terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Haicai - algumas reflexões


.
Quando comecei a interessar-me pelo haicai, no final dos anos de 1980 e começo dos 90, meus primeiros guias foram os livros de R. H. Blyth. A princípio, os dois volumes de A history of haiku. Depois, os quatro de Haiku. Na sequência, o restante da sua obra que pude obter. Junto com Blyth, na esteira do orientalismo da contracultura, vieram Alan Watts  (com The way of Zen; Beat Zen, Square Zen, and Zen e, claro, This is it) e  D. T. Suzuki, cujo volume sobre o Zen e as artes tradicionais li com a mesma voracidade. E foi só depois dessa inflexão marcada pelo grande interesse pelo budismo zen no Ocidente que pude ter acesso aos livros-base da escola de Bashô: os textos de seus discípulos, dos quais era possível deduzir muita coisa que não estava nos anteriores. E foi numa tradução de René Sieffert (Le Haïkaï selon Bashô : propos recueillis par ses disciples) que os encontrei, enquanto me dedicava a aprender o pouco japonês que consegui aprender. E foram eles e outros tratados antigos japoneses que ampliaram um pouco mais o meu ponto de vista sobre o haicai, embora eu me mantivesse ainda dentro das balizas iniciais.
           Desse período resultou, em parceria com minha colega do IEL e professora de língua japonesa, Elza T. Doi, uma coleção de cento e poucos haicais traduzidos, que vinha precedida do que eu tinha podido aprender ao longo daqueles anos.
           Foi depois de publicado esse livro (Haikai: antologia e história) que conheci um grupo de praticantes de haicai em português. Na verdade, foi durante o lançamento do livro que encontrei alguns integrantes do Grêmio Haicai Ipê, que depois frequentaria esporadicamente.
           O Grêmio tinha, naquele momento, uma figura central: Masuda Goga, um imigrante japonês, que praticara o haicai em japonês, fora discípulo de Nempuku Sato, e há algum tempo se esforçava na promoção do haicai tradicional japonês em língua portuguesa. Junto com sua sobrinha Teruko Oda, desenvolveu sempre um magistério ativo e ambos se esforçaram para organizar (já que se tratava do haicai tradicional – cujas características e peculiaridades logo veremos) uma kigologia brasileira. Isto é, um catálogo de palavras indicativas da sucessão das estações do ano. Tarefa dificílima num país com a dimensão longitudinal que tem o nosso.
            Sempre simpatizei muito com o trabalho do Grêmio, com a sua seriedade e com o esforço de enraizar aqui uma tradição e uma prática que eram estranhas à nossa poesia. E embora aqui e ali, numa notação crítica talvez pouco piedosa, apontasse o que me parecia artificial na busca e no esforço de fixação do kigo – bem como na exigência de que todo haicai tivesse um kigo (e apenas um) claramente identificado – assim como na fixação na forma do terceto 5-7-5, que não me parecia razoável como novidade ou esforço – o certo é que acompanhei com o maior interesse o trabalho e os frutos e celebrei os bons resultados, principalmente os que vieram do ensino do haicai às crianças em fase escolar.
             Entretanto, na minha própria prática, apesar da simpatia pelo “tradicional” – tal como descrito no Grêmio e mesmo nos livros de Blyth – nunca me mantive nos limites. Na verdade, meu interesse no haicai pode estar na resposta a uma pergunta que me fiz várias vezes, inclusive no prefácio à coletânea Oeste, na qual reúno o pequeno número de haicais que não tive talvez o bom senso de desprezar: “o que se busca incorporar à nossa tradição, por meio do haicai?”
Porque pouco me interessava uma nova forma fixa. Fazer tercetos com duas redondilhas menores envolvendo uma redondilha maior não tem dificuldade, nem interesse especial. E fixar palavras de estação muitas vezes me pareceu artificialismo pouco razoável e nada estimulante. Já a forma de composição por justaposição, de modo que uma frase ocupe dois versos ou segmentos e uma frase outro verso ou segmento, pareceu sempre interessante e produtiva. Assim também a prescrição de renúncia ao brilho verbal, à metaforização fácil, à personificação. E, talvez mais que tudo, o caráter lacunar, inacabado, do conjunto. Isso me parecia merecer atenção, junto com um outro aspecto, que a mim pareceu sempre o mais importante e desafiador: fazer um impressivo registro “de uma percepção muito ampla ou intensa nascida de uma sensação”. E isso, para continuar usando as palavras do prefácio a Oeste, por meio de uma composição que é “uma recusa a dizer longamente, ou a dizer com muitas palavras”, uma composição que busca “com o mínimo, obter o suficiente”. Uma poética da modéstia e do fragmento, portanto.
              Por isso mesmo, a maior parte dos tercetos daquele livro não mantêm a métrica usual no haicai brasileiro e muitos deles não têm, a rigor, kigo, palavra de estação. E creio que nem por isso deixam de ser haicais. Embora, devo confessar, esse “desvio “do tradicional me incomodasse ainda na época, pois eu ainda conhecia pouco e – pior – do que conhecia tinha extraído apenas aquilo que me parecia mais familiar, mais simplificado.
