terça-feira, 7 de agosto de 2018

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Editor/autor - depoimento

Este texto foi escrito para integrar o volume A versão do autor, organizado por Jonathan Busato, Laura Moreira e Milton Nakanishi, e publicado pela ComArte, em 2004.
Fazia um ano que eu começara a dirigir a Editora da Unicamp, quando me pediram o depoimento. Por isso, em vez de falar como autor, preferi falar como dublê de autor e editor.
Hoje, em busca de material para uma memória, encontrei esse texto. E por trazer muitas coisas em que acredito, neste momento da nossa história editorial em que muita coisa mudou e está mudando no que diz respeito a editoras universitárias, resolvi publicá-lo no blog.

=++=++=++=++=

Durante muitos anos, fui exclusivamente autor de textos. Alguns, perdidos; a maior parte merecidamente abandonada e esquecida em velhos disquetes de computador, que já não servem nas máquinas modernas; e uns poucos encadernados. Depois, por acidente de percurso, improvisei-me há pouco mais de um ano editor universitário.
            Como autor, sempre reclamei da demora dos trâmites para a elaboração dos livros, dos atrasos constantes dos cronogramas, dos imprevistos de toda ordem durante o processo de edição e lançamento, bem como lamentei a má distribuição, a morosidade da prestação de contas, as pequenas quantias recebidas a título de direitos.
            Desde que me desdobrei em editor, pude observar o outro lado do palco, as coxias e os camarins, bem como os esforços de publicidade e, finalmente, os magros resultados da bilheteria. E pude viver em sobressaltos por conta de vários pequenos fatores de desordem, imprevistos criados por prestadores de serviço, por funcionários e, claro, também por mim.
            Isso produz alguma esquizofrenia.
            Por exemplo: como autor, louvo e admiro o editor da Ateliê, pelo seu importante papel cultural de dar voz a autores estreantes; olho meu próprio primeiro livro de ficção, perfeito no seu design e acabamento, e me lembro de quando o editor me telefonou, dizendo que gostara de ter lido o texto e que por isso ia publicá-lo. Fico, então, feliz que existam alguns poucos como ele. Mas como editor, no dia seguinte, espanto-me com a temeridade do colega, que vai publicando novatos e investindo capital em obras de retorno improvável. Seguisse o meu impulso, como sou seu amigo (e parceiro em vários outros projetos), já lhe teria telefonado, aconselhando-o a não fazer imprudências como essa. Mas volta de novo a voz do autor, e já não telefono, preferindo referi-lo como exemplo a outros autores.
            Há algum tempo, quando era apenas autor, ficava muito irritado quando alguém me dizia que não tinha encontrado algum dos meus livros nas livrarias que frequentava. Praguejava, maldizia a ineficácia da editora, escrevia uma carta de reclamação.
Agora, como editor, continuo ficando irritado, mas além de me enervar por conta dos meus próprios livros, enervam-me em acréscimo as idênticas reclamações de autores publicados pela editora que dirijo. E como me esforço, todos os dias, para minorar os problemas da distribuição, o resultado é uma irritação elevada ao quadrado. A novidade é que ela agora se distribui contra vários alvos simultâneos: o livreiro, que quer descontos tanto mais escorchantes quanto maior é a importância da sua livraria; o distribuidor, que nem sempre faz um bom trabalho, a menos que também tenha, por sua vez, descontos inviáveis; os serviços internos das editoras, que canalizam os seus esforços para a divulgação daqueles títulos que trazem rendimentos mais seguros; o sistema educacional brasileiro, assentado na cultura do xerox e da apostila mal editada; as desastrosas políticas econômicas, que fazem o país passar por seguidas crises de desemprego e instabilidade econômica... Quando um autor me telefona, queixando-se da distribuição do seu livro, penso em pôr ordem no pensamento e lhe explicar tudo isso, mas logo desisto, porque ele provavelmente, como eu em outros tempos, não estará interessado ou simplesmente não acreditará em nada e pensará que são apenas desculpas por um trabalho mal realizado.
