domingo, 27 de maio de 2012

Poesia e resistência


Poesia e resistência - Depoimento

Este texto, redigido em novembro de 2011, foi publicado em LyraCompoetics 
(http://www.lyracompoetics.org/pt/poesia-e-resistencia/?i=79)

Pergunta: A poesia é uma forma de resistência? Sempre, por definição? Ou apenas em determinados contextos – sociais, políticos, culturais? Como pode resistir a poesia e a quê?

Resposta:

     A possibilidade de se apresentar esta questão já nos traz um caminho de resposta, pois não creio que essas mesmas perguntas se formulassem com tanta clareza para as outras artes. Por exemplo, faria sentido manter a pergunta tal e qual, substituindo apenas “poesia” por “música” ou por “escultura” – e, dentro do domínio das artes da palavra, por “romance”, ou “conto”, ou ainda “teatro”. No caso da música, é certo que seria importante particularizar de que música falamos: música popular, música pop, música erudita, música experimental, música étnica etc. Já no caso da escultura e da pintura, não saberia como determinar melhor os termos, de modo que a questão pudesse parecer, como a que deu origem a esta resposta, razoável. Mais notável é a dificuldade de aplicar a pergunta a outras modalidades literárias: “o romance é uma forma de resistência?”; “o teatro é uma forma de resistência?”. Nestes casos, mais do que a dificuldade de delimitar os termos (romance de terror, romance de amor, romance social, romance policial etc) impõe-se o estranhamento da pergunta: quem a formularia, e em que situações? Já no caso da poesia, parece natural a indagação, mesmo que não restrinjamos o sentido do termo. E quando o restringimos, como o fez há mais de 30 anos um ensaísta preocupado com o tema, Alfredo Bosi, é apenas para especificar a maneira própria de um tipo de poesia constituir resistência ao que seria o mundo hostil do capitalismo.[1] O exemplo de Bosi é interessante não apenas porque a poesia é identificada, nos tempos modernos a resistência, mas também porque – como implicitamente reconhece que há poesia integrada, não resistente – é a resistência que passa a ser, para ele, a senda da “verdadeira poesia”. Ou seja, identificar poesia e resistência é também uma forma de qualificar. A “verdadeira poesia” é resistência; a falsa ou a não-poesia é aquela a que falta resistência.[2] E, portanto, o verdadeiro cinema seria o de resistência, a verdadeira arquitetura, o verdadeiro romance etc. O que é o mesmo que dizer que, no limite, a arte em geral, na sociedade capitalista, é resistência. Ou ainda que só é verdadeira (ou contemporânea, no sentido de situar-se corretamente no seu tempo) a arte que consistir em resistência.
      Se adotasse esse ponto de vista, responderia que sim, com a modalização necessária: que a verdadeira poesia é resistência, que na modernidade ela o é por definição, em qualquer contexto. Ou então não é arte. Ou seja, voltando ao mesmo ponto: a arte é resistência. Tese difícil de demonstrar, quando pensasse em casos concretos: a arte de Picasso é resistência? E a de Andy Warhol? O cinema de Hitchcock e Bergman? E o de John Ford? Os edifícios públicos de Niemeyer e as casas de Gaudi? A música dos Stones e a de Keith Jarrett? A literatura de Somerset Maugham e de Gabriel Garcia Marques? Não que fosse impossível, mas demandaria tal elasticidade do conceito de resistência que ele se tornaria inútil, ou então obrigaria a uma seleção drástica do âmbito do artístico, especialmente no que diz respeito às artes de apelo mais popular, como o cinema e a música. Na verdade, o que tal operação significaria, no meu caso, é que eu trataria de usar o conceito de resistência (ampliando-o e modalizando-o conforme a necessidade) para atribuir verdade aos objetos que julgo interessantes ou que estão sacralizados pela tradição. Só não seria assim se eu dispusesse de um ponto fixo de referência, sempre igual a si mesmo, que pudesse ser um aferidor da verdade e do reto caminho – a mente de Deus, por exemplo, ou a “essência humana”, apenas momentaneamente desvirtuada pelo capitalismo.[3] Como não disponho, não posso responder nesses termos.
      Prefiro, por isso, pensar no que a apresentação de uma pergunta como a que estou tentando responder significa. A começar pelo fato, a que acima me referi, de que ela não é usual sequer no campo de estudos das outras artes da palavra – exceto se pensarmos no conjunto delas: “a literatura é resistência?” –, mas nesse caso, imagino que a poesia esteja subsumindo os demais tipos de arte recobertos pela palavra “literatura”.  E a terminar pela suposição, que ela implica, de uma unidade da “poesia” que dispense essa palavra de qualquer qualificativo. Passando pelo fato de que a modalização das perguntas subsequentes à primeira demonstram que a expectativa de resposta a ela seja positiva.
      Minha intuição é que temos de ter um raciocínio de mão dupla: perguntar se a poesia é resistência é também perguntar se há resistência à poesia em nossa sociedade. E se a afirmação de uma não implica a resposta de outra. Se fizermos essa pergunta, porém, nos deparamos com a verdade de que não há resistência a todo tipo de poesia, mas apenas a alguns tipos.
      Quanto à resistência mútua, João Cabral de Melo Neto, em textos do início dos anos 1950, apresentou um quadro muito claro.[4] Para ele, a responsabilidade principal pela grave questão do abismo que julgava abrir-se entre o poeta e o público residia na forma e alcance do típico poema moderno, fechado ao leitor e de temática restrita. A resistência à poesia era, assim, uma resposta à inadequação do poema. Sua proposta de superação do impasse era que os poetas buscassem a comunicação com o leitor, fazendo poemas mais adequados aos tempos modernos, valendo-se inclusive das novas formas massivas de difusão da palavra, como era o caso do rádio. Com essa mesma preocupação nasceu também o movimento da poesia concreta brasileira, que buscava, num primeiro momento, a integração no universo dos produtos industriais e no mundo moderno, mas que em breve refluiu para a típica posição de resistência ao público, cujo gosto ou formação seria incapaz de gerar uma recepção positiva à poesia, e passou a ocupar o lugar clássico da vanguarda de produtora de poesia para um público futuro ou para poetas que preparariam esse público ainda inexistente.
      Mas não nos devemos iludir: a falta de integração – ou de sucesso de público, para usar uma palavra crua – era de apenas um tipo de poesia: aquele que merecia a consideração crítica. Porque sempre houve poesia de grande receptividade, à qual normalmente se negou (e ainda se nega) o caráter de arte séria ou mesmo de arte. Basta lembrar, como contraponto à tese da incomunicabilidade da poesia no século XX, entre outras referências possíveis, as enormes tiragens de J. G. de Araújo Jorge (seu livro Amo!, de 1938, vendeu 80.000 exemplares) e da poesia psicografada por Chico Xavier (seu Parnaso de Além-Túmulo vendeu mais de 100.000 cópias – e continua em catálogo).
      Essas reflexões trazem para primeiro plano uma forma de resistência que caracteriza a poesia moderna canônica que merece ser destacada: a resistência à perda do valor de novidade, ao valor de estranhamento que a linguagem poética deve ter para ser reconhecida como tala “resistência” de fato faz parte da definição do tipo de poesia que identificamos como significativa e contemporânea, mas num nível complexo, no qual se combinam a recusa à repetição e a afirmação da autonomia do discurso poético. Ao mesmo tempo, suspeito de que a afirmação da autonomia tem sido muitas vezes confundida, de modo simplório, com a eficácia de estratégias que visam apenas provocar a resistência do público mais amplo.
      Ainda uma última consideração – que apenas reafirma a minha incapacidade de responder às perguntas: a louvação da poesia como resistência é um dos grandes temas da literatura e da crítica moderna. Não espanta que ela tenha logo passado de tema ou descrição a prescrição. Nem que o caráter prescritivo se imponha, pois é um dos requisitos para a postulação de contemporaneidade – importante valor, qualificativo a que cada vez uma gama menor de produtos parece ter direito em nosso tempo.
      Por fim, no que diz respeito à minha prática poética, percebo (também ao responder a este questionário) que há nela uma resistência de fundo: uma resistência a programas, à injunção de fazer sempre o novo a partir de um traçado histórico que define uma linha evolutiva, à ideia de que o leitor comum é dispensável ou, em princípio, inepto para dar conta da boa poesia, ou à proposição de que o mundo contemporâneo seja mais hostil à poesia do que qualquer outro mundo, bem como ao jargão crítico-poético trazido para dentro do poema ou à busca de procedimentos constantes, que funcionem como uma marca registrada ou uma garantia de procedência do produto. E já agora, no que toca a este momento, uma resistência à ideia ou bandeira da literatura como resistência. Ou seja, termino por perceber que possuo uma paradoxal resistência à ideia de resistência.
     E é tudo o que, como poeta e como estudioso da literatura, me ocorre dizer neste momento.
Paulo Franchetti