               Juntei ali, em Oeste, sem o texto em prosa com que os compus, diários de viagem à terra natal, a lugares da infância, e também poemas soltos, escritos em casa ou na rua ou em passeios breves. E mesmo em concursos de haicai. E com eles fiz esse conjunto de tercetos que, nos moldes do que entendemos como haicai tradicional, talvez nem pudessem – a rigor – ser denominados haicais. Mas assim os senti e – curiosamente – assim também os sentiu, de certa forma, Masuda Goga. Ou melhor: tenha tentado senti-los, porque talvez o que tenha feito seja, na sua tradução, “haicaizar” um pouco mais os meus tercetos. Pelo menos foi essa a impressão de uma pessoa que os leu em japonês e me disse que, naquela língua, pareciam de fato muito mais “haicaísticos”. Do que não duvido.
Todas essas lembranças me vieram à mente por conta de dois acontecimentos desconectados entre si, mas cuja conjugação permitiu, como num bom haicai, uma visão mais ampla, a situação de um pequeno evento num campo amplo e profundo, sobre o qual o miúdo não parece tão insignificante.
Esses eventos foram: 1) o fato de eu estar retomando, para publicação, um conjunto de 50 tercetos que em tempos separei para publicar no Cronópios. Era para sair numa latinha virtual, como de sardinhas. E por isso o denominei provisoriamente TOX. Ou seja, algo tóxico talvez, mas ao mesmo tempo, um conjunto de “toques”, traços rápidos, como num desenho breve; 2) o recebimento, por e-mail, de um texto que, mostrando-me histórias inesperadas e curiosas, despertou velhas suspeitas, antigas intuições e terminou por me apresentar novamente, em toda a sua força, questões meio adormecidas. Esse texto, que me foi enviado por Carlos Roberto Bueno, trata de um episódio curioso: a perseguição aos poetas do moderno haiku pelo governo imperial. (O original está aqui: http://haikureality.theartofhaiku.com/esejeng145.htm).
                 Aparentemente, pouco poderia haver ali mais do que curiosidade e espanto com a ideia de prisão de poetas por excesso de modernismo. Entretanto, um ponto logo me chamou a atenção: o papel de Kyoshi Takahama, discípulo de Shiki, no combate pela ortodoxia haicaística, que era também ortodoxia política, patriotismo exacerbado. Ora, Takahama fora mestre de Nempuku Sato, que por sua vez fora mestre de Masuda Goga – que aqui no Brasil continuou a missão de Nempuku: semear um país de haicai. Agora em português.
                  Ao longo da entrevista, aqui e ali apareciam fantasmas meio indistintos ou com forma plena, com que me defrontei ao longo dos anos. E surgiam nomes e referências, que fui perseguindo como pude, por meio da internet e de livros digitais. Por fim, o quadro foi se fixando e fui percebendo algo que tinha intuído há tempos, mas de modo apenas parcial e fora das determinações históricas concretas.
                  O que percebi – além da sempre espantosa dimensão da minha ignorância – foi como a nossa visão do haicai tradicional japonês terminou por ser o reflexo de um movimento moderno no Japão. Mas moderno num sentido não modernista, se assim posso me expressar. É que eu já sabia, como todo estudioso do assunto, que Bashô e os antigos não escreveram “haiku”. Ou seja: nunca escreveram as dezessete sílabas concebendo-as como um conjunto autossuficiente, ou isolado de qualquer contexto verbal. Pelo contrário: produziram “hokku”, isto é, primeira estrofe de renga, e também tercetos em forma de hokku, inseridos em diários de viagem, pinturas e mesmo em folhas soltas, caligrafadas. Mas não com o sentido que tem “haiku”, palavra que eles não conheciam e foi formada por aglutinação de haikai+hokku, dando origem a uma forma literária (talvez mesmo um gênero) sistematizado por Masaoka Shiki. Uma forma literária mais ou menos no mesmo sentido que um soneto é uma forma literária. E ainda tendo como característica a obrigatoriedade de um kigo, uma palavra unívoca de estação.
                   Esse ponto já tinha sido um problema a resolver: como afirmar que o haicai é um terceto diretamente vinculado a uma experiência, se ele existia como gênero (haikai-renga) principalmente como parte de um poema coletivo. E o poema coletivo, evidentemente, ao tratar de percorrer as estações todas do ano, tinha de falar de outros momentos, outros espaços, outras experiências, que não as que delimitavam a sessão de haikai-renga.
                  A questão não é banal, porque dela decorre um conceito de poesia e uma postulação de prática de grande importância: a de que o haicai deve ser composto on site, isto é, deve ser composto a partir de uma experiência imediata, vivida quase em simultâneo à composição.
                   Essa postulação sempre me incomodou por uma questão pessoal. É que talvez o único bom haicai que eu tenha composto seja o primeiro, que produzi num concurso de haicai ao qual fui para apresentar o livro que fiz com a Elza. O tema era “grilo” e, ao me dispor a escrever, busquei na memória uma experiência real. E me ocorreu a mais significativa: eu tinha passado há anos uma madrugada inteira na casa de um amigo, preparando uma aula para um concurso. Um grilo cantava insistentemente do meu lado esquerdo. Levantei-me para o retirar da sala ou matar, mas quando me virei, ele continuou a cantar do mesmo lado. E era sempre assim, onde quer que eu estivesse na sala, o grilo estava sempre à esquerda. E então percebi que tinha perdido um pouco da audição do outro ouvido. Quando me lembrei disso, o haicai se formou sozinho: os grilos cantavam apenas do meu lado esquerdo, eu estava ficando velho. Ganhei o concurso com ele, e gosto ainda hoje do que escrevi. Porém, não foi composto on site. Aliás, naquele burburinho, dificilmente alguém encontraria algum grilo no grande auditório lotado do Centro Cultural São Paulo. De modo que todo mundo ali, inclusive os membros do Grêmio (que eu ainda não conhecia), fizeram haicais “falsos”, no sentido de não procederem a experiência imediata. E ainda hoje fazem, em qualquer concurso com tema revelado na hora...