Nem tudo, porém, são divergências entre o ponto de vista do autor de ontem e o do editor de hoje. Um ponto central de concordância é o apreço à instituição da editora universitária. Como autor, a minha dívida é enorme: foram a Editora da Unicamp e a Editora da USP as que acolheram a publicação dos trabalhos a que dediquei a maior parte da minha vida intelectual. Se não existissem editoras universitárias que investissem numa política consistente de apoio à publicação de resultados de pesquisa, a parte mais importante dos trabalhos que realizei ao longo de 25 anos de carreira acadêmica estaria ainda inédita, restrita às estantes de teses dessas duas universidades. Em consequência, é muito provável que os demais trabalhos que acabei lançando por outras editoras não tivessem chegado a ser publicados.
Como editor, tento pagar essa dívida, apostando no modelo de editora universitária que me parece o melhor: o que privilegia a exigência acadêmica e a relevância científica na hora de selecionar os títulos, em detrimento das projeções de vendas. Ou seja, procuro entender que a saúde financeira da Editora é apenas uma condição para que ela cumpra o seu papel essencial de lugar de divulgação dos resultados importantes da pesquisa universitária.
Não é uma tarefa simples, como pode parecer, pois implica afrontar a crescente pressão para tornar hegemônico um modelo de editora universitária em moldes comerciais, atenta basicamente aos resultados de venda, aos balanços financeiros e orgulhosa do seu crescente afastamento das instâncias de julgamento qualificado e dos critérios de avaliação acadêmica.
Por fim, um último registro de concordância: o de que a boa editora é aquela trata bem o seu autor, que o compreende não como um elemento de mão de obra, ou como um mero cliente de serviços, mas como parceiro essencial, colega numa tarefa de construção e divulgação do conhecimento, e não mero produtor de mercadoria de sucesso ou de encalhe. É um ideal de editora, e é um fato digno de registro que esse ideal, quando se realiza, quase sempre o faz numa editora mantida e dirigida por uma instituição universitária de primeiro nível.


terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Haicai - algumas reflexões


.
Quando comecei a interessar-me pelo haicai, no final dos anos de 1980 e começo dos 90, meus primeiros guias foram os livros de R. H. Blyth. A princípio, os dois volumes de A history of haiku. Depois, os quatro de Haiku. Na sequência, o restante da sua obra que pude obter. Junto com Blyth, na esteira do orientalismo da contracultura, vieram Alan Watts  (com The way of Zen; Beat Zen, Square Zen, and Zen e, claro, This is it) e  D. T. Suzuki, cujo volume sobre o Zen e as artes tradicionais li com a mesma voracidade. E foi só depois dessa inflexão marcada pelo grande interesse pelo budismo zen no Ocidente que pude ter acesso aos livros-base da escola de Bashô: os textos de seus discípulos, dos quais era possível deduzir muita coisa que não estava nos anteriores. E foi numa tradução de René Sieffert (Le Haïkaï selon Bashô : propos recueillis par ses disciples) que os encontrei, enquanto me dedicava a aprender o pouco japonês que consegui aprender. E foram eles e outros tratados antigos japoneses que ampliaram um pouco mais o meu ponto de vista sobre o haicai, embora eu me mantivesse ainda dentro das balizas iniciais.
           Desse período resultou, em parceria com minha colega do IEL e professora de língua japonesa, Elza T. Doi, uma coleção de cento e poucos haicais traduzidos, que vinha precedida do que eu tinha podido aprender ao longo daqueles anos.
           Foi depois de publicado esse livro (Haikai: antologia e história) que conheci um grupo de praticantes de haicai em português. Na verdade, foi durante o lançamento do livro que encontrei alguns integrantes do Grêmio Haicai Ipê, que depois frequentaria esporadicamente.
           O Grêmio tinha, naquele momento, uma figura central: Masuda Goga, um imigrante japonês, que praticara o haicai em japonês, fora discípulo de Nempuku Sato, e há algum tempo se esforçava na promoção do haicai tradicional japonês em língua portuguesa. Junto com sua sobrinha Teruko Oda, desenvolveu sempre um magistério ativo e ambos se esforçaram para organizar (já que se tratava do haicai tradicional – cujas características e peculiaridades logo veremos) uma kigologia brasileira. Isto é, um catálogo de palavras indicativas da sucessão das estações do ano. Tarefa dificílima num país com a dimensão longitudinal que tem o nosso.