[1] Refiro-me a Alfredo Bosi, que num artigo denominado precisamente “Poesia resistência” (título no qual a ausência de conectivo parece assimilar diretamente os dois termos), assim descreve “os caminhos de resistência mais trilhados (poesia-metalinguagem, poesia-mito, poesia-biografia, poesia-sátira, poesia-utopia)”. Cf. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1977, p. 147.
[2] Idem, p. 151.
[3] Bosi refere a frase de Marx, em que a religião é descrita como “realização imaginária da essência humana”, e acrescenta: “O que parece uma definição totalizante da arte.” Idem, p. 176.
[4] “Poesia e composição” (1952), repr. em Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003, pp. 721 e ss. E “Da função moderna da poesia” (1954), idem, pp. 765 e ss.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Relações brasileiras de Eça (Eduardo Prado e outros)

Relações brasileiras de Eça de Queirós

 [Este texto foi escrito para servir de introdução à publicação da correspondência de Eça com brasileiros, nas obras completas do autor, publicadas pela Editora Aguilar em 2000]

 
No conjunto de cartas apresentado a seguir, não são muitos os nomes brasileiros. Deve-se isso, entretanto, mais ao acaso do que à real dimensão das relações brasileiras de Eça de Queirós, que foram sempre, principalmente depois que se instalou em Paris, muitas e variadas. Assim, não há aqui nenhuma carta de Eça a Joaquim Nabuco, que ele conheceu e com quem quase com certeza se correspondeu. Tampouco há aqui qualquer carta endereçada a Olavo Bilac, apesar de sabermos que o poeta brasileiro freqüentou a casa do romancista português e que ambos elaboraram, para diversão da família de Eça, uma jocosa peça de teatro a quatro mãos.
Esses são os nomes mais conhecidos, mas temos elementos para imaginar que não foi pequeno o volume da correspondência trocada entre Eça de Queirós e vários dos muitos brasileiros que, pela mão de Eduardo Prado ou de Domício da Gama, foram levados ao seu conhecimento. Perdidas ou ainda por encontrar, muitas cartas de Eça devem ter cruzado o Atlântico, como extensão e continuidade das sessões de cavaqueira que tornavam a sua casa um centro obrigatório para os intelectuais do nosso país, quando em viagem pela Europa. Das cartas de Eça, quase tudo se perdeu ou está ainda por achar em arquivos espalhados pelo nosso país. Já a grande maioria das que daqui foram enviadas para lá com certeza desapareceu, pois não tinha o autor de Os Maias o hábito de conservar as cartas que ia recebendo. E para constatar que o desaparecimen­to das cartas enviadas a Eça por amigos brasileiros não constitui um caso particular, devido a alguma diferença de tratamento, basta lembrar que, da correspondên­cia mantida com “Santo” Antero ao longo de quase trinta anos, só nos restaram duas cartas. Se Eça não conservou os papéis a ele enviados por aquele de quem se confessou discípulo para toda a vida, que esperar do destino de outra correspondência, certamente muito menos importante para ele tanto do ponto de vista intelectual, quanto afetivo?
Assim, devemos ter muito claro que o material hoje disponível, no que diz respeito ao Brasil, é apenas uma parte muito pequena do que foi de fato enviado e recebido, e que a presença do mundo intelectual brasileiro no quotidiano de Eça, principalmente no período parisiense, foi muito maior e significativa do que a mera identificação dos nomes dos destinatários das cartas e o teor dos textos aqui reunidos poderia sugerir.
Feita essa primeira observação, identifiquemos agora os brasileiros que se incluem na lista dos destinatários desta correspondência. Em primeiro lugar nessa lista vem Eduardo Prado. Amigo do romancista, freqüentador de sua casa, Eduardo Prado foi, sem dúvida, uma presença importante na vida do escritor e da família Queirós.


Eduardo Prado é hoje um autor quase esquecido. No seu tempo, entretanto, ocupou um lugar de grande destaque na vida cultural brasileira. Monarquista, propagandista anti-republicano, historiador empenhado em mostrar o caráter positivo da ação da Companhia de Jesus no Brasil, viajante insaciável desde a mocidade, deixou uma obra extensa, mas em grande parte voltada para os problemas do momento. Seus livros hoje quase que só apresentam interesse para os especialistas e estudiosos da história brasileira dos primeiros anos da República. É certo que ainda oferece atrativos a leitura do seu A ilusão americana, pela amplitude de visão que caracteriza a sua análise das relações entre o nosso país e os Estados Unidos, no momento em que começava a se definir o alinhamento norte-sul que duraria até hoje, e também é certo que o estilo do polemista de Fastos da ditadura militar no Brasil ainda causa impressão. Mas são textos que não oferecem atrativos para o público em geral, e é uma real infelicidade que aquela parte de sua obra que talvez pudesse manter vivo o seu nome na literatura brasileira se tenha perdido ou deixado de ser publicada. É o caso de um romance de juventude, de que temos apenas esparsa notícia, e do livro a que dedicou o melhor de seu talento de historiador e que desapareceu quando da sua morte prematura: uma biografia do Padre Manuel de Moraes. Esse estudo enfocava, em 700 páginas, a curiosa figura de um jesuíta interessado pela natureza americana, que primeiro lutou contra os holandeses, em Pernambuco e depois, renegando a fé e a bandeira, uniu-se a eles, transferiu-se para a Holanda, casou-se, tornou-se teólogo calvinista, para finalmente regressar ao Brasil, onde foi preso pela Inquisição e condenado à morte. Centrado na biografia do padre, procedia Eduardo Prado, ao que tudo indica, a um estudo aprofundado e original da até então quase desconhecida vida colonial brasileira. Composto como um painel, um retrato de época, o volume deveria aproximar-se, pelo escopo, dos que seu amigo Oliveira Martins dedicara, no final da vida, às grandes figuras da dinastia de Avis e que tanto impressionaram Eça de Queirós. Na mesma linha parece ter-se desenvolvido, sem que saibamos hoje se teria sido concluído o livro, ou abandonado ­a meio, um trabalho que lhe consumiu imensa pesquisa: a vida do Padre António Vieira.
Tendo sua obra acabado por se reduzir a algumas conferências mais ou menos eruditas e a muitos textos de intervenção política, Eduardo Prado passou à história principalmen­te como propagandista anti-republicano e diletante intelectual; ­isto é, um homem culto, de vários interesses culturais e políticos que não redundaram num conjunto de textos coeso e realmente significativo do ponto de vista histórico ou literário. Esse é, na verdade, o retrato com que o fixou José Veríssimo e que a crítica posterior não fez mais do que emoldurar ao sabor do tempo: ideologicamen­te, Eduardo Prado teria sido um dos únicos escritores inteiramente reacionários da nossa literatura; literariamente, essencial­mente um jornalista; intelectual­mente, um assistemático “amador das coisas do espírito”.[1]
Do ponto de vista da história da cultura brasileira, a importância de Eduardo Prado vai, entretanto, muito além do que dele nos ficou em letra de imprensa. Sua ação intelectual, como vemos por meio dos depoimentos de seus contemporâneos e pela correspondência que trocou com brasileiros e portugueses, foi bastante ampla, e pode-se dizer que, não só pela sua situação social, mas também pela inquietude de espírito e pela dedicação incansável aos assuntos brasileiros, Eduardo Prado foi uma espécie de centro de irradiação de um esforço de pensar a nossa realidade e um elo de ligação importantíssimo entre os intelectuais portugueses da Geração de 70 e seus contemporâneos deste lado do Atlântico.


Se tivéssemos de definir em poucas palavras os traços centrais da personalidade de Eduardo Prado, tal como o viram os seus contemporâneos, dois deles seriam, sem dúvida, a paixão do documento e dom de fazer amigos. Aliados a uma vivência internacional e a uma intensa curiosidade pelas várias formas de civilização e pelas novas conquistas da ciência, compõem esses traços uma figura destacada no panorama brasileiro finissecular, que só terá talvez par nesse outro dândi, igualmente erudito e igualmente internacional, Joaquim Nabuco.
No que diz respeito ao seu ambiente brasileiro, Eduardo Prado integrou um grupo notável de homens ligados à monarquia do Segundo Império. Tendo-se empenhado intensamente na crítica à República, e não tendo sobrevivido muito a ela, não se pode saber se ele teria, como Nabuco o fez a partir de 1899, dedicado efetivamente a sua enorme capacidade de trabalho ao país. Mas é o que tudo indica que aconteceria, pois quando o mesmo Nabuco, em 1899, recebeu o convite para servir como diplomata o governo do novo regime e o consultou, respondeu Eduardo Prado: “Aceite e, se quiser me levar para secretário, aceitarei também.”[2]  Faltou-lhe talvez tempo, depois de um primeiro período de repúdio e de ostracismo (que no seu caso, dada a violência com que combateu o novo regime seria forçosamente mais longo do que, por exemplo, o de Nabuco), para poder deixar de lado o orgulho e as divergências políticas e colocar em primeiro plano as questões mais amplas de interesse nacional.
Do ponto de vista da história literária, não há uma denominação usual para esse conjunto de intelectuais de que fez parte Eduardo Prado, e é difícil estabelecer, em termos cronológicos, uma denominação geracional que englobe tanto Eduardo Prado (1860-1901), quanto Joaquim Nabuco (1849-1910), Domício da Gama (1861-1925), o Barão do Rio Branco (1845-1912) e ainda Capistrano de Abreu (1853-1927). José Veríssimo, quando tratou do florescimento da crítica e do interesse pela história nacional na segunda metade do século XIX, utilizou, para identificar o conjunto dessa produção, o nome “modernis­mo” e não um rótulo geracional, e o denominador comum que aponta para ele é a influência do grupo de escritores portugueses reunidos à volta de Antero de Quental, no movimento coimbrão de 1865, que a historiografia portuguesa subseqüente identificaria como Geração de 70.
É verdade que a aposta de Veríssimo na profunda influência portuguesa para a constituição do pensamento crítico do “modernismo” dos anos 70-80 tinha como pano de fundo a sua polêmica contra o papel atribuído por Romero à chamada Escola do Recife, e especificamente a Tobias Barreto, como fermento da renovação do pensamento crítico brasileiro. Mas, do nosso ponto de vista, não é prejudicada na sua essência a propriedade da aproximação entre os jovens brasileiros dos anos 80 e os intelectuais portugueses que promoveram as Conferências Democráticas do Casino Lisbonense em 1871.