                    À medida que ia lendo a entrevista de Itō Yūki, essas questões foram emergindo com força, o que me obrigou a fazer a busca de mais informações, a que já me referi.
                   Neste momento, estou traduzindo, do inglês, um texto de enorme interesse – no que me diz respeito e às questões que me importam mais –, de autoria de Haruo Shirane, professor da universidade de Columbia. Espero logo mais poder disponibilizá-lo no blog, porque creio que pode dar ensejo a algum debate, a um rumo novo a pesquisas que, como a minha, se fixaram muito nas definições de campo feitas por estudiosos como Blyth e Henderson, entre outros. Trata-se de um texto já um bocado antigo, e só o meu longo afastamento deste campo de estudo pode explicar que até agora não o tenha lido. Mas ainda bem que as circunstâncias se conjuraram para que eu pudesse encontra-lo, principalmente porque me ajuda a ter mais clareza sobre uma prática que tem, na minha vida, uma grande importância.
O link para o original é este: http://www.haikupoet.com/definitions/beyond_the_haiku_moment.html - e espero que os interessados possam acha-lo útil para o debate.
De imediato, o que me chama a atenção é a maneira como ele demonstra que aquilo que Shiki e Takahama propõem como o mais específico do haicai é, na verdade, um eco da enorme influência ocidental sobre a literatura japonesa. São “modernos”, nesse sentido, porque são mais ocidentalizados, num sentido determinado: promovem uma visão do haiku japonês de grande radicalidade, que ressalta, na verdade, características marcantes da poesia modernista ocidental – principalmente de língua inglesa. A imagem do Japão que nos enviam, apesar do seu patriotismo exacerbado e da crença na restauração da japonidade, é a que melhor nos cai, a que melhor combina com os nossos interesses de época.
Do nosso ponto de vista, isto é, de ocidentais, o haiku restaurado de Shiki e Takahama, relido e atualizado por meio da aproximação com o zen californiano, foi uma boa e feliz projeção de algo que alguma poesia ocidental buscava valorizar.
Creio que esse ponto foi decisivo na minha leitura. Foi um ponto de resolução de várias ponderações que me apresentei ao longo de vários anos.
Por isso, antes de desenvolver as consequências em um ensaio de mais fôlego, chego ao fim deste relato, que se destinava a criar o contexto para que eu pudesse, com proveito, transcrever este trecho do artigo de Itō Yūki:
              “Uma das principais razões para a ênfase no Japão moderno em observações pessoais diretas foi Masaoka Shiki (1867-1902), o pioneiro do haiku moderno do fim do século XIX, que enfatizou o esboço (shasei) baseado na observação direta do sujeito como chave para a composição do haiku moderno. Isso levou ao ginko, às viagens para compor haiku. Shiki denunciou a poesia encadeada como um jogo intelectual e entendeu o haiku como uma expressão do indivíduo. A este respeito, Shiki foi profundamente influenciado pelas noções ocidentais de literatura e poesia; primeiro, ao propor que a literatura deva ser realista e, segundo, que a literatura deva ser uma expressão do indivíduo. Em contraste, haikai, como Bashô o conheceu, tinha sido literatura amplamente imaginativa, e tinha sido uma atividade comunal, o produto de composição ou intercâmbio grupal. Shiki condenou o haikai tradicional por essas duas características. Mesmo que Shiki não tivesse existido, o resultado teria sido semelhante, já que a influência ocidental no Japão a partir do final do século XIX foi enorme. Os primeiros pioneiros americanos e britânicos de haiku de língua inglesa – como Basil Chamberlain, Harold Henderson, R.H. Blyth – tinham interesse limitado no haiku japonês moderno, mas compartilhavam os pressupostos de Shiki. A influência de Ezra Pound e do movimento de poesia modernista (anglo-americano) também foi significativa na formação de noções modernas de haiku. Em suma, o que muitos poetas norte-americanos de haiku pensaram ser exclusivamente japonês tinha, de fato, suas raízes no pensamento literário ocidental.”
É claro que agora, com tempo, tenderei a voltar a estudar, sob uma luz mais ampla, as questões que sempre me interessaram no haicai e na sua apropriação pelo Ocidente moderno. Mas pode ser que não. Que me contente com continuar a fazer os meus haicais de quando em quando. O que me valeu até agora a leitura foi algo simples, mas importante: a boa sensação de que, apesar da teoria e padrões a que me limitei, a prática poética sempre me apontou o caminho mais livre – que, quanto a mim, é o mais correto, desde que a direção seja mantida.







