quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Arguição: regionalismo e outras fronteiras

No dia 07 de agosto de 2019, teve lugar a arguição dos trabalhos apresentados em concurso de livre-docência pelo Prof. Luiz Gonzaga Marchezan, na Unesp de Araraquara.
Tratava-se de um conjunto notável de trabalhos publicados após o seu doutoramento. Uma seleção dos textos que ele julgou mais representativos. Um material que demonstrava, na produção escrita, as mesmas notáveis qualidades das outras áreas de atuação do docente.
Foi um bom momento, celebrando uma carreira plena.
Na ocasião, para arguir o vasto material apresentado, escolhi uma questão pequena, mas que me interessou desde o início da leitura.
Como as considerações pareceram interessantes a algumas pessoas presentes, prometi colocar o texto neste blog. E é o que faço agora.

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Arguição de Sobre a prosa de ficção brasileira: coletânea comentada, de Luiz Gonzaga Marchezan

Foi com muito prazer que li os ensaios recolhidos e apresentados a esta banca. E foi com maior prazer que percorri as páginas iniciais, nas quais você descreve os critérios de escolha e ordenação deles, bem como faz uma apresentação de cada um e da ligação entre eles.
Creio que esse formato de livre-docência é francamente superior ao antigo. Há algum tempo, de fato, o material apresentado era uma tese. Eu mesmo, quando me preparava para o meu exame, dediquei-me a fazer uma tese. Entretanto, quando resolvi inscrever-me, a legislação tinha mudado e permitia-se, na Unicamp, apresentar, em vez da tese, um conjunto significativo de trabalhos produzidos após o doutoramento.
Como já tinha escrito a tese, apresentei-a. Mas não deixei de apresentar a exame outro material: um conjunto de artigos, como você faz, porque me parecia muito mais importante, para definir o perfil do livre-docente, considerar a sua produção ao longo do tempo, bem como a vinculação daquela produção com as atividades de ensino.
Foi, portanto, com grande satisfação que fui percorrendo o texto de apresentação e saltando dele para cada um dos ensaios que ele resumia ou comentava, porque assim pude acompanhar o desenvolvimento das suas inquietações e os resultados do seu trabalho em várias frentes.
E vi que estamos frente a um perfil notável de pesquisador e professor, que se apresenta a nós de corpo inteiro. Digo isso porque não temos aqui um conjunto de artigos amarrados à volta de um tema. Pelo contrário, o volume é dividido em duas partes bem distintas, a segunda das quais refletindo as inflexões contemporâneas do seu interesse e pensamento, que já vão longe das que deram origem à parte maior do trabalho.

Ao preparar esta fala, pensei em começar pelo assunto que melhor conheço. No caso, o artigo sobre Dom Casmurro, no qual você faz algo notável, que foi praticamente ignorar a leitura de Roberto Schwarz, o “paradigma do pé atrás”. De fato, ao ler o texto percebo que você faz um esforço de analisar o romance fora desse paradigma e fora dos esquemas e propostas de leitura que a ele se contrapõem. Haveria várias considerações a fazer sobre a sua aproximação a esse romance e creio que eu me sentiria mais seguro do que vou me sentir, seguindo o rumo que escolhi.
Mas a verdade é que um exame como este não é em nada parecido com um exame de doutoramento. Aqui não se trata de arguir topicamente uma tese ou um conjunto de trabalhos, mas de compreender e avaliar um percurso intelectual, pesar os frutos de uma carreira extensa, tanto no aspecto didático quanto no aspecto da produção de reflexões por escrito.
Por isso, para aproveitar o momento com um colega que seguramente sabe mais do que eu num campo no qual sou insipiente, resolvi conversar sobre aquilo que menos conheço. 
Portanto, vamos falar de regionalismo. E as notas soltas que vou apresentar a seguir pretendem ser apenas isso mesmo: notas soltas que têm como expectativa maior propiciar aqui uma conversa sobre um tema importante para você, na qual eu possa aprender um pouco.

Dito isso, vamos lá.

Logo no início da sua apresentação, na página 12, você traz esta consideração: “a consolidação da literatura brasileira, a partir do Romantismo, apresenta-nos duas tendências, duas temáticas, situadas em espaços regional e urbano”. É um ponto de partida, um traçado que acompanhará as reflexões posteriores, porque você vai pensar o regionalismo como tendência e como temática, ao longo de um eixo temporal. Ou seja, como uma tradição.

            E creio que um ponto importante da sua visada é a asserção de Antonio Candido de que “um estágio fundamental na superação da dependência é a capacidade de produzir obras de primeira ordem, influenciada, não por modelos estrangeiros imediatos, mas por exemplos nacionais anteriores”, p. 11

Uma parte muito interessante do seu trabalho – e em volume creio que é a mais extensa no conjunto de textos apresentado a exame – é aquela na qual você trabalha “a memória que a literatura tem de si mesma”, ou seja, na definição de Samoyaut, a intertextualidade. (P. 10)

E considerando a perspectiva adotada a partir da referência a Candido, seu trabalho sobre o tema se desenvolve de modo a demonstrar, naquilo que poderia ser visto como uma linha por assim dizer mais nacional (a literatura em espaço regional), a dinâmica da superação da dependência.

Na delimitação do corpus para o estudo dessa questão, assim, você delimita um terreno que denomina de regionalismo. Não vou agora tratar do modo intertextual que você identifica como predominante, que é a paródia. Interessa-me conversar um pouco sobre o conceito de “regionalismo” e sobre a sua operacionalidade e aproveitamento na sua reflexão.

Nesse sentido, em primeiro lugar eu queria observar que na sua descrição das temáticas predominantes na formação da literatura brasileira não comparece com força definidora a oposição urbano/rural, que talvez fosse a mais elementar. De fato, essa oposição clássica é substituída, desde a formulação inicial, pela dicotomia urbano/ regional. O que me fez começar a refletir sobre o alcance dessa palavra, regionalismo, na trama dos conceitos do seu trabalho