De fato, é bem conhecida a relação de amizade que uniu não apenas Eduardo Prado, mas também outros intelectuais do seu círculo de relações a Eça de Queirós, que foi um dos principais expoentes da Geração de 70. Do lado brasileiro, privaram com o escritor português Domício da Gama, o Barão do Rio Branco e Joaquim Nabuco. No círculo de Eça, por sua vez, faziam-se presentes Ramalho Ortigão e, embora por uma única vez em Paris, Oliveira Martins. Por outro lado, ajudando a compor o quadro de uma profunda integração finissecular entre os homens da Geração de 70 portuguesa e o “modernismo” brasileiro, há a vertente republicana e positivista, em que a presença mais decisiva é a de Teófilo Braga.
Entretanto, é importante não exagerar o peso das afinidades ideológicas. No final do século, à volta do eixo formado pela casa de Eça em Neully e pelo palacete de Eduardo Prado na Rua de Rivoli gravitava uma vasta gama de intelectuais brasileiros e portugueses trazidos a Paris por motivos vários -- diplomacia, viagens de formação, turismo cultural -- e de várias extrações políticas e sociais. É verdade que a tônica era intelectual, pois se elaboravam planos de revistas, discutiam-se os rumos do Brasil depois da República, os desastres da economia portuguesa depois do Ultimatum e as grandes questões do tempo, como o atesta a correspondência já publicada de Eça, Ramalho e Martins; mas muito mais do que o debate político ou literário, o que dava a liga do convívio luso-brasileiro em Paris era o prestígio do escritor português e a personalidade cativante de Eduardo Prado, bem como o cosmopolitis­mo que pautou a vida de algumas das personalidades mais notáveis do final do Segundo Império, como Nabuco, Domício da Gama, Rio Branco e o próprio Prado.
Nascido em 27 de fevereiro de 1860, em São Paulo, Eduardo Prado era filho de Martinico Prado e D. Veridiana da Silva Prado. A família Prado, além da riqueza consolidada no negócio do café, possuía grande expressão política não apenas local, mas em nível nacional, sendo o irmão mais velho de Eduardo, Antonio Prado, conselheiro do Império, onde ocupou o ministério da Agricultura e do Exterior. Dos irmãos de Eduardo Prado, destacou-se ainda na política Caio da Silva Prado, que foi presidente do Ceará, e também não foi um desconhecido o Dr. Martinho Prado, promotor público e adepto do regime republicano.
Eduardo Prado, de todos, foi o único que não teve carreira definida. Tendo cursado Direito, bacharelando-se em 1881, nunca exerceu continuadamente qualquer cargo público. Prolongando a sua formação, como os jovens aristocratas ingleses dos séculos XVIII e XIX, assim que obteve a carta de bacharel dedicou-se a uma série de viagens: primeiro pela América do Sul, de que resultam uma série de crônicas publicadas na Gazeta de Notícias; depois, começando em agosto de 1886, fez uma volta ao mundo, em que consumiu mais de seis meses e de que nos ficou um diário um tanto lacunar, recolhido postumamente, em ­­1902, como segunda parte do volume Viagens -- América, Oceania e Ásia.


Entre a data da sua formatura e o ano de 1892, foram dez anos fora do Brasil, viajando ou se estabelecendo em capitais européias e americanas. É nessa época que ficou, por algum tempo, como adido à legação brasileira em Washing­ton e, posteriormente, como adido à legação de Londres. E foi também durante esse período que residiu longo tempo em Paris, a partir de 1886, numa mansão ricamente mobiliada e dotada do que de mais novo havia em termos de inovações tecnológicas na Europa. Ainda em Paris, participou da representação brasileira na Exposição de 1889, para a qual escreveu dois textos: L’Art e Immigration.[3]
Como atestam essas publicações, do ponto de vista intelectual os anos em que permaneceu na Europa foram um período muito produtivo, no qual Eduardo Prado coligiu uma enorme quantidade de documentos e informações sobre assuntos brasileiros. E também sua passagem por Washington e Londres, como adido cultural, foi plena de frutos, não apenas porque pôde trabalhar na organização dos arquivos da legação brasileira, na capital americana, mas também porque, durante a estada em Londres, pôde levar adiante suas pesquisas sobre o Brasil colônia, com vistas à elaboração dos das duas biografias em que estava então interessado: a do Padre António Vieira e a do Padre Manuel de Moraes. Data desse primeiro período de sua vida internacional o aprofundamento da amizade com o Barão do Rio Branco, e talvez também, segundo hipótese de Capistrano de Abreu, a paixão pela história do Brasil, em que se tornaria, na opinião nada desprezível desse grande historiador, um dos maiores especialistas.[4]


A grande arte, porém, de que Eduardo Prado era um dos mais destacados cultores do seu tempo é outra: a conversação elegante e intelectualizada, a tertúlia oitocentista. Como Eça, Prado era uma presença cativante e estimulante, e sobejam documentos sobre a sua capacidade de incutir ânimo, idealizar projetos, levar adiante empreendimentos intelectuais e cultivar amizades. Um dos mais conhecidos depoimentos a esse respeito é o que o próprio Eça publicou, em 1888, no número 22 da Revista Moderna. Ali lemos este tocante elogio dessa personalidade que marcou tão profundamen­te o final de século luso-brasileiro: ­“pela inata alegria, pela vivacidade inventiva, pela veia ricamente cômica, pela abundância e delicioso humorismo da anedota, pela simplicidade que se pueriliza permanecendo fina, pelo elegante desdém da ostentação, pela bendita facilidade em se interessar, pela prontidão do entusiasmo, pela inteligente mansidão, pelo apego afetivo, não há mais desejável companheiro”. [5]  Também Maria Amália Vaz de Carvalho registrou, em termos igualmente efusivos, o fascínio que Prado exercia sobre os contemporâneos pela sua conversação culta e inteligente: “Conhecia os traços sociais de todas as civilizações, assim como sabia o que era o instinto primordial de todas as raças. Lera e sentira Ruskin antes de nenhum latino, creio eu, conhecer o hoje tão famoso e citado esteta inglês. Carlyle era-lhe tão familiar como Shakespeare, e Goethe ensinara-lhe tanto como Dante ou Maquiavel. Ao pé dele respirava-se um ar de alta intelectualidade, porque vivera sempre para as idéias e pelas idéias...”[6]
Tal personalidade exerceu sobre Eça de Queirós um fascínio duradouro e que transcendeu o âmbito das relações pessoais, e há quem sustente, com bastante verossimilhança, que o feitio aristocrático do brasileiro, sua história de viagens incessantes pelo mundo todo e sua curiosidade intensa pelos novos rumos da ciência e da tecnologia, informaram, pelo menos parcialmente, a construção de duas bem conhecidas criaturas ficcionais do escritor português: o dândi Fradique Mendes (que inclusive dirige uma de suas cartas ao próprio Prado) e o não menos refinado Jacinto, de A cidade e as serras.[7]
A dizer ainda, para situar melhor o contexto das cartas aqui reproduzidas, que Eduardo Prado voltou ao Brasil em 1892 para aqui combater o novo regime político do país. Fundou para isso um jornal, O Comércio de São Paulo – que foi empastelado pelos republicanos em 1897 – e, além de vários artigos, que se seguiram aos primeiros de 1889, quando ainda estava na Europa, escreveu, no bojo da campanha política o volume A ilusão americana (1893). Nos seus últimos anos, foi reconhecido intelectualmente com a eleição para a Academia Brasileira de Letras e para o Instituto Histórico e Geográfico. Foi para tomar posse neste último que viajou ao Rio de Janeiro, no início de agosto de 1901, local onde contraiu febre amarela, de que veio a falecer no dia 30 do mesmo mês, com 41 anos de idade.