            Sempre simpatizei muito com o trabalho do Grêmio, com a sua seriedade e com o esforço de enraizar aqui uma tradição e uma prática que eram estranhas à nossa poesia. E embora aqui e ali, numa notação crítica talvez pouco piedosa, apontasse o que me parecia artificial na busca e no esforço de fixação do kigo – bem como na exigência de que todo haicai tivesse um kigo (e apenas um) claramente identificado – assim como na fixação na forma do terceto 5-7-5, que não me parecia razoável como novidade ou esforço – o certo é que acompanhei com o maior interesse o trabalho e os frutos e celebrei os bons resultados, principalmente os que vieram do ensino do haicai às crianças em fase escolar.
             Entretanto, na minha própria prática, apesar da simpatia pelo “tradicional” – tal como descrito no Grêmio e mesmo nos livros de Blyth – nunca me mantive nos limites. Na verdade, meu interesse no haicai pode estar na resposta a uma pergunta que me fiz várias vezes, inclusive no prefácio à coletânea Oeste, na qual reúno o pequeno número de haicais que não tive talvez o bom senso de desprezar: “o que se busca incorporar à nossa tradição, por meio do haicai?”
Porque pouco me interessava uma nova forma fixa. Fazer tercetos com duas redondilhas menores envolvendo uma redondilha maior não tem dificuldade, nem interesse especial. E fixar palavras de estação muitas vezes me pareceu artificialismo pouco razoável e nada estimulante. Já a forma de composição por justaposição, de modo que uma frase ocupe dois versos ou segmentos e uma frase outro verso ou segmento, pareceu sempre interessante e produtiva. Assim também a prescrição de renúncia ao brilho verbal, à metaforização fácil, à personificação. E, talvez mais que tudo, o caráter lacunar, inacabado, do conjunto. Isso me parecia merecer atenção, junto com um outro aspecto, que a mim pareceu sempre o mais importante e desafiador: fazer um impressivo registro “de uma percepção muito ampla ou intensa nascida de uma sensação”. E isso, para continuar usando as palavras do prefácio a Oeste, por meio de uma composição que é “uma recusa a dizer longamente, ou a dizer com muitas palavras”, uma composição que busca “com o mínimo, obter o suficiente”. Uma poética da modéstia e do fragmento, portanto.
              Por isso mesmo, a maior parte dos tercetos daquele livro não mantêm a métrica usual no haicai brasileiro e muitos deles não têm, a rigor, kigo, palavra de estação. E creio que nem por isso deixam de ser haicais. Embora, devo confessar, esse “desvio “do tradicional me incomodasse ainda na época, pois eu ainda conhecia pouco e – pior – do que conhecia tinha extraído apenas aquilo que me parecia mais familiar, mais simplificado.
               Juntei ali, em Oeste, sem o texto em prosa com que os compus, diários de viagem à terra natal, a lugares da infância, e também poemas soltos, escritos em casa ou na rua ou em passeios breves. E mesmo em concursos de haicai. E com eles fiz esse conjunto de tercetos que, nos moldes do que entendemos como haicai tradicional, talvez nem pudessem – a rigor – ser denominados haicais. Mas assim os senti e – curiosamente – assim também os sentiu, de certa forma, Masuda Goga. Ou melhor: tenha tentado senti-los, porque talvez o que tenha feito seja, na sua tradução, “haicaizar” um pouco mais os meus tercetos. Pelo menos foi essa a impressão de uma pessoa que os leu em japonês e me disse que, naquela língua, pareciam de fato muito mais “haicaísticos”. Do que não duvido.
Todas essas lembranças me vieram à mente por conta de dois acontecimentos desconectados entre si, mas cuja conjugação permitiu, como num bom haicai, uma visão mais ampla, a situação de um pequeno evento num campo amplo e profundo, sobre o qual o miúdo não parece tão insignificante.
Esses eventos foram: 1) o fato de eu estar retomando, para publicação, um conjunto de 50 tercetos que em tempos separei para publicar no Cronópios. Era para sair numa latinha virtual, como de sardinhas. E por isso o denominei provisoriamente TOX. Ou seja, algo tóxico talvez, mas ao mesmo tempo, um conjunto de “toques”, traços rápidos, como num desenho breve; 2) o recebimento, por e-mail, de um texto que, mostrando-me histórias inesperadas e curiosas, despertou velhas suspeitas, antigas intuições e terminou por me apresentar novamente, em toda a sua força, questões meio adormecidas. Esse texto, que me foi enviado por Carlos Roberto Bueno, trata de um episódio curioso: a perseguição aos poetas do moderno haiku pelo governo imperial. (O original está aqui: http://haikureality.theartofhaiku.com/esejeng145.htm).
