU – É possível afirmar que já existe um haicai genuinamente brasileiro? Se sim, quais são os aspectos que o diferenciam dos produzidos no Japão e em outros países?
Franchetti – Essa é uma questão difícil, a do haicai brasileiro. Mas talvez seja possível dizer que existe um haicai internacional, isto é, ocidental. De fato, uma pesquisa na internet mostra a enorme quantidade de revistas e livros de haicai em várias línguas, principalmente a inglesa. E há publicações no Japão inteiramente dedicadas ao haicai internacional.
Sem dúvida, escrever haicai não é a mesma coisa para um japonês e para um ocidental. Como não é a mesma coisa escrever um soneto. As formas são carregadas de sentido histórico.
O que é curioso, porém, é que a leitura dos haicais produzidos hoje no Japão por pessoas jovens nos mostra que eles se parecem muito com os haicais produzidos em outras partes do mundo. O que me dá a impressão de que o haicai é hoje basicamente uma forma e uma arte transnacional.
JU – Como o senhor definiria um bom haicai?
Franchetti – Penso que um bom haicai é aquele que tem a modéstia e o despojamento da linguagem como valores centrais, aquele que não se satisfaz na banal exibição de virtuosidade técnica ou capacidade de associação brilhante. Ou seja, penso que um bom haicai é um texto que se limita voluntariamente a apenas situar uma dada percepção sensória, objetiva, num campo maior de referências (objetivas ou subjetivas) onde ela ganhe sentido e componha um quadro único; um texto que traz para o leitor a presentificação de um instante como algo inacabado, aberto, um esboço ou um diagrama do choque entre a sensação fugaz e irrepetível e seu longo ou profundo ecoar nas diversas cordas da sensibilidade e da memória.
JU – Na sua opinião, a literatura japonesa é devidamente valorizada – e difundida – no Brasil?
Franchetti – Creio que tem sido bastante valorizada e difundida, principalmente nos últimos anos, quando têm aparecido traduções de vários autores importantes, realizadas a partir dos textos japoneses e não de outras traduções.
JU – E o haicai, é devidamente contemplado pelos departamentos de teoria literária das nossas universidades?
Franchetti – Não creio que seja muito contemplado. Nem o haicai, nem outras formas de poesia.

sábado, 30 de junho de 2012

O haicai de David Rodrigues


PREFÁCIO
a Respirar: 101 haiku, de David Rodrigues


Já se disse que o haiku é a arte de dizer o máximo com o mínimo. Entretanto, a verdade é mais sutil: haiku é a arte de, com o mínimo, obter apenas o suficiente.
O poeta de haiku não busca obter um poema que se pareça com uma fórmula algébrica, um enigma ou uma síntese fulgurante de idéias. Pelo contrário, sua arte consiste em colocar na frente dos olhos ou entre as mãos do leitor, vivo e palpitante, um momento único, concreto, de plenitude sensória e emotiva. Para fazê-lo, sabe que o caminho mais seguro é renunciar ao brilho das palavras e à exibição de perícia técnica.
Na sua brevidade, o haiku apenas diz o que precisa ser dito, traz para o leitor uma pequena constelação de palavras comuns, centrada numa sensação. Abre para a sua imaginação um registro objetivo e freqüentemente lacunar, que se esgota em si mesmo: uma folha que cai aos seus pés faz o poeta erguer os olhos para o outono, as nuvens de primavera imprimem manchas de sombra sobre os campos verdes, a sombra do avião atravessa o campo. Não é preciso explicar nada. Basta imaginar, recompor a cena, a circunstância em que se produziu o registro. Por isso já se disse do haiku (e do seu irmão mais velho, o tanka): são três linhas em busca de um contexto.
A leitura e a compreensão do haiku, assim, mantêm-se fácil e voluntariamente no nível mais simples e raso. Na verdade, se a leitura não puder manter-se no nível da denotatividade, do registro pontual e verdadeiro, não se pode falar com propriedade em haiku. No entanto, isso não impede que algo se mova ali. Algo mais amplo, pungente ou  risível, doce ou amargo. Não impede que a fragilidade humana, a piedade, a epifania sensória, o desamparo, o êxtase perante a beleza do mundo, a esperança, a resignação e tantos outros estados de espírito ou potências morais apareçam, em relance, acima, abaixo, ou dançando entre as palavras simples. É essa oscilação entre o solo banal de um registro direto e lacunar e a pressão que sobre esse registro exerce a energia da vida do corpo e do espírito que dá o sabor especial do haiku.
Bashô definiu a arte do haiku como um modo de estar no mundo. Quando esse modo é obtido, o sentimento interior se funde com as coisas exteriores e o poema brota como um registro direto da realidade pontual. Aí está o nervo e a especificidade do haiku: se a fusão for perfeita, isto é, se o exercício espiritual resultou, o sentimento interior e o objeto apreendido pela percepção formam uma unidade. Tomar consciência de um é trazer junto o outro, ainda que não haja necessidade de interpretar um pelo outro, de traduzir um no outro. Quando se consegue esse estado de graça, em que o ‘eu’ desaparece, ou pelo menos sai do primeiro plano, e a emoção se cristaliza à volta das palavras e ali fica vibrando, à espera do leitor que possa abrir-se em disponibilidade para recebê-la, brilha, sem alarde, a luz própria e a verdade do haiku.
Por isso mesmo, Bashô advertia: “se o espírito, pelo contrário, não se depurou, a visão própria entra em ação e a pessoa tende a buscar a perfeição no arranjo das palavras. E isso constitui apenas a vulgaridade de um espírito que não se esforça para encontrar a verdade.” Entre aquele objetivo e este perigo situa-se a dificuldade e a alegria do haiku. Evitar o segundo para atingir o primeiro, não só na poesia, mas também no exercício da vida diária, é o que se denomina “o caminho do haiku”.