Juntamente com Eduardo Prado, e desfrutando também de grande intimidade com o autor de Os Maias, fez-se presente, principalmente nos últimos anos de Eça, o escritor e diplomata brasileiro Domício da Gama.
Domício conheceu Eça de Queirós em Londres, em 1888, quando foi pela primeira vez à Europa, com o objetivo de cobrir, para A Gazeta de Notícias, a Exposição Universal de 1889, na França. Tendo ido diretamente para Londres, apresentou-se aí ao romancista português, com uma carta de recomendação do proprietário do jornal carioca, em que também Eça escrevia. Daí por diante, serão parceiros em pelo menos três empreendimentos culturais e cultivarão uma amizade na qual estarão incluídos a mulher e os filhos de Eça
 Antes, porém, de referir esses projetos e a relação afetiva entre Domício e Eça, vejamos quem foi esse brasileiro singular, hoje ainda mais esquecido do que Eduardo Prado.


Domício da Gama nasceu em 1861, em Maricá, no Rio de Janeiro, e foi batizado como Domício Forneiro. De família humilde e origem provavelmente negra, teve os estudos custeados pelo padrinho, Sebastião de Azevedo Araújo e Gama, cujo sobrenome adotou posteriormente. Tendo interrompido os estudos superiores na Escola Politécnica, foi primeiramente professor de geografia e, depois, jornalista.
Quando foi designado para cobrir a Exposição, Domício já era conhecido e respeitado como jornalista e como literato. Sua obra propriamente literária, nesse momento, limitava-se a uns tantos contos que, com o apoio de Machado de Assis, publicara na Gazeta Mas parecia então bastante promissora, como atesta o Retrospecto literário do ano de 1888, de Sílvio Romero. Estava aí Domício lado a lado com Raul Pompéia, como representantes de um novo naturalismo, mais amplo e mais humano do que o da escola de Zola. E prosseguia o crítico: “São muito moços, começam apenas, não deram ainda toda a medida de sua capacidade; mas, ou me engano muito, ou este país tem neles dois escritores de altura acima do comum.” A junção desses dois nomes, como destacadas vocações artísticas representativas da nova tendência da prosa brasileira do final do século, também se dá na carta de apresentação que escreveu Capistrano de Abreu, em 1888, ao seu amigo Barão do Rio Branco, recomendando o jovem Domício.
Ao longo dos anos subseqüentes, entretanto, Domício se foi dedicando cada vez mais ao estudo das questões geográficas e históricas vinculadas às negociações dos tratados de fronteiras do Brasil e à diplomacia, e cada vez menos, ao que parece, à elaboração e divulgação de sua obra literária. Entrando para o serviço público em 1891, é primeiro secretário de Rio Branco; depois, diplomata, servindo na Colômbia, no Peru, na Argentina, no Chile e nos Estados Unidos. Finalmente, em 1919, por um breve período, foi ministro da Relações Exteriores, cargo antes ocupado por Rio Branco.
De sua obra literária nos ficaram apenas dois volumes em livro: Contos a meia tinta, publicado em Paris, em 1891; e Histórias curtas, publicado no Rio de Janeiro, pela Ed. Francisco Alves, em 1901. Sem reedições, ficaram praticamente desconhecidos, embora sua leitura sugerisse a José Veríssimo o julgamento de que o autor estava “fadado a ser o nosso Poe”.
A crítica, até o momento, parece limitar-se a repetir, sobre sua obra, a apreciação de Lúcia Miguel Pereira, que via seu estilo como “excessivamente trabalhado” – embora o colocasse ao lado de Raul Pompéia, como a melhor expressão da nossa prosa parnasiana de ficção. Uma leitura desarmada dos seus textos, entretanto, permite afirmar que ainda não se fez justiça ao escritor, que certamente mereceria reedição e reavaliação. E é este, certamente, o momento de fazê-lo, agora que o cânon modernista parece estar finalmente deixando de determinar tão decisivamente a historiografia e a crítica literária brasileiras como o fez nos últimos quarenta anos.[8]


No que diz respeito à sua vida intelectual na Europa, Domício participou de alguns projetos, juntamente com Eça de Queirós, como dissemos anteriormente. A sua primeira colaboração se deu na Revista de Portugal, periódico fundado por Eça, de que saíram 24 números entre julho de 1889 e maio de 1892. O papel principal de Domício nessa publicação foi escolher e contatar os colaborado­res brasileiros. Alguns anos depois, vamos encontrá-lo na Revista Moderna, importante ­publicação custeada e dirigida por um brasileiro de fortuna – Martinho Carlos de Arruda Botelho. Foi na Revista Moderna, que teve 30 números, estendendo-se de maio de 1897 a abril de 1899, que Eça publicou parte de A ilustre casa de Ramires e vários contos e crônicas, além do conhecido texto sobre Eduardo Prado. E foi nela que, no número 10, datado de 20 de novembro de 1897 e dedicado integralmente a Eça de Queirós, Domício publicou um texto de homenagem ao amigo português. Finalmente, um último trabalho conjunto: a pedido de Ferreira de Araújo, proprietário da Gazeta de Notícias, organiza, com Eça de Queirós e Batalha Reis, um suplemento parisiense do jornal.
As cartas aqui recolhidas atestam a amizade entre Eça e Domício, que, além de ser o destinatário de nada menos do que doze cartas, é referido em várias outras. É que, como mostra o conjunto dessa correspondência, foi Domício, juntamente com Ramalho Ortigão e Eduardo Prado, ­um dos amigos mais chegados à família nos anos finais da vida do romancista. De fato, como podemos ver pelas cartas escritas por D. Emília, Domício se correspondia inclusive com ela e com os filhos do casal. E da natureza e profundidade do afeto que o unia a Eça é testemunho este trecho de carta enviada à viúva, logo em seguida à morte do escritor: “Na mesma semana recebo a notícia da morte de minha mãe e da de Queirós. Nem sei dizer qual das duas mais me aflige. Só sinto que desaparece­ram ao mesmo tempo dois dos grandes interesses da minha vida e é um grande desalento a perda dos amparos da aflição que a gente tem no mundo”.

Além de Eduardo Prado e de Domício da Gama, há que mencionar, como pessoa do círculo de brasileiros com quem convivia Eça de Queirós, o nome do Barão do Rio Branco, José Maria da Silva Paranhos Jr. (1845-1912). Paranhos foi, tanto quanto Rui Barbosa, uma das figuras públicas mais destacadas das primeiras décadas da República brasileira. Filho do Visconde do Rio Branco, que foi ministro do Império e chefe do ministério entre 1871 e 1875, começou sua carreira como professor do Colégio Pedro II, onde por alguns meses ensinou geografia do Brasil. Mas logo passou à política partidária, com a ajuda poderosa de seu pai. Seu futuro parecia definido, como herdeiro da história política do Visconde, mas uma ligação romântica com uma atriz belga, de quem teve um filho no começo dos anos 70, dificul­tou a sua vida política na sociedade conservadora do Segundo Império e talvez tenha contado bastante para a sua decisão de iniciar a carreira diplomática. Fosse como fosse, em 1876, depois de um mandato como deputado por Mato Grosso, é nomeado para o consulado brasileiro de Liverpool. Não se adaptando à cidade, acaba por optar pelo deslocamento constante, trabalhando na Inglaterra e residindo em Paris.


Como diplomata, destacou-se pela negociação de tratados de limites com outros países, nos quais, valendo-se dos seus vastos conhecimentos históricos e geográficos, conseguiu sucessos realmente notáveis. Graças a ele, foram definidos pacificamente e a favor do Brasil os litígios territoriais com a Argentina (1895), com a Guiana Francesa (1900), com a Bolívia (1903) e com o Uruguai (1908). Em conseqüência daqueles primeiros sucessos, em 1902 foi convidado a ocupar a pasta das Relações Exteriores e regressou ao Brasil, onde permaneceu, ocupando o mesmo cargo pelos dez anos que lhe restariam de vida.
Além de diplomata, Rio Branco foi também notável pesquisador da história brasileira, tendo escrito, entre outros trabalhos, um “Esboço da História do Brasil”, publicado durante a Exposição de Paris, em 1889, e o verbete Brésil, da Grande Enciclopédia dirigida por Lavasseur, além de uma biografia de D. Pedro II, que as conveniências dos primeiros tempos republicanos fizeram que saísse em nome de um rabino de Avinhão, chamado Benjamin Mossé..
Embora deslocando-se freqüentemente, de acordo com as missões que lhe eram atribuídas, até 1901 – um ano depois da morte de Eça, portanto – Rio Branco está presente na mesma cidade que o autor de Os Maias. Como era bastante ligado a Domício e Eduardo Prado, devia também ser presença usual nas reuniões luso-brasileiras da casa deste último ou na de Eça. Não temos registros epistolares mais amplos, que permitam aferir a real extensão das relações entre o fundador da nova diplomacia brasileira e os seus contemporâneos portugueses, mas sabemos que várias vezes Rio Branco se valeu dos conhecimentos pessoais de Eça de Queirós, quando alguma de suas missões implicava a necessidade de contatos em Portugal, para a localização de mapas e outros documentos. É uma carta dessa natureza, justamente, a única de que dispomos no momento e vem reproduzida nesta correspondência.