                 Aparentemente, pouco poderia haver ali mais do que curiosidade e espanto com a ideia de prisão de poetas por excesso de modernismo. Entretanto, um ponto logo me chamou a atenção: o papel de Kyoshi Takahama, discípulo de Shiki, no combate pela ortodoxia haicaística, que era também ortodoxia política, patriotismo exacerbado. Ora, Takahama fora mestre de Nempuku Sato, que por sua vez fora mestre de Masuda Goga – que aqui no Brasil continuou a missão de Nempuku: semear um país de haicai. Agora em português.
                  Ao longo da entrevista, aqui e ali apareciam fantasmas meio indistintos ou com forma plena, com que me defrontei ao longo dos anos. E surgiam nomes e referências, que fui perseguindo como pude, por meio da internet e de livros digitais. Por fim, o quadro foi se fixando e fui percebendo algo que tinha intuído há tempos, mas de modo apenas parcial e fora das determinações históricas concretas.
                  O que percebi – além da sempre espantosa dimensão da minha ignorância – foi como a nossa visão do haicai tradicional japonês terminou por ser o reflexo de um movimento moderno no Japão. Mas moderno num sentido não modernista, se assim posso me expressar. É que eu já sabia, como todo estudioso do assunto, que Bashô e os antigos não escreveram “haiku”. Ou seja: nunca escreveram as dezessete sílabas concebendo-as como um conjunto autossuficiente, ou isolado de qualquer contexto verbal. Pelo contrário: produziram “hokku”, isto é, primeira estrofe de renga, e também tercetos em forma de hokku, inseridos em diários de viagem, pinturas e mesmo em folhas soltas, caligrafadas. Mas não com o sentido que tem “haiku”, palavra que eles não conheciam e foi formada por aglutinação de haikai+hokku, dando origem a uma forma literária (talvez mesmo um gênero) sistematizado por Masaoka Shiki. Uma forma literária mais ou menos no mesmo sentido que um soneto é uma forma literária. E ainda tendo como característica a obrigatoriedade de um kigo, uma palavra unívoca de estação.
                   Esse ponto já tinha sido um problema a resolver: como afirmar que o haicai é um terceto diretamente vinculado a uma experiência, se ele existia como gênero (haikai-renga) principalmente como parte de um poema coletivo. E o poema coletivo, evidentemente, ao tratar de percorrer as estações todas do ano, tinha de falar de outros momentos, outros espaços, outras experiências, que não as que delimitavam a sessão de haikai-renga.
                  A questão não é banal, porque dela decorre um conceito de poesia e uma postulação de prática de grande importância: a de que o haicai deve ser composto on site, isto é, deve ser composto a partir de uma experiência imediata, vivida quase em simultâneo à composição.
                   Essa postulação sempre me incomodou por uma questão pessoal. É que talvez o único bom haicai que eu tenha composto seja o primeiro, que produzi num concurso de haicai ao qual fui para apresentar o livro que fiz com a Elza. O tema era “grilo” e, ao me dispor a escrever, busquei na memória uma experiência real. E me ocorreu a mais significativa: eu tinha passado há anos uma madrugada inteira na casa de um amigo, preparando uma aula para um concurso. Um grilo cantava insistentemente do meu lado esquerdo. Levantei-me para o retirar da sala ou matar, mas quando me virei, ele continuou a cantar do mesmo lado. E era sempre assim, onde quer que eu estivesse na sala, o grilo estava sempre à esquerda. E então percebi que tinha perdido um pouco da audição do outro ouvido. Quando me lembrei disso, o haicai se formou sozinho: os grilos cantavam apenas do meu lado esquerdo, eu estava ficando velho. Ganhei o concurso com ele, e gosto ainda hoje do que escrevi. Porém, não foi composto on site. Aliás, naquele burburinho, dificilmente alguém encontraria algum grilo no grande auditório lotado do Centro Cultural São Paulo. De modo que todo mundo ali, inclusive os membros do Grêmio (que eu ainda não conhecia), fizeram haicais “falsos”, no sentido de não procederem a experiência imediata. E ainda hoje fazem, em qualquer concurso com tema revelado na hora...
                    À medida que ia lendo a entrevista de Itō Yūki, essas questões foram emergindo com força, o que me obrigou a fazer a busca de mais informações, a que já me referi.