terça-feira, 15 de novembro de 2016

Carta

Escrevi há alguns dias esta carta a Pedro Marques.
.
Mas depois pensei que talvez fosse uma carta que eu poderia endereçar a outras pessoas que estimo, embora não fossem previstas como participantes do nosso diálogo, que muito me honra e gratifica.
Então aqui está. Veremos...
.
Meu caro Pedro,
Quando você me convidou para participar de um evento sobre poesia e me pediu um texto com antecedência de algumas semanas, logo pensei que não faria. Porque tenho escrito muito sobre poesia contemporânea e tenho insistido tanto em alguns pontos que me parecem importantes, que temi ser repetitivo, cansativo. Ou, na pior hipótese, confirmar minha cegueira quanto a outros pontos que, vistos de mais longe, podiam ser mais importantes.
Mas, pela estima que tenho por você, eu tentei escrever algo. Mesmo correndo o risco de ser repetitivo.
Entretanto, à medida que eu ia compondo o texto ia me irritando com o formato de artigo acadêmico. Até que desisti.
Pensei, porém, que lhe devia alguma satisfação. Por isso esta carta, na qual digo mais ou menos o que pensava dizer, se estivesse disposto a enfrentar a forma de escrita que chamamos de “artigo”.
Para ir logo ao ponto, a verdade é que nos últimos tempos tenho pensado a questão da poesia contemporânea brasileira a partir de uma experiência nova de leitura para mim: a leitura sem nenhum compromisso nem obrigação, a leitura não como meio para produzir algo, ou com objetivo de compor repertório – mas apenas como gosto, exercício livre de escolha do que fazer com o tempo e a energia de cada ocasião.
E assim tenho aberto e fechado livros.
Numa atitude talvez condenável, após algumas páginas ao acaso, avalio o que tenho em mãos pelo tempo decorrido entre essas duas ações.
Confesso que não me interessa descobrir o “projeto” de um livro, nem mesmo me interessa muito sua situação na obra do autor, muito menos avaliar o seu interesse a partir dessas questões. Leio – vamos dizer assim – selvagemente: em busca daquela emoção de impacto que faça dizer para mim mesmo “caramba! Ouça isto!”.
Talvez seja um defeito surgido com a aposentadoria e afastamento voluntário dos meios intelectuais, especialmente universitários. Mais ou menos como fez o ontem falecido Leonard Cohen quando se internou no mosteiro budista.
E assim como ele voltou depois a compor e a fazer shows, pode ser que eu ainda volte à universidade ou à atividade acadêmica. Mas, se isso ocorrer, com certeza voltarei muito diferente do que me fui moldando ali ao longo de tantas décadas.
Tudo isso para dizer que leio indiferentemente o de hoje e o de ontem. E procuro no de hoje alguma coisa semelhante ao que me sacode o espírito ao reler ainda uma vez a “Ode a uma urna grega” ou “A máquina do mundo” ou os “Quatro quartetos” ou ainda sonetos de Shakespeare ou Camões.
Mas a verdade é que encontro no presente muito pouca coisa em que me regozijar.
Evidentemente eu sei que olhar para um breve intervalo de tempo como o do presente de uma vida de leitura e buscar ali grandeza semelhante à peneirada pelos séculos todos é ingenuidade. Mas um ar de família é o que procuro. E raramente encontro, ainda que opaco.
Por isso me movo às vezes a refletir.
Por exemplo, lembro-me de uma passagem da Autobiografia precoce de Evgeni Evtuchenko. Ele era já um poeta de sucesso, quando numa livraria viu um leitor folhear o seu primeiro livro. Ficou envaidecido, mas o rapaz, depois de folheá-lo, disse à vendedora: “Não é isso que procuro. Tenho uma amiga, uma jovem muito simpática, que perdeu a confiança na vida. Queria achar algo que a ajudasse a reencontrar-se. Mas todos esses poemas nada dizem. São tambores sem ressonância: e nada têm a ver com a vida.” E me lembro também do soneto de Rilke ao torso de Apolo, de cuja contemplação ele extrai a frase que diz mais ou menos: você tem de mudar a sua vida. Para mim, a grande arte sempre nos diz exatamente alguma coisa relevante e nos diz isso mesmo que Rilke escreveu, de várias formas e em vários níveis.
Também me ocorrem algumas perguntas provocativas de Ezra Pound. Esta, sempre: “você se interessaria pela obra de homens cujas percepções gerais estão abaixo do nível comum?” E muito frequentemente me sinto disposto a fazer este exercício, sobre qualquer texto, adaptando o objetivo ao gênero: “Que o aluno examine um determinado texto, digamos, o editorial do dia em um jornal, para ver se o escritor está tentando ocultar alguma coisa; para ver se ele está ‘encobrindo o seu significado’; se está com medo de dizer o que pensa; ou se está tentando dar a impressão de que pensa sem estar pensando em coisa alguma.” Especialmente o último desafio.
Tudo isso para dizer, Pedro, que agora o que me move para a poesia é a busca de uma experiência significativa, de algo que eu olhe e me surpreenda e me ensine não pela técnica isolada e abstratamente considerada, mas pela técnica em ação (se é que me posso expressar assim). Quero dizer: a técnica nunca me pareceu razão suficiente para estimar ou mesmo me interessar por um poema. A não ser como exemplo didático, nos tempos mais formalistas. Porque de duas uma: ou a técnica produz algum efeito além da sua própria exibição, ou não produz e portanto se exibe como perícia vazia, sem objetivo outro que não seja a autocelebração narcisista.