Como destinatários de cartas de Eça, cumpre finalmente mencionar dois outros brasileiros, representados com uma carta cada um: Augusto Fábregas (1859-1893) e Machado de Assis (1839-1908).
O primeiro foi teatrólogo, jornalista e redator do periódico O País. Em 1890 levou à cena uma adaptação de O Crime do Padre Amaro, que começou a ser representada no Rio de Janeiro em 25 de abril de 1890, obtendo grande êxito. A carta de Eça a ele destinada trata exclusivamente da questão dos direitos de autor sobre a encenação.
O segundo dispensa apresentações. A carta de Eça a Machado se deve, como é sabido, à publicação, pelo romancista brasileiro, de uma crítica ao romance O Primo Basílio, a revista O Cruzeiro, em abril de 1878, sob o pseudônimo de “Eleazar”.


A crítica de Machado – que na mesma época publicava em folhetins o seu Iaiá Garcia – atacava o romance de Eça a partir de dois ângulos principais. Por um lado, via nessa obra uma realização de uma tendência literária que não merecia a sua aprovação: o realismo de Zola. O Naturalismo, segundo o futuro autor de D. Casmurro, produzia uma literatura sensualista e escandalosa, que atendia ao gosto rebaixado do público contemporâneo. E era por ser uma tradução para o português do receituário da moda que fazia sucesso na França, pensava Machado, que o livro de Eça estava obtendo tão notável sucesso de público. Isso porque, pelo lado da fatura, o livro tinha, de seu ponto de vista, graves defeitos, que iam desde a forma de construir as personagens até a maneira de compor a trama, passando pela própria condução da narração. As personagens, segundo Machado, careciam de densidade moral. Dessa característica, derivava o defeito básico da trama, que era a necessidade de o autor introduzir elementos dramáticos externos, já que não havia drama psicológico ou moral que tensionasse e determinasse a sucessão dos acontecimentos. E uma vez que não era o estudo dos caracteres o que interessava ao autor de O Primo Basílio, a narração não distinguia o essencial do acessório, comprazendo-se muitas vezes na descrição infuncional.
A crítica de Machado parece ter encontrado repercussão em Eça de Queirós. Mas certamente encontrou muito maior repercussão na fortuna crítica de O Primo Basílio –  principalmen­te na sua vertente brasileira – e até agora informa muitas aproximações ao texto de Eça. Hoje, com a distância proporcionada pelos mais de cem anos, podemos ver mais claramente que, empenhado na criação de uma tradição cultural em nosso país, Machado leu o texto de Eça de uma perspectiva muito interessada. De fato, é patente no texto um esforço de combate à narrativa naturalista, que Machado entendia, naquele momento, como uma narrativa que favorecia a descrição e a notação sensual em prejuízo da análise das paixões e da complicação lógica do enredo. A crítica de Machado se processava, assim, a partir de uma concepção de romance que era oposta à que ele identificava no texto de Eça e que ele mesmo tentava pôr em prática no seu Iaiá Garcia: o bom romance era, para ele, naquele momento, o que investia na construção de personagens complexas, movidas por paixões e motivações morais que garantissem o interesse dos desdobramentos da narrativa. O que Machado combatia em O Primo Basílio não era apenas uma específica realização literária, mas também, tendo em mente o sucesso de público do livro de Eça, a possível influência do estilo naturalista sobre a jovem literatura brasileira. Apoiado numa perspectiva marcadamente romântica, Machado tentava mostrar que o perigo da disseminação do Naturalismo era interromper a continuidade histórica da literatura de língua portuguesa, e o objetivo de sua crítica se revelava muito claramente quando ele expressava a esperança de superação do hiato causado pela súbita voga do Naturalismo: terminada a moda – que ele mesmo, com esse texto, se esforçava por combater –,  a “arte pura” voltaria “a beber aquelas águas sadias d’O Monge de Cister, d’O Arco de Sant’Ana e d’O Guarani.” Nessa frase revela-se uma conjunção de sentidos que percorre todo esse texto de Machado, e procede dos pressupostos românticos que ainda eram os seus: a arte pura, as águas sadias e o beijo castíssimo de Eugênia Grandet se opunham defensivamente à arte impura, às águas perversas da maré naturalista e à sensualidade mais ou menos vazia que via no romance de Luísa. Esse poder de corrupção do romance de Eça era claramente tematizado por Machado, que condenava “essa pintura, esse aroma de alcova, essa descrição minuciosa, quase técnica, das relações adúlteras”, e concluía pela afirmação do perigo que ele representava para o público leitor: “a castidade inadvertida que ler o livro chegará à última página, sem fechá-lo, e tornará atrás para reler outras”.[9]


A carta de Eça a Machado revela que o romancista português assimilou a crítica a O Primo Basílio, situando-a como divergência de concepção sobre o papel e o lugar da literatura na vida social. De fato, propõe-se a defender em ocasião futura – que não parece ter-se concretizado – não as realizações particulares que são os seus romances, mas os princípios de que procedem, que são os da “escola que eles representam e que eu considero como um elevado fator do progresso moral da sociedade moderna”. Ou seja: respondendo ao que sentiu como o ponto central da crítica de Machado – a questão moral –, afirma o caráter progressivo, crítico e moralizante da escola naturalista, deixando cair para segundo plano – já que não as traz à discussão – as restrições específicas, estéticas e técnicas, que lhe fizera o romancista brasileiro.
É possível que, com o prosseguimento da pesquisa de fontes no Brasil, em futuro próximo venham a ser acrescentadas às cartas atualmente conhecidas, algumas das muitas que Eça de Queirós certamente endereçou a intelectuais brasileiros. De fato, muito há ainda por fazer em arquivos nacionais ainda pouco explorados. No momento, entretanto, são esses os corresponden­tes brasileiros conhecidos, sobre os quais nos competia aqui alinhavar estas rápidas informações.


[1] José Veríssimo. História da literatura brasileira. Brasília, Editora da UnB, 1963, pp. 292-3.
[2] Apud Paulo Prado, no prefácio a Coelho, Henrique. Joaquim Nabuco — esboço biográfico. São Paulo, Monteiro Lobato Ed., 1922.
[3] Esses dois textos foram escritos para a Exposição Universal e publicados no volume Le Brésil en 1889. Paris, Librairie Charles Delagrave, 1889.
[4] “Dos Estados Unidos passou a Europa, onde se ligou intimamente ao barão do Rio Branco. Talvez desta circunstância se originasse o amor pela história do Brasil; certo é que esse amor se tornou em verdadeira paixão, e nele acabou cedo com o vago diletantismo de que nós todos padecemos; possuía conhecimentos extensos e profundos, e tinha orgulho, muito justo e legítimo, de ser um dos primeiros especialistas no assunto.” ‘Eduardo Prado’. In: Ensaios e Estudos, 1ª série. Rio de Janeiro, Livraria Briguiet, 1931, p. 340.
[5] Repr. in: Eça de Queirós. Obras completas, vol. III. Rio de Janeiro, Ed. Nova Aguilar, F 19XX, p. XXXX. E
[6] Maria Amália Vaz de Carvalho, in: Figuras de hoje e de ontem.  Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1902. Apud: A. Campos Matos (org.). Dicionário de Eça de Queiroz. Lisboa, Caminho, 1988, verbete Eduardo Prado.
[7] A respeito, eis o que escrevia Octavio Tarquinio de Sousa, no capítulo “Amigos brasileiros de Eça de Queirós”, incluído no volume Livro do Centenário de Eça de Queiroz (Lisboa / Rio de Janeiro: Edições Dois Mundos, 1945): “Prado instalara-se bem no coração e no barulho da grande cidade, no amplo e luxuoso apartamento da Rua Rivoli n° 119, mobilado com muito gosto e em que se destacavam os instrumentos e peças de mais recente descoberta – telefone, máquina de escrever, fonógrafo – com criados de libré e um até inglês, que se gabava de ter servido a Darwin. Mais conforto, mais comodidades, pareceria difícil imaginar-se e essa moradia de Eduardo Prado e o seu dono inspirariam a Eça de Queiroz o 202, dos Campos Elísios, de A cidade e as serras e o requintado Jacinto.”
[8] Nesse sentido, vale celebrar o primeiro sinal dessa reavaliação –  uma tese de doutorado, defendida em 1998, em Assis, em que, pela primeira vez, se procede de modo muito sério ao levantamento dos dados biográficos, à consideração da fortuna crítica e à recolha de textos dispersos do autor: Luiz Eduardo Ramos Borges. Vida e obra do escritor Domício da Gama: um resgate necessário. (mimeo.). Foi esse trabalho a principal referência desta parte de nosso texto.
[9] A discussão dos pressupostos críticos e das observações de caráter mais técnico do texto de Machado se encontra mais aprofundada numa “Apresentação” a O Primo Basílio, à qual se remete o leitor interessado nesse tópico específico:  Queirós, J. M. Eça de. O Primo Basílio. Cotia, Ateliê Editorial, 1998.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Jaime Cortesão - esboço de figura

Amar e servir o Brasil é uma das melhores formas de ser português:
Jaime Cortesão – esboço de figura


[Este texto reproduz, com pequenas alterações, o que integra o volume Missão portuguesa – rotas entrecruzadas, organizado por Rui Moreira Leite e Fernando Lemos, publicado pela Editora da Unesp, em São Paulo, em 2003.]