                   Neste momento, estou traduzindo, do inglês, um texto de enorme interesse – no que me diz respeito e às questões que me importam mais –, de autoria de Haruo Shirane, professor da universidade de Columbia. Espero logo mais poder disponibilizá-lo no blog, porque creio que pode dar ensejo a algum debate, a um rumo novo a pesquisas que, como a minha, se fixaram muito nas definições de campo feitas por estudiosos como Blyth e Henderson, entre outros. Trata-se de um texto já um bocado antigo, e só o meu longo afastamento deste campo de estudo pode explicar que até agora não o tenha lido. Mas ainda bem que as circunstâncias se conjuraram para que eu pudesse encontra-lo, principalmente porque me ajuda a ter mais clareza sobre uma prática que tem, na minha vida, uma grande importância.
O link para o original é este: http://www.haikupoet.com/definitions/beyond_the_haiku_moment.html - e espero que os interessados possam acha-lo útil para o debate.
De imediato, o que me chama a atenção é a maneira como ele demonstra que aquilo que Shiki e Takahama propõem como o mais específico do haicai é, na verdade, um eco da enorme influência ocidental sobre a literatura japonesa. São “modernos”, nesse sentido, porque são mais ocidentalizados, num sentido determinado: promovem uma visão do haiku japonês de grande radicalidade, que ressalta, na verdade, características marcantes da poesia modernista ocidental – principalmente de língua inglesa. A imagem do Japão que nos enviam, apesar do seu patriotismo exacerbado e da crença na restauração da japonidade, é a que melhor nos cai, a que melhor combina com os nossos interesses de época.
Do nosso ponto de vista, isto é, de ocidentais, o haiku restaurado de Shiki e Takahama, relido e atualizado por meio da aproximação com o zen californiano, foi uma boa e feliz projeção de algo que alguma poesia ocidental buscava valorizar.
Creio que esse ponto foi decisivo na minha leitura. Foi um ponto de resolução de várias ponderações que me apresentei ao longo de vários anos.
Por isso, antes de desenvolver as consequências em um ensaio de mais fôlego, chego ao fim deste relato, que se destinava a criar o contexto para que eu pudesse, com proveito, transcrever este trecho do artigo de Itō Yūki:
              “Uma das principais razões para a ênfase no Japão moderno em observações pessoais diretas foi Masaoka Shiki (1867-1902), o pioneiro do haiku moderno do fim do século XIX, que enfatizou o esboço (shasei) baseado na observação direta do sujeito como chave para a composição do haiku moderno. Isso levou ao ginko, às viagens para compor haiku. Shiki denunciou a poesia encadeada como um jogo intelectual e entendeu o haiku como uma expressão do indivíduo. A este respeito, Shiki foi profundamente influenciado pelas noções ocidentais de literatura e poesia; primeiro, ao propor que a literatura deva ser realista e, segundo, que a literatura deva ser uma expressão do indivíduo. Em contraste, haikai, como Bashô o conheceu, tinha sido literatura amplamente imaginativa, e tinha sido uma atividade comunal, o produto de composição ou intercâmbio grupal. Shiki condenou o haikai tradicional por essas duas características. Mesmo que Shiki não tivesse existido, o resultado teria sido semelhante, já que a influência ocidental no Japão a partir do final do século XIX foi enorme. Os primeiros pioneiros americanos e britânicos de haiku de língua inglesa – como Basil Chamberlain, Harold Henderson, R.H. Blyth – tinham interesse limitado no haiku japonês moderno, mas compartilhavam os pressupostos de Shiki. A influência de Ezra Pound e do movimento de poesia modernista (anglo-americano) também foi significativa na formação de noções modernas de haiku. Em suma, o que muitos poetas norte-americanos de haiku pensaram ser exclusivamente japonês tinha, de fato, suas raízes no pensamento literário ocidental.”
É claro que agora, com tempo, tenderei a voltar a estudar, sob uma luz mais ampla, as questões que sempre me interessaram no haicai e na sua apropriação pelo Ocidente moderno. Mas pode ser que não. Que me contente com continuar a fazer os meus haicais de quando em quando. O que me valeu até agora a leitura foi algo simples, mas importante: a boa sensação de que, apesar da teoria e padrões a que me limitei, a prática poética sempre me apontou o caminho mais livre – que, quanto a mim, é o mais correto, desde que a direção seja mantida.