David Rodrigues o tem buscado. Este é o segundo marco, o segundo padrão que ele planta nesta nova terra da poesia breve à maneira japonesa. É certo que, para continuar no registro metafórico, este poeta ensaia o equilíbrio entre o outro e o próprio, entre o estranhamento e o compromisso, entre a praia conhecida e a ilha desejada. Neste livro, a oscilação se insinua inclusive na divisão das partes. Uma busca a alteridade maior propiciada pelo exercício do espírito do haiku, que exige a observação objetiva e despida de atavios; outra intenta o aproveitamento solto da forma da composição, deixando maior campo à reflexividade, apostando na comparação e na metáfora. A primeira é o momento do haiku; a segunda é a hora do epigrama lírico em forma de haiku, que ostenta uma beleza própria e só conserva do haiku, quando muito, a maneira elegante e concisa do corte. Uma terceira esboça o equilíbrio possível entre os pólos – e constitui a nota diferencial e o sentido deste livro.
Não vou referir aqui os momentos altos do volume. São vários e o leitor os descobrirá com facilidade, de acordo com a sua inclinação. E ademais seria faltar ao desígnio que presidiu à sua elaboração separar de um lado os haiku que me parecem especialmente bem realizados como haiku, daqueles poemas que me soam fortes em seu registro específico, ainda que outro. O que o poeta buscou aqui foi um tempero delicado e eclético, em que a poesia é a base e a emotividade amorosa a variação. Que seja, pois, assim a leitura. E que o prefácio apenas saúde o novo livro, o poeta e o leitor que, por certo, fará no livro o seu próprio caminho e dele sairá, como o poeta da luz do sol da primavera, uma pessoa diferente da que nele entrou.

                                                                                  Campinas, outubro de 2008


Ref: David Rodrigues. Respirar: 101 haiku. Vila Nova de Gaia: Corpos Editora, 2008.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Guilherme de Almeida e a história do haicai no Brasil


Guilherme de Almeida e a história do haicai no Brasil

[publicado como prefácio a: Guilherme de Almeida, Haicais completos. São Paulo: Aliança Cultural Brasil-Japão, 1996 - republicado no livro Estudos de literatura brasileira e portuguesa]