Não posso dar um depoimento sobre Jaime Cortesão. Afinal, quando ele faleceu, apenas estava chegando, para mim, a hora de aprender a decifrar as letras. E tampouco o historiador foi uma referência próxima como outros exilados portugueses, que tanto contribuíram para a cultura comum, como Adolfo Casais Monteiro e Jorge de Sena. Apenas tardiamente tomei contato com os seus textos e vim a saber da sua vida brasileira. Mas desde que pude conhecer-lhe a obra, foi ela talvez (junto com a de Oliveira Martins) a presença mais constante na minha atividade didática e de pesquisa sobre a cultura portuguesa e brasileira.
Ao perceber que Cortesão tinha estudado de modo tão integrado a história do mundo português dos séculos XVII e XVIII, pareceu-me desde logo estranho que não tivesse ouvido falar dele logo nos primeiros anos de faculdade; depois de conhecer melhor a obra, pareceu-me já descabido que ela tenha ficado tão obscurecida no Brasil a ponto de não haver hoje disponível edição brasileira de qualquer dos seus livros mais importantes.
Talvez o motivo principal de sua pequena difusão na universidade brasileira nas últimas décadas resida naquilo mesmo que julgo sua maior qualidade, pois ao pensar as questões culturais e políticas do período anterior à Independência como questões portuguesas, Cortesão colocou-se na contramão de uma corrente ideológica até hoje muito forte e atuante: a que consiste em repetir a projeção romântica dos ideais nacionalistas e nativistas sobre o passado colonial. Essa corrente que, durante décadas anos, teve força suficiente para praticamente banir da universidade brasileira um pensador nacional de vulto tão grande quanto Gilberto Freyre, parece finalmente estar perdendo lugar na descrição do período colonial. E, na esteira do sucesso da crítica da teleologia nacionalista das principais narrativas de história da cultura brasileira, por certo se desenhará um novo lugar para uma obra tão rica de questões quanto a do autor de Os descobrimentos portugueses.
            Dado o relativo desconhecimento contemporâneo do vulto humano e das principais linhas de articulação da sua obra, optei neste texto de apresentação e homenagem, por apresentar um sucinto panorama da vida e da obra de Jaime Cortesão, de modo a situar devidamente nele a importância da sua fase brasileira. No que diz respeito à análise da obra, concentrei-me, pelos mesmos motivos, no comentário mais amplo, porém não tão aprofundado quanto gostaria de poder fazê-lo, daquele que considero o trabalho mais importante dos seus estudos luso-brasileiros: Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid.

Jaime Zuzarte Cortesão nasceu em Ançã, perto de Coimbra, em 1884 e morreu em Lisboa, em 1960. Formado em Medicina em 1910, depois de ter seguido por algum tempo o curso de Direito e, antes, o de Belas-Artes, exerce a profissão por pouco tempo. De fato, já em 1912, que é também o ano do seu casamento, abandona a carreira médica ao ser nomeado professor de História e Literatura no Liceu Rodrigues de Freitas, no Porto. Só voltará a praticar a ciência em que era diplomado por um breve período e em situação de guerra. Todo o resto da sua vida centrou-se na atividade política, na literatura e, principalmente, no estudo da história.
Desde 1908, Cortesão fora adepto e militante do Partido Republicano, pelo qual tentará ser eleito deputado em 1911, por Coimbra. Posteriormente, quando de sua participação na Renascença, foi diretor do quinzenário A vida Portuguesa -- órgão do movimento -- e um dos mais ardentes defensores das Universidades Populares, onde lecionou graciosamente e proferiu inúmeras conferências.
Durante a primeira Guerra Mundial, em 1915, foi eleito deputado e marcou a sua atuação com a defesa, pela tribuna e pelos jornais, da intervenção de Portugal no conflito, ao lado da Inglaterra. Juntando as palavras ao gesto, alistou-se em 1917 e seguiu para a França como médico. Tendo participado ativamente dos socorros aos feridos na frente de batalha, acabou atingido por gases químicos em 1918. Temporariamente cego, voltou a Portugal e ali foi condecorado com a Cruz de Guerra. Em breve, porém, defrontou-se com a ditadura de Sidónio Pais, que o encarcerou por três meses em incomunicabilidade total. Após o assassinato de Sidónio e a conseqüente alteração do quadro político, Cortesão voltou à ativa, sendo, em 1919, nomeado Diretor da Biblioteca Nacional de Lisboa.
Foi esse o período mais profícuo da sua vida em Portugal. No cargo em que permaneceu até 1927, liderou o famoso Grupo da Biblioteca (composto por Raul Proença, António Sérgio, Aquilino Ribeiro, Raul Brandão, Afonso Lopes Vieira, entre outros) e cuidou da expansão do acervo. Foi ainda nesse posto que se empenhou na oposição ao regime autoritário surgido do golpe de 1926, integrando a Junta Revolucionária de 3 de fevereiro de 1927. Do ponto de vista da constituição da sua obra, datam dessa época alguns trabalhos fundamentais, como A expedição de Pedro Álvares Cabral e o Descobrimento do Brasil (1922), e o artigo em que inicia uma das linhas mais conhecidas da sua obra histórica: "Do sigilo nacional sobre os Descobrimentos" (1924).
Com o fracasso do movimento revolucionário de oposição à ditadura militar, começa o longo período de exílio de Jaime Cortesão: segue para a Espanha, e daí para a França, onde permanece de 1927 a 1931. Entre 31 e 39, reside na Espanha, até que a vitória de Franco o obriga a fugir novamente para a França, onde permanece até o ano seguinte.
Durante esses anos, impossibilitado de trabalhar nos arquivos portugueses, desenvolve pesquisa em arquivos estrangeiros e produz outros trabalhos interessantes, entre os quais se destacam, por se vincularem à contribuição mais original de sua obra, L'expansion des Portugais dans l'histoire de la civilisation (1930), os vários capítulos que escreveu sobre os Descobrimentos para a História de Portugal dirigida por Damião Peres (1931-4), e os ensaios "O Franciscanismo e a mística dos Descobrimentos" (1932) e "Os fatores democráticos na formação de Portugal" (1930).
1940 é um ano doloroso na biografia de Jaime Cortesão. É o ano em que volta a Portugal, mas apenas por quatro meses. Preso, é logo banido e sai da prisão direto para o Brasil.
Não era a primeira vez que Cortesão vinha ao Brasil. Em 1922, quando ocorreram as comemorações da Independência brasileira, ele tinha integrado a comitiva de intelectuais que acompanharam o presidente António José de Almeida.
No Brasil, Jaime Cortesão vai viver cerca de 17 anos e escrever alguns dos trabalhos fundamentais da historiografia portuguesa moderna. Aqui, também, encontrará apoio governamental para proceder às pesquisas na área de estudos em que sempre se distinguiu mais: a pesquisa histórica fortemente baseada nos dados científicos relativos à navegação e, especialmente, na evolução do conhecimento geográfico e cartográfico. De fato, desde 1944, o historiador passa a ensinar duas disciplinas no Instituto Rio Branco: História da cartografia no Brasil e História da formação territorial no Brasil.
A lista dos trabalhos de Cortesão escritos durante o seu período brasileiro é bastante grande e os títulos são bem conhecidos. Mas para dar uma idéia real da atividade do historiador português no Brasil, eis aqui uma pequena relação: A carta de Pero Vaz de Caminha (1943), Cabral e as origens do Brasil (1944), Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid (1950), Manuscritos da Coleção de Angelis (Jesuítas e Bandeirantes no Guairá, Tapé, Itatim, Paraguai e Sacramento (1951), A fundação de São Paulo -- capital geográfica do Brasil (1955), “Brasil (hist. do período colonial)”, in Historia de América y de los pueblos americanos (1956), Pauliceae Lusitana Monumenta Historica (1956-60), Raposo Tavares e a Formação Territorial do Brasil (1958).
Além desses trabalhos notáveis, Jaime Cortesão foi ainda o curador da grande exposição comemorativa do quarto centenário de fundação da cidade de São Paulo, realizada em 1954. A julgar pela maioria dos depoimentos de época, a exposição, que foi um grande sucesso de público, estava organizada de modo inteligente, equilibrado e didático. Não obstante, houve quem acusasse o curador de ter dado mais destaque à seção dedicada a Portugal e ao período colonial, do que à parte dedicada à vida independente da nação e da cidade.
Foi para responder a um desses ataques, que Cortesão escreveu uma resposta que é uma declaração apaixonada de luso-brasileirismo, e sintetiza todo o seu sentimento de gratidão ao país que o acolhera e onde vivia há já 15 anos. Trata-se destas palavras, que se encontram na p. 17 do prefácio do volume A fundação de São Paulo,  capital geográfica do Brasil (1955):

Quando dizemos que impulsos cívicos nos ditaram esta obra, subentendemos, em primeiro lugar, os deveres de cidadão português e de cidadão brasileiro. Brasileiro, repetimos. E, embora anunciemos separadamente essas categorias, sabemos que, em nossa consciência de homem e historiador, as duas se fundem numa única; e que temos direito, pelo nosso passado, a que os brasileiros assim o reconheçam. Abstraindo, aliás, do nosso caso, entendemos que amar e servir o Brasil é uma das melhores formas de ser português.