Dizendo de outro modo: se um poema me causa impacto, me emociona ou me comove ou me deslumbra ou me faz perceber que ali está algo que não posso ainda compreender bem, esse poema me parece válido. Mais que válido: necessário! E eu posso, se quiser entender como aquilo me atingiu, ou se quiser compreender o que estava ali para poder incorporar à minha própria prática poética, descer à análise da técnica, dos meios pelo qual se produziu o efeito. Caso contrário, eu posso ter interesse lúdico na questão da técnica, olhar para aquilo e dizer algo sobre o modo de funcionamento. Mas o interesse morre nisso e se não houve um efeito, aquilo é mais ou menos como um esquema, uma equação, ou – na melhor hipótese – uma demonstração convincente de virtuosismo.
Acresce o problema o fato de que a técnica encontrada na maior parte da lírica contemporânea no Brasil é pífia: a impressão que se tem é que ou ao autor falta de fato capacidade de escrita (e eu conheço vários poetas que são poetas porque não conseguiriam escrever um bom texto em prosa) ou falta confiança no seu leitor imaginado, para que possa exercer a sua perícia até o limite e descoberta do novo.
Quanto a isso, um texto que sempre me acompanha como memória de leitura e critério para a vida é o ensaio de Nietzsche sobre os malefícios da história para a vida. Pode mesmo ser que, depois de tanto incorporá-lo, a minha leitura dele seja idiossincrática. Mas em várias ocasiões utilizei aquele conceito de “manual encarnado”, para descrever a produção poética que traz à tona o tempo todo uma consciência escolar do que terá sido ou deveria ter sido a evolução da poesia nacional ou universal, e indicações sobre a situação daquele poema ou mesmo daquele poeta na tradição de que se julga o herdeiro, mas é talvez apenas o escravo mal formado.
Por tudo isso, com essas referências de base, é claro que me sinto agora (quando elas me acompanham e frequentam até mais do que antes) um estranho no ninho da academia. Daí a dificuldade de redigir um texto no qual debata a poesia contemporânea: porque sou cada vez menos contemporâneo, cada vez (na verdade) menos interessado em ser contemporâneo. Ou talvez pudesse mesmo dizer: cada vez mais decidido a não ser contemporâneo.
Mas quando você me convidou e eu comecei a rabiscar um texto, comecei, como sempre, pelo mais óbvio. Pela pergunta que já me fiz em várias ocasiões e em vários artigos, a ponto de parecer tedioso: o que significa escrever hoje em linhas quebradas, que não vão até o final da página? Essa questão pode desdobrar-se facilmente em outra: se há significado nisso (e é de pressupor-se que haja), qual o critério para o corte das linhas?
Apresentada assim a questão pode parecer rasa ou banal. Mas eu não sinto que seja. Pelo contrário, acho que é a pergunta que todo poeta devia fazer a si mesmo. E que os críticos não deveriam deixar de lado na aproximação a um texto que interesse ou sobre o qual se sinta obrigado a falar.
E aqui volta a questão da técnica e do efeito: quando leio um poema contemporâneo, ele pode me emocionar ou não.
Se não me emociona, o que me resta além de ver que as linhas estão partidas e que isso indica verso e reclama uma disposição de leitura específica?
Se não me emocionou de imediato, posso considerá-lo objetivamente e “analisá-lo”, em busca da razão e da motivação para a sua existência e para a sua forma particular.
No caso da partição das linhas, por exemplo, posso pensar: ok, isto se apresenta como poema, pede uma leitura como poema, mas não me emociona – então vamos ver que mais descubro aqui, por que está assim, o que o poeta pode ter almejado e que não consegui repercutir? E se não consigo motivar as quebras, não consigo obter pela análise aquela emoção que não senti quando fui submetido à técnica sem olhar diretamente para ela, o que me resta fazer com esse poema, senão deixá-lo dormir no livro fechado?
Nesse ponto, já que isto é uma carta e não um artigo, posso fazer uma digressão. É que eu sempre comparo a leitura de poemas à audição de música – clássica ou popular, tanto faz. Quando ouço, por exemplo, Mozart ou Leonard Cohen, não me preocupo com questões de técnica. Deixo a música atuar sobre mim e sigo o fluxo da emoção. Somente depois, se aquilo me comoveu bastante, a audição repetida pode ensejar a análise, que é mais uma curiosidade intelectual para ver como se produziu a mágica ou então um meio de refinar a percepção, pela contemplação de eventos que tinham ficado por assim dizer submersos na massa sonora que me impressionou como um todo.
Quando, porém, leio poesia contemporânea raras vezes sinto significativa emoção estética. A maior parte dessa poesia parece girar à volta de si mesma, à volta da proclamação do seu poder ou da sua excelência ou da sua falência ou da sua função de resistência etc. Quando não gira à volta de outra coisa mais fácil, que é a proclamação da sua modernidade, da sua conformação ao que o poeta imagina ser o desenvolvimento da lírica ocidental, onde encaixa e justifica a sua prática e o seu estilo.