Entre os patronos do haicai no Brasil, Afrânio Peixoto divide com Guilherme de Almeida as honras maiores de introdutor da forma no país. De fato, se foi Peixoto um dos primeiros cultores dos tercetos mais ou menos aproximados do haiku japonês, foi apenas com Guilherme de Almeida que um determinado tipo de poema chamado de haicai atingiu um público mais amplo, levado na esteira do grande prestígio popular de que desfrutava o poeta campineiro nas décadas de 30 e 40.
Nesse sentido, de vulgarizador de um nome exótico e de praticante de poesia em tercetos de dezessete sílabas, Guilherme de Almeida – como diz H. Masuda Goga – "estimulou o abrasileiramento da mais concisa poesia de origem japonesa". Mas será verdade que, num nível mais profundo, a sua prática de poesia em tercetos teria estimulado o abrasileiramento do haicai? A resposta a essa pergunta dependerá, é claro, do que entendermos por abrasileiramento, pois é verdade que o haicai guilhermino fez escola e que mesmo hoje em dia ainda encontramos vários cultores da forma poética que ele denominou haicai. Entretanto, de meu ponto de vista, antes de podermos responder claramente a essas questões essenciais, é preciso determinar o que, de fato, Guilherme de Almeida entendia por haicai, e quais eram as características que atribuía a esse tipo de poesia quando falava dela e quando a escrevia.
Para compreender o papel de Guilherme de Almeida na história do haicai no Brasil, devemos ter em mente a forma pela qual esse tipo de poesia japonesa chegou ao nosso país e aos nossos meios literários. Contrariamente ao que se poderia pensar, não foi devido ao fato de termos aqui a maior colônia japonesa do mundo que o haicai se tornou uma forma literária da poesia em português. De fato, o haicai aportou no Brasil vindo da França, num primeiro momento, e dos países de língua inglesa, num segundo. A princípio, o haicai comparecia apenas em livros de viagens, como exemplo do miniaturismo japonês. Depois, em traduções livres, como ilustração da sensibilidade delicada e exótica do Extremo-Oriente. Só por volta do segundo e terceiro decênios do nosso século o haicai passou a ser objeto do interesse de um maior número de poetas e de um público mais significativo. Foi nesse momento que Guilherme de Almeida, tendo tomado conhecimento do haicai por via francesa e, depois, por intermédio de um grupo praticante de haiku em São Paulo, desenvolveu uma ação que visava, como ele mesmo diz num dos textos deste livro, transplantar o haicai e dotá-lo de uma "disciplina rígida". Vejamos em que consistiu a sua ação.
Do ponto de vista da composição física do haicai, Guilherme de Almeida propôs-se a resolver um problema que se vinha arrastando desde os primeiros momentos de registro e de tradução do haicai: a questão da forma métrica e do uso ou não das rimas.
Desde as primeiras tentativas de tradução para o português – que parecem ter sido as de Wenceslau de Moraes, na virada do século –, o haicai apresentava um problema de métrica. No original japonês, o poema tinha 17 sons (mais exatamente, 17 durações). Traduzir o haicai em 17 sílabas poéticas, distribuídas em três versos de medida diferente (5, 7 e 5 sílabas) e sem rima, não parecia um bom caminho. Quer dizer, do ponto de vista musical o haicai não tinha, a rigor, uma estrutura reconhecível e assimilável à nossa tradição. Era difícil perceber qualquer ritmo nessa distribuição de versos sem rima e com número diferente de sílabas e foi por isso que Wenceslau de Moraes tratou de traduzir os tercetos japoneses em forma de quadra popular portuguesa: para conseguir um equivalente, na nossa tradição, do metro mais corrente em língua japonesa. A solução, entretanto, não parecia completamente adequada, uma vez que o ritmo ternário da composição – isto é, a exposição dos conceitos em três segmentos poéticos –, tem, muitas vezes, bastante importância no haicai japonês.
Guilherme de Almeida, que era um bom ritimista do verso português, ao defrontar-se com esses problemas tratou logo de adaptar o haicai às necessidades formais da nossa tradição poética, mantendo de certa forma o ritmo estrófico ternário.
Começou por atribuir um título ao terceto, o que lhe permitia aumentar um pouco o tamanho do mesmo e torná-lo mais palatável por essa espécie de orientação de leitura que um título muitas vezes proporciona. Também tratou de dar ao poemeto uma estrutura rímica muito cerrada, de modo a tornar musical – em nossos termos – o que de outro modo poderia parecer um tanto desarticulado. Na estrutura de versos de cinco/sete/cinco sílabas métricas dispôs duas rimas: uma unindo o primeiro com o terceiro verso, e outra interna ao segundo verso, ocupando a segunda e a última sílaba. Eis um exemplo, com as rimas sublinhadas e seguidas de um esquema simplificado:

           Por que estás assim,               – – – – a
   violeta? Que borboleta           – b – – – – b
   morreu no jardim?                  – – – – a
 