Na metade do ano de 1957, Cortesão retorna, finalmente, a Portugal. Não será, porém, pacífico esse retorno. Em 1958 é preso novamente por motivos políticos e só parece ter sido libertado graças à pressão da imprensa brasileira e, talvez, à influência do governo brasileiro.
Será curto esse período de retorno, pois virá a falecer em 14 de agosto de 1960, deixando inacabado o segundo volume de O humanismo universalista dos Portugueses, que será publicado postumamente, em 1965.

Além de geógrafo e historiador, Jaime Cortesão foi também autor de teatro, de vária panfletagem política, prosa de ficção, poesia e até mesmo literatura infantil. A notar, ainda, um livro singular: Portugal, a Terra e o Homem, misto de divulgação geográfica, crônica enternecida, livro de viagens e guia turístico.
O primeiro trabalho de vulto de Jaime Cortesão no campo da historiografia foi o artigo sobre a expedição de Cabral, de 1922. Nele, Cortesão explora a nova tendência da historiografia dos descobrimentos, já inaugurada no artigo "A conquista de Ceuta", que Antonio Sérgio publicara em 1920. Como se sabe, a tese desse trabalho é que Portugal se formara e mantivera pela atividade comercial e portuária decorrente das cruzadas, e que, portanto, a revolução de 1383 e os Descobrimentos se deveram basicamente à ascensão de uma burguesia comercial e marítima. Jaime Cor­tesão, com base no estudo dos mapas e dos documentos do período, aceita que a expansão portuguesa seja produto da ação de uma burguesia de interesses e mentalidade cosmopolita, formada também, mas não só (como logo veremos), a partir da atividade portuária no tempo das cruzadas, e tenta investigar qual a forma específica que teve esse empreendimento, quais os seus pressupostos e estratégias.
Já aqui parece despontar também outra das teses fundamentais da obra histórica de Jaime Cortesão, que se explicita em um artigo de 1924, publicado na revista Lusitânia -- "Do sigilo nacional sobre os Descobrimentos". A idéia central desse texto -- desenvolvida e retomada ao longo de toda a vida de Cortesão -- é a de que houvera uma estratégia de segredo a cercar toda a empresa dos descobrimentos. Estratégia essa justificável por motivos militares e de com­petição inter­nacional, e de que teria resultado, ao longo dos séculos, não só uma historização deficiente, mas também uma avaliação muito parcial da dimensão da cultura portuguesa nos séculos XIV e XV, pois os notáveis progressos científicos e técnicos realizados nessa época ficaram quase desconhecidos.
As idéias desses dois textos serão amadurecidas e sistematizadas em 1930 no trabalho intitulado L'expan­sion des Portugais dans l'histoire de la civilisation, publicado em Bruxelas. Já aqui estão bem desenvolvidas duas teses apenas esboçadas na década anterior, e que irão estruturar praticamente toda a reflexão de Jaime Cortesão sobre os descobrimentos portugueses. A elas se vai juntar uma terceira proposição, aparecida logo depois, em 1932, num artigo da Revista de las Españas, "O Franciscanismo e a mística dos Descobrimentos". Boa parte do trabalho de Jaime Cortesão, no que diz respeito às navegações será a tentativa de afirmar, por meio de grande pesquisa documental, este tripé sobre o qual se apóia o edifício da sua história das descobertas.
Em rápidas linhas, o quadro geral de desenvolvi­mento da nação portuguesa construído por Jaime Cortesão ao longo das décadas de 20 e 30, é o seguinte: a organização social democrática do norte de Portugal permitira, no final da Idade Média, o desenvolvimento de um novo modo de vida nacional, fundamentado no comércio marítimo à distância com base na agricultura. Disso decorreu a formação de uma solidariedade maior entre as populações de beira-mar, a consolidação do desenvolvimento das classes urbanas nos portos e a subseqüente trans­formação de Lisboa -- seu melhor porto -- em empório comercial e metrópole de uma grande nação marítima.
De seu ponto de vista, quando esse movimento desembocou na revolução urbana e popular de 1383‑5, solidificou-se a reorganização social e econômica em função do novo modo de vida nacional.
Dessa mesma revolução triunfante se originaram o plano de defesa da costa, que vai implicar a conquista de Ceuta, e a organização metódica e científica da empresa dos descobrimentos, com o necessário investimento na criação e desenvolvimento dos instrumentos técnicos necessários.
Todo esse desabrochar, no entanto, só poderia tornar-se efetivo graças à existência de um pensamento religioso que lhe fornecesse uma base espiritual e moral adequada. Uma alteração de tal monta, segundo Cortesão, não se poderia fazer sem um novo conjunto de valores religiosos. Tal conjunto era, no caso português, o Franciscanismo.
A tese vem, como vimos, desde 1932, e vai frutificar ao longo da obra de maturidade. Sua melhor exposição em vida do autor é um texto  de 1956, intitulado "O sentido da Cultura em Portugal no século XIV", onde se encontram estas linhas:

Sob o ponto de vista religioso, o que caracteriza a Baixa Idade Média, em Portugal, é o advento da Ordem de São Francisco e a sua fulminante expansão desde os meados do século XIII e, com ela, do conjunto de valores novos, sociais, morais e espirituais, a que conveio chamar‑se o Franciscanismo. Até o advento de São Francisco, a terra para os crentes era apenas um lugar de passagem e de expiação; e o ideal religioso, o isolamento, a inércia contemplativa e a abstenção ascética. A São Francisco e aos seus continuadores se deve a mudança radical desse espírito inibitório da expansão do homem no Planeta." (pp. 190‑191)

Do ponto de vista português, as mais palpáveis conseqüências da difusão do franciscanismo teriam sido a afirmação do gosto natura­lista, que o historiador acredita ser a característica mais marcante da literatura portuguesa dos séc. XIV, XV e XVI; o grande desenvolvimento da teoria do direito natural no séc. XIV, e, finalmente, o fortalecimento da atitude empirista frente ao mundo.
Eis como conclui esse texto de 1956:

Agora podemos definir o sentido da cultura em Portugal no século XIV, como sendo laico, até prescindir da intervenção da Igreja na realização do casamento; civilista, até negar ao Papa o direito da investidura e democratizar a coroação; experimental e expansionista, pelo espírito de dúvida e a negação da autoridade dos Antigos, princípios que presidiram aos primeiros descobrimentos atlânticos ‑‑ enfim, sentido geral e solidário pela mesma tendência da ciência, do direito, da literatura, das artes plásticas e da religião. (p. 201)