Muitas vezes me pergunto, Pedro, se em outros tempos eu teria sentido de forma diferente a poesia com que conviveria. Pode ser que seja ilusão, mas eu creio que sim, que até há algum tempo (digamos cerca de 60 ou 70 anos) a poesia podia ter ainda poucos leitores, mas sua importância social era maior. Um poeta não era apenas um fazedor de versos, mas alguém que tinha algo a dizer. Sobretudo, um poeta era alguém em quem valia a pena prestar atenção, porque mostrava alguma coisa com palavras. Alguma coisa que podia ser uma forma de ver o cotidiano banal (e redimido pela poesia), ou os grandes movimentos convulsivos da sociedade do tempo. Não é preciso recuar muito. Penso, por exemplo, em Neruda, em Pound e em Maiakovski. Em Drummond. Em Bandeira e mesmo Vinicius de Moraes.
É claro que imagino que essa forma de expor a questão da poesia contemporânea possa ser acusada de tardo-romântica. Ao expô-la, alguém poderia, por exemplo, dizer que ainda tenho por modelo Victor Hugo, o bardo; e não Mallarmé, o sacerdote segregado. E que minha escolha da tradição modernista continua esse modelo eletivo, na medida que meus poetas preferidos são os que desenvolveram uma poesia de intervenção ou de meditação sobre o mundo contemporâneo sub specie aeternitates.
Mas mesmo que seja isso, daí decorre uma pergunta legítima, que só pode ser realmente desqualificada por esprit de corps: qual o sentido de escrever poesia hoje? Ou: o que significa escrever poesia hoje? Sem contar com esta, mais simples: para quem escrever poesia hoje?
É claro que conheço as respostas usuais, a que já me referi, e que se baseiam ou no elogio da poesia como resistência, ou na celebração da comunidade dos eleitos. Mas elas não bastam. Para mim, não bastam, pois eu me pareço um pouco com aquele comprador do livro do Evtuchenko, com a diferença de que a amiga que perdeu a confiança na vida sou eu mesmo.
E por isso agora, livre das amarras do bem-pensar acadêmico, posso dar completa vazão ao que sempre julguei ser a questão realmente importante, decisiva para a continuidade da leitura, que é esta: o que este sujeito tem a me dizer? Do que ele fala? Por que ele julga que eu possa me interessar por isso a ponto de continuar a ler ou a comprar o seu livro? Qual o interesse da percepção de mundo dessa pessoa, para que eu a leia em verso? E claro: por que isso vem até mim em verso? O que significa vir em verso e não em prosa ficcional ou em esquema ou mesmo em prosa analítica didática?
Sobre isso poderíamos conversar. Mas é exatamente sobre isso que tenho escrito já várias vezes, de modo que me tornaria muito repetitivo. E cansativo, por certo.
Quanto a mim, porém, é a única questão quer realmente importa.
Por fim, valendo-me do fato de que numa carta pessoal não é preciso ter uma sequência ordenada de argumentos, queria terminar pela transcrição de um tratado de teatro japonês, escrito pelo grande Zeami.
Sobre o Nô, ele escreveu esta passagem espantosamente lúcida e precisa, que eu acho que se pode aplicar a toda arte:
No que se refere ao Nô, é preciso saber o que é substância [tai = corpo] e efeito imediato [yô = aparência]. A substância pode ser comparada à flor; o efeito, ao perfume. O mesmo com relação à lua e sua claridade. Quando tiveres assimilado perfeitamente a substância, o efeito se apresentará por si só. Ora, o conhecedor vê o Nô com o espírito; o não-conhecedor, com os olhos. O que se vê com o espírito é a substância. O que se vê com os olhos é o efeito. Assim, o estreante vê o efeito e o imita. Trata-se de uma imitação que desconhece o princípio do efeito. O efeito é por definição inimitável. Aquele que conhece o Nô imita sua substância, pois o vê com o espírito. A imitação correta da substância contém o efeito secundário. Quando o não-conhecedor imita o efeito, que ele imagina ser o estilo a tomar como modelo, ele ignora que, ao ser imitado, o efeito se torna substância. Como não se trata de substância autêntica, substância e efeito lhe escapam definitivamente e não subsiste aí nada do estilo [que o iniciante tomou por modelo]. Em tal caso se diz que se trata de Nô sem Lei nem Caminho.
E eu acredito, ainda, que essa passagem possa ser colocada ao lado da reflexão de Nietzsche sobre os malefícios da história para a vida – no que diz respeito aos “manuais encarnados”.
E agora, para encerrar esta longuíssima carta, Pedro, queria dizer que creio que boa parte do desinteresse que tem para mim a enorme maioria da poesia contemporânea venha de algo que pode ser compreendido a partir desse excerto do tratado de Zeami.
Portanto, como vê, eu não teria mesmo muita coisa para dizer sobre a poesia de hoje no Brasil. Ou talvez pudesse apenas fazer alguns exercícios sobre poemas publicados, indagando pela função do corte e do desenho dos versos, como já fiz, aliás, num texto que resultou um tanto antipático.
E por ser assim, em vez de redigir um artigo em grande parte repetitivo, optei por lhe agradecer a convocação e lhe escrever de modo solto as questões que, simultaneamente, me interessam muito e me fazem declinar do convite de redigir um paper para ser apresentado no congresso que organiza.
Um grande abraço,
Paulo