Com esse recurso, Guilherme de Almeida conseguiu ampliar a regularidade métrica, pois, marcados pela rima, temos agora as seguintes seqüências métricas: cinco sílabas, duas sílabas, cinco sílabas e, de novo, cinco sílabas. Isso dá, tanto quanto possível, um andamento marcado e reconhecível ao poemeto, com três segmentos isossilábicos e um quebrado perfeitamente assimilável à acentuação do pentassílabo.
Quando lemos ao acaso alguns dos poemas que estão neste livro, é muito sensível o ritmo que a distribuição das rimas concede aos tercetos, bem como a maestria com que o poeta trata a alternância das seqüências de duas e de cinco, ora deixando a rima interna sem destaque, ora fazendo-a coincidir com uma pausa sintática, e por fim, como no seguinte poema, sobrepondo à distribuição das sílabas em segmentos de duas e de cinco sílabas pela rima, uma distribuição sintática inversa, em segmentos de cinco e de duas sílabas:

Noite. Um silvo no ar.
Ninguém na estação. E o trem
passa sem parar.
Muitas vezes tem havido debates, nos círculos haicaísticos, sobre se o modelo de Guilherme de Almeida é ou não é uma boa forma de verter o haicai em português. A discussão, quase sempre, gira à volta do uso das rimas, e, mais do que isso, do uso de rimas fixas e algo virtuosas. De fato, ao fazer incidir a noção de disciplina sobre um aspecto tão exterior quanto a métrica e a rima, Guilherme de Almeida propõe um haicai que é uma espécie de micro-soneto parnasiano, um lugar de exibição de perícia técnica. Em princípio, essa espécie de disciplina nada tem a ver com o haiku japonês, mas tampouco impede que se produzam haicais interessantes. A questão, de fato, situa-se em outro nível: ao propor o haicai como terceto cheio de prescrições métricas e rímicas, Guilherme de Almeida nos mostra que está pensando em aclimatar basicamente a forma do haicai. Ora, se essa forma é aclimatada com inovações tão relevantes quanto a rima fixa e a contagem silábica ocidental, o que é que se está, de fato, aclimatando? Entretanto, mesmo a questão das rimas e da métrica é secundária, comparada à outra invenção guilhermina, que é o título atribuído a cada haicai. De fato, lidos sem o título, alguns dos seus poemas, como os que acabo de citar, deixam-se ler como haiku. Com o título, que é uma prática totalmente estranha à tradição do haiku, praticamente nenhum.
De meu ponto de vista, os tercetos de Guilherme de Almeida fracassam como haicais não pela rima e pela métrica preciosas e afetadas, mas pela atitude que se explicita quando os lemos com os títulos que têm. Num dos textos aqui recolhidos – Os meus haicais –, o leitor poderá encontrar uma espécie de análise do poema pelo próprio autor. Lendo a explicação do poeta e observando-se o poema, percebe-se claramente qual a função do título que o poeta atribui aos seus tercetos. Percebe-se mais: qual é a orientação do seu discurso, que é metafórico do ponto de vista da concepção, e sentimental do ponto de vista da disposição de espírito.
Vejamos aqui só um exemplo elucidativo. Este poema:

Desfolha-se a rosa.
Parece até que floresce
O chão cor-de-rosa.
Lido assim, sem título, é um haiku. Não, é claro, por causa das rimas e da métrica. Talvez mesmo apesar delas. É um haiku porque é objetivo. Mais exatamente, é haiku porque nele se contrapõe a uma observação predominante muito objetiva uma percepção fugaz e pessoal. E também porque é visual, até mesmo num sentido icônico: o desfolhamento da rosa se representa, de alguma forma, pela posição das palavras – no primeiro verso está a rosa que se desfolha, no último o chão onde caem as pétalas; no central, aquilo que une os dois planos num todo significativo, a observação pessoal do poeta, a sua ilusão de que a flor transitou do galho para o solo. Não há sentimentalismo, nem qualquer intenção simbólica ostensiva.
Leiamos agora o comentário do poeta: "A flor, que se desfolha, é bem uma lição de alta caridade: dir-se-ia que ela se despe do que é seu, que ela toda se dá à terra humilde, para que o pobre chão, a seus pés, pense que também é capaz de florir". Há um abismo entre os versos e este comentário piegas e banal. O poema, porém, poderia conservar-se bom poema e com sabor de haiku, apesar do comentário, não fosse o gesto decisivo do poeta em franquear a sua intenção moralizante por intermédio de um título. Eis como se lê o poema, na sua forma completa:

CARIDADE
Desfolha-se a rosa
parece até que floresce
o chão cor-de-rosa.
É muito sensível, não só neste caso extremado, mas em todos os outros, que o título empobrece os textos, pois determina a direção da leitura ou força uma decifração metafórica do terceto que nomeia. Apresentados com o título que têm, os tercetos de Guilherme de Almeida quase nunca provocam aquele tipo especial de emoção que nos é transmitida por um bom haicai de Issa ou Buson, mesmo em tradução para outra língua. Definida uma tal orientação da leitura, os haicais, dotados ou não de estrutura métrica e rímica compatível com a tradição da língua portuguesa, perdem aquele modo específico que aprendemos a identificar com o haicai. O que não os impede de ser, às vezes, bons poemas, em outra clave de leitura.
O ponto que queria sublinhar com esse exemplo é que não reside na estrutura métrica ou na utilização de rimas o sabor ou a ausência de sabor de haicai num dado poema, mas na disposição interna do discurso que se apresenta nesse texto. Por isso, fracassou sempre tão redondamente a tentativa de aclimatar o haiku a partir de um trabalho de pesquisa formal, de virtuosismo rímico e métrico. E por isso também a simples inclusão de um título pode contribuir tão decisivamente para alterar por completo a percepção que temos a respeito da classificação genérica de um poema apresentado a nós como haicai. Repetindo de outra forma: o que permite caracterizar um poema breve como haicai não é a forma externa adotada pelo poeta, mas sim uma determinada atitude discursiva que o poema deve fazer supor ou manifestar. Menos do que uma aclimatação, portanto, o trabalho de Guilherme de Almeida consistiu apenas em encarar o haicai como uma forma relativamente neutra, a que se conforma um discurso poético orientado quase sempre de acordo com a nossa própria tradição.
Num outro texto recolhido neste volume, o poeta nos dá a sua definição de haicai: "anotação poética e sincera de um momento de elite". A definição é interessante, pois apela para a sinceridade e para o caráter imediato do haicai. "Anotação sincera de um momento" – dificilmente se conseguirá juntar três palavras mais significativas para a arte da poesia de haicai. Porém, partindo de um conhecimento muito limitado do que fosse o haiku japonês – como se vê nos textos aqui recolhidos, o poeta acreditava mesmo que os haiku tivessem títulos e que o furuike ya (o velho tanque...) se chamava Solidão! –, Guilherme de Almeida acabou por não perceber que essa poesia que tanto o fascinava nascia de uma radical recusa ao sentimental e ao emotivo e de um apego igualmente radical à percepção mais imediata, à sensação concreta, visual, auditiva, tátil ou outra. Por não ter percebido isso é que também não percebeu completamente a função da palavra de estação (kigo) no haiku japonês.
Mas na composição, na prática dos seus versos, se deles eliminarmos os títulos que os destroem enquanto haicais, podemos ver que várias vezes Guilherme de Almeida captou a essencialidade do haicai, fazendo com que a fugacidade de uma sensação ecoasse nas diversas cordas da sensibilidade e da memória, num terceto vibrante. Como neste caso:

Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se: "Agora."

De novo, como no caso de "Caridade", sem título o poema se deixa ler como haicai: o gosto da amora (que é o kigo, pois representa uma determinada estação do ano) está no presente do poema, é sentido pelo poeta enquanto poeta. Essa sensação lembra outra, o que a intensifica e abre espaço para a evocação (algo sentimental para haicai, é verdade) de um momento passado de plenitude. Já com o título de "Infância", o gosto de amora faz parte do passado, é lembrança de um gosto, evocação mental e não sensação imediata. Com o título, a amora não é mais um kigo no sentido funcional de disparar uma determinada emoção. Agora, é o sentimento que recria a sensação como símbolo do bem perdido. Sem o título, podemos ler o poema num registro de -haicai, numa atitude de haicai. Com o título, reencontramos os limites da nossa própria tradição e temos já um outro texto, que faz parte de outro registro genérico.
Numa entrevista publicada em 1941, Guilherme de Almeida dizia, sobre a questão do título no haicai: "o título, no haicai é como o verbete num dicionário: o texto definirá o título". Infelizmente não é assim, e, no seu caso, o título é que define o texto. Tivessem sido publicados sem ele, um bom número dos tercetos que o leitor encontrará a seguir seriam bons haicais e o poeta teria, apesar da ostentação de virtuosismo, um lugar ainda mais relevante na história desse tipo de poesia no Brasil.