Essas idéias, centradas basicamente no período da primeira e da segunda dinastias, ocupam Jaime Cortesão até o final da década de 30. Foi apenas em 1940 que publicou o seu primeiro texto mais longo dedicado à história portuguesa posterior, uma comunicação ao Congresso do Mundo Português, intitulada "A geografia e a economia da Restauração".
Exilado no Brasil, Cortesão começa nesse ano a longa série de trabalhos dedicados à história luso-brasileira, em que justamente o período da Restauração merecerá um estudo monumental. São trabalhos que, não obstante iluminarem a vida do Brasil colonial, têm sua maior importância na revisão que promovem da história portuguesa. Como já se notou, os trabalhos luso-brasileiros de Cortesão representam, desde esse primeiro texto de 1940, a mais radical e bem-sucedida tentativa de superar de vez os valores legados pela Geração de 1870 na apreciação da história dos séculos XVII e XVIII.
Em A geografia e a economia da Restauração, Cortesão discute em primeiro lugar um texto de Antero, em que este afirma que a Restauração só foi possível devido ao abatimento da Espanha, e que o Portugal aí ressurgido nada tem a ver com o outro Portugal, sendo apenas um bastardo, definhado e mal vindo, um "produto artificial da diploma­cia que o seu grande amigo, o Inglês herético, protege, maltrata, diverte, explora," que "pela sua própria força não se manteria de pé..." (p. 65).
No texto de Antero, Jaime Cortesão identifica o paradigma de uma posição mais generalizada, e dominante na historiografia do final do século. Essa posição -- cuja melhor exposição se encontra na História de Portugal de Oliveira Martins -- seria, segundo Cortesão, "em grande parte, falsa", pois esses autores, embora fossem "dois artistas de gênio", teriam feito, ­nos moldes do tempo, história filosofante, preconcebida ideologicamente e sem estudo de fontes.
A essa versão da história, Cortesão vai contrapor a sua própria visão do período, que procura integrar o desenvolvimento da indústria açucareira do Brasil e a situação privilegiada de Portugal no domínio do comércio marítimo numa força única que conduziria às lutas pela Restauração da soberania lusitana.
A hipótese, assim, é que o comércio do açúcar no Brasil foi o que levou Portugal à Restauração, graças ao renascimento das forças nacionais, resultante da retomada do gênero de vida mais próprio ao país, isto é, o comércio marítimo à distância baseado na agricultura. A principal peça de seu esquema argumentativo é o combate, vigoroso e erudito, à afirmação generalizada desde 1870 de que a marinha portuguesa entrara em profunda decadência durante o período filipino. Conseguindo demonstrar convincentemente que, pelo contrário, no início do século XVII, a frota portuguesa e a ciência náutica tiveram uma recuperação muito impressionante, o texto termina por afirmar que foi daí que provieram a força e o dinheiro com que a burguesia empenhada nesse comércio sustentou o movimento da Restauração e a guerra contra Espanha.
Esse esforço programático de combater os preconceitos pessimistas legados pela geração de 70 vai desaguar no grande panorama que traçou da vida luso-brasileira do século XVIII em Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid.
Sem contar os tomos de documentos, que são cinco, têm-se aí, centrados na figura de Gusmão, quatro volumes de texto, ao longo dos quais o historiador se empenha em elevar, na medida do possível, a figura tão denegrida de D. João V, que de Oliveira Martins só recebera como elogio a afirmação irônica de que "não era sempre bolônio".
Pode parecer, a princípio, que tenha existido alguma falta de sentido de proporções nesse estudo. Afinal, por que Alexandre de Gusmão, um relativamente obscuro secretário e favorito de D. João V, mereceria uma empresa tão grandiosa como a que um dos maiores historiadores portugueses deste século lhe consagrou?
No entanto, à medida que se percorrem as páginas do livro, percebe-se melhor o escopo da tarefa: nesse luso-brasileiro de origem humilde, estrangeirado, iluminista e adepto da diplomacia como a melhor forma de resolução dos conflitos, Jaime Cortesão vai representar as virtudes portuguesas tradicionais, como as entendia. Gusmão -- que promove, em pleno século XVIII, uma nova edição da política de sigilo no que se refere aos conhecimentos geográficos -- é também um símbolo do universalismo português (pois era luso-brasileiro e "estrangeirado"), da força patriótica das classes populares (porque era de origem humilde, e chegou ao lugar que ocupou graças aos dotes pessoais) e do espírito da nova religiosidade franciscana (porque Gusmão era, segundo o autor, forte simpatizante da ordem de Assis).
Por contraste, a elevação de seu vulto permite descrever a mesquinharia do ambiente português da época, que termina por originar a ditadura do Marquês de Pombal, cuja figura é franca­mente odiosa a Cortesão.
Lendo Alexandre de Gusmão e o tratado de Madrid, a impressão final é, por isso tudo, muito curiosa. É certo que Cortesão destrói, com sólidos argumentos, o quadro negativo e morto que a Geração de 70 – especialmente Oliveira Martins – tinha traçado do período. Vitorino Magalhães Godinho já notou que esse ponto: nenhum outro trabalho tinha contribuído tanto, até esse momento, para enfraquecer, na mitologia da época, a imagem martiniana da morte do Portugal histórico em 1580. Por outro lado, não há como não perceber que, com esse trabalho, Cortesão efetua uma revalorização da história biográfica e simbólica de Oliveira Martins, que explicitamente condenava.

Deformado pela gota, torcido pelas dores, arruinado e amargado até ao fundo da alma pelo desespero de ver a sua obra do tratado caída em mãos tão más e traiçoeiras, o coração parou-lhe, esfriando para sempre os suores de sua paixão de criador crucificado. [...] Na Gazeta de Notícias, nem palavra. Sarcasmo do acaso e remate lógico do seu drama: no dia 1 de Janeiro, noticiava, a seguir, o órgão oficial que o Cardeal Patriarca celebrara um Te Deum de graças pelos grandes favores que o céu concedera, durante o ano volvido, a Portugal.

É assim que Jaime Cortesão narra o final da vida de Alexandre de Gusmão. Sem conhecer a autoria, não seria possível atribuir o trecho a Oliveira Martins? Como essa, há muitas e muitas outras passagens nesse livro em que não apenas o esforço de construção biográfica, mas o próprio estilo e forma de compor os quadros simbólicos, fazem lembrar imediatamente as últimas biografias do autor de Os Filhos de D. João I.
Finalmente, sem querer levar muito longe a homologia, registro apenas que, além do estilo e do procedimento de simbolização das forças históricas em personagens individuais, aproximam ainda de Martins o último Cortesão a crença na história como lição moral e a coloração apaixonadamente política, que colore este livro tão intensamente quanto a paixão política de Martins, segundo Eça de Queirós, coloria o Portugal Contemporâneo. De fato, se o volume é lido contra o pano de fundo do tempo de sua publicação e da situação biográfica do seu autor, é difícil não ver, no elogio do intelectual de classe humilde, geógrafo estrangeirado, luso-brasileiro, lutando contra a mesquinharia da corte de D. João V para afirmar a sua ampla visão política, e na aversão à figura autoritária de Pombal que na mesma época começa a dominar o horizonte político português, uma projeção das vicissitudes do historiador, exilado há 23 anos do seu país, onde imperava uma ditadura.
Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid é uma das principais obras de Jaime Cortesão. Se não for a mais importante, é, sem dúvida, das mais ambiciosas. Para realizá-la, o historiador recebeu total apoio do Instituto Rio Branco, o que lhe permitiu usufruir de excelentes condições de trabalho, como até então nunca tivera. E foi talvez por dispor dessas condições excepcionais que ele pôde unir aqui, de modo forte e articulado como poucas outras vezes o faria, as duas características principais do seu temperamento de pesquisador: o rigor documental e o gosto pela especulação ousada, nem sempre sustentada por provas conclusivas, como é o caso da que vem no capítulo "Alexandre de Gusmão e a Ilha-Brasil": o mito da "ilha-Brasil" que será recusado como formação mítica e como fator histórico importante, pouco depois, por Sérgio Buarque de Holanda. No geral, qualquer que seja o valor que se dê a reparos como o do autor de Visão do Paraíso, a verdade é que o livro de Cortesão é um monumento imponente, que ilumina o período de que se ocupa com uma luz nova: a luz de uma perspectiva integradora, luso-brasileira, que não teve, depois dele, outro momento tão brilhante.
­            Após Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid, Cortesão publica ainda três trabalhos importantes no campo dos estudos coloniais. São eles os já referidos A fundação de São Paulo – capital geográfica do Brasil, Pauliceae Lusitana Monumenta Histórica e Raposo Tavares e a formação territorial do Brasil.
Com esse conjunto de obras, com a sua atividade jornalística intensa no Brasil (de que é exemplo a série de 64 artigos, "Introdução à história das bandeiras",  publicados entre 1947 e 1949 no jornal O Estado de São Paulo) e com a sua atividade quotidiana de professor do Instituto Rio Branco, Jaime Cortesão se tornou uma figura da maior importância  na cultura brasileira do pós-guerra.
Sobre os motivos prováveis dessa obra e dessa figura pública não terem recebido ainda a atenção que merecem dos historiadores da moderna cultura brasileira, já disse o que aqui cabia ser dito do ponto de vista acadêmico. Dum ponto de vista mais geral, creio que o reconhecimento pleno do lugar que ocupou se imporá no dia em que a luso-brasilidade deixar de ser o que tem sido desde há cem anos até hoje, isto é, apenas um discurso oficial, que se esgota em jantares e proclamações rodeadas de pompa e se reduz ao transporte subsidiado, para um e outro lado do Atlântico, de um punhado de figurões especializados em celebrações vazias. Nesse dia (que ainda parece longínquo), quando se buscar a sério alguma nova forma de convergência não-colonial para a cultura de língua portuguesa, será provavelmente reconhecido como exemplo de verdadeiro luso-brasileirismo esse homem que, no século XX, serviu à nação comum com a mesma inteligência brilhante e a mesma dedicação e persistência com que o fez o seu herói do século XVIII.

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Nota bibliográfica:
Todas as citações de textos do autor foram feitas segundo a edição das Obras completas de Jaime Cortesão feita em meados dos anos de 1980 pela editora Livros Horizonte, de Lisboa. A única exceção é o trecho retirado de A fundação de São Paulo, capital geográfica do Brasil. Nesse caso, utilizei a primeira edição, realizada no Rio de Janeiro, em 1955, pela editora Livros de Portugal.
O estudo de Vitorino de Magalhães Godinho a que aludo no corpo do trabalho é o que veio como introdução a Os factores democráticos na formação de Portugal. Intitula-se "Presença de Jaime Cortesão na historiografia portuguesa" e foi escrito em 1964.
Embora não o refira explicitamente, está presente em todo o texto o capítulo em que Óscar Lopes estuda o sentido da obra histórica de Jaime Cortesão em Entre Fialho e Nemésio (Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1987): "Panorama geral dos doutrinários - 1910-1925", pp. 239-247.
Um último registro se faz necessário, para completar a bibliografia crítica essencial aqui utilizada: o do estudo de Jorge Borges de Macedo, "A teoria da história de Jaime Cortesão", publicado no número especial da revista Prelo dedicado ao historiador (Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, dez. de 1984).