terça-feira, 24 de março de 2015

Notas soltas

24 de março de 2015

Leitura literária: leitura da competência técnica, leitura da intertextualidade. Ambas pressupõem o repertório. Porque a competência técnica, a não ser que seja uma demonstração de princípios gerais, não se demonstra sem o sentido do procedimento num dado quadro cultural. A menos que se acredite num vetor evolutivo, num caminhar para o melhor ou mais puro ou mais econômico. Como não é sequer preciso demonstrar a falta de razão nessa crença, o procedimento é sempre um gesto desenhado contra um pano de fundo de expectativas de satisfação e de recusa, que lhe dá o sentido no momento em que é lançado. E esse pano de fundo “gruda” o objeto de tal modo que a tentativa da sua reconstituição se chama ensino, crítica e história da literatura. Mas a leitura propriamente literária é a do texto num dado registro, isto é: a compreensão de como ele se apropria do passado (incorporar ou recusar, nomeando, é o mesmo, nesse caso) e assim se insere no que há algum tempo chamávamos tradição. Há vários modos de um texto reivindicar o nome “literatura”. Inclusive reivindicando a denominação negativa, que poderia ser antiliteratura, por exemplo. Porque a reivindicação de pertencimento à literatura é uma demanda por uma atitude de leitura, por uma atitude do leitor. Os modos mais simples são a ocupação de um lugar: uma revista literária, um livro. Reivindicar por metonímia, diria. Ou por contágio. Também se reivindica pela ostentação do procedimento associado ao registro, como no caso das linhas interrompidas, que proclamam a poesia. E, por fim, nas formas mais complexas, pelo diálogo com outras obras, pela paráfrase, alusão, paródia, citação: uma reivindicação por metáfora, talvez pudesse dizer. Essas, porém, exigem mais do leitor: exigem a identificação do texto glosado, emulado, recusado ou indiciado – às vezes por uma palavra apenas, ou simples torneio sintático. Exigem um repertório de leituras propriamente literárias. E talvez por isso mesmo tenham sido as formas de produção e recepção que mais prontamente subsumiram o propriamente literário.
Para quem escreve literatura – e mais especificamente para quem escreve poesia – uma questão grave é que não há mais amplo repertório comum; pelo contrário, apesar da disponibilidade da informação e do acesso universal aos textos propiciado pela tecnologia, é cada vez mais estreita a base comum sobre a qual fazer funcionar a intertextualidade. Vê-se isso com mais clareza na dificuldade de fazer paródias. Sem um repertório “clássico”, no sentido de repertório comum, a paródia seca. Na modernidade, a intertextualidade corre sempre o risco de se tornar críptica (o que, diga-se, pode ser um efeito almejado e um poderoso elemento de produção sentido, como se vê, por exemplo, em The waste land). E mesmo a alta paródia e exige a mediação de um leitor especializado ou hiperespecializado – como se vê nesse mesmo poema. Por isso mesmo, em muitos casos contemporâneos a ostensiva intertextualidade tem valor indicial apenas, trazendo para dentro referências tão evidentes que já não têm poder algum de significação, além do de conclamar o literário ou reivindicar o pertencimento a um clã – o clã da pedra, por exemplo, se fosse para referir o mais simples e banal hoje na poesia brasileira. Por outro lado, a incorporação discreta corre o risco de não produzir nenhum sentido no leitor, ficando a esperança em que um remanescente especialista um dia a revele, explicitando a referência para que ela possa finalmente atuar como elemento de sentido pleno. Ou então, o que é o pior, a incorporação discreta não se decifra como apropriação legítima, que busca, com a redução da revelação da co-autoria, que o apropriado funcione plenamente e apenas ganhe mais densidade de sentido com a decifração – decifra-se como plágio, essa denominação tão grata à ignorância.
Em algum lugar está escrito que o uso de aspas ao incorporar um texto clássico era considerado, na China antiga, um insulto à inteligência e à cultura do leitor. Pode não ser verdade, mas sobre essa afirmação se poderia reconstruir a utopia da leitura preferencialmente literária.
Não gostaria que estas reflexões matinais, soltas e esparsas antes sequer do café da manhã, fossem apenas uma distopia simplificadora. É certo que o sentido se dá a ler e se produz sobre as ruínas dos antigos modos de leitura. E é provável que isso seja exatamente o ponto sobre o qual se equilibra a nossa modernidade agônica. Mas isso não me faz duvidar do fato de que todo um modo de escrever e de ler passa por um momento singular de transformação, sobre cujas causas e consequências valeria a pena especular, em vez de buscar refúgio nas boas intenções e na reafirmação da crença na perenidade da “literatura”.

terça-feira, 1 de julho de 2014

Haiku & haikai - nota de apresentação



               Haiku & haikai – descobrindo a natureza é um livro comovente. Elaborado e publicado em edição particular por Akiko Kurihara neste ano de 2014, põe ao alcance dos que não têm acesso aos textos em japonês uma produção do maior interesse. Mais que isso: um conjunto de poemas que, delicadamente, deixa perceber as dificuldades, as agruras e as pequenas alegrias do período de adaptação dos imigrantes ao clima e à natureza brasileira.
                O título do livro revela seu duplo objetivo: contar a história – com exemplos – do haiku no Brasil (isto é, do haikai escrito aqui, mas em japonês) e completá-la com um apanhado das principais tendências do haikai (isto é, o poema em português, feito com inspiração no haiku).
                Embora o valor da segunda parte seja grande, é na primeira que reside o maior ganho do livro, pela sua singularidade. É que a história do haikai no Brasil tem sido contada, de várias perspectivas, nos últimos anos. Já a história do haiku tem muito menos fortuna crítica e, sobretudo, menos exemplos dos poemas produzidos pelos imigrantes e seus descendentes imediatos.
                Li o livro com prazer e emoção. Nele, além de muita informação e boa iconografia, há textos de vários tipos, escolas e qualidade.
                Não vou me alongar muito, pois meu objetivo aqui é fazer uns pequenos registros, que levem ao conhecimento dos eventuais leitores deste blog alguns haikus que me parecem muito dignos de registro. Todos transcritos diretamente do livro, em tradução da autora.
                E começo com este, que me parece bastante simbólico do que foi a história do haiku no Brasil, pois nele se anota uma das profundas diferenças culturais (aqui apenas mais sensível, porque dizendo respeito imediatamente ao corpo) entre o país de origem e o de destino, qual seja tocar a pessoa, nos cumprimentos, costume esse inexistente entre os japoneses:

Os imigrantes recém-chegados
Ofendidos com os tapinhas
De bom-dia.
                               (autor: Shuhei Uetsuda, 1876-1935)

                E se tivesse de escolher um haiku que pudesse fazer conjunto, pelo sentimento, com esse que acabo de transcrever, escolheria este, escrito por Gijindo Kurihara:

Montanhas ao longe,
A correnteza primaveril,
Tudo remete à terra natal.

             Também me comoveu este haiku de Keiseki Kimura, que resume uma vida de trabalho na sua recompensa frugal:

Cadeira reclinada de vime,
Descanso reconfortante
Sob o Cruzeiro do Sul.

              Assim como me chamaram muito a atenção os haikus que falam da integração difícil, porém inevitável:

Feijão com arroz,
Firma-se o propósito
Ao se naturalizar.
(Kenichi Takao)

Dia da saúde,
Cumprimenta-se com a mão
Calejada pela enxada.
(Tyomin Izuno)

Comemora-se o dia da imigração
Com vereador nissei
E prefeito sansei.
(Seiryushi Aoyagui)

Faz-se tofu
Com amendoim
Para ficar diferente.
(Tazuko Arata)

            Grande parte dos haikus recolhidos no livro traz a marca das adversidades enfrentadas pelos imigrantes, bem como o registro de alguns dos pequenos prazeres na vida de labuta. E mesmo no campo das adversidades, não falta muitas vezes um tom de divertida melancolia, que é característico do haiku clássico.

Cobertor
Mais leve do que o sonho
Do meu filho
(Mikio Higuchi)

Olhando o céu
Onde esvoaçam libélulas,
Fumo o cigarro.
(Idem)

Festival de verão,
A moça bonita de quimono
É a minha filha.
(Shunpu Mihara)

Dia em que tudo sai errado,
Ao ficar de guarda no chiqueiro,
As galinhas foram roubadas.
(Tonan Tanaka)

Outono quente
Só as tiriricas
Crescem como peste.
(Mika Iwaki)

           Vários outros mereceriam transcrição e comentário. E talvez volte a eles, em outro momento, depois de dada a notícia inicial.
            Por agora, queria encerrar esta breve apresentação do livro, com uma rápida incursão na sua segunda parte. Mais exatamente, no domínio dos descendentes que se dedicaram ao cultivo do haikai, isto é, do haiku produzido em português.
           E termino este breve relato com a transcrição de três haikais, um de cada um dos mais dedicados cultores e difusores da forma tradicional na nossa língua, pessoas a quem tive e tenho o prazer de conhecer pessoalmente e que admiro pelo belo trabalho pela difusão do haikai no Brasil.

Eis aqui:

À noite, sozinho,
Me deixa mais pensativo
O canto dos insetos.
(Masuda Goga)

Por longos quilômetros
Sob um céu azul profundo –
Milharal ao vento.
(Teruko Oda)

Este álbum de fotos –
Também as traças se nutrem
De velhas lembranças.
(Edson Kenji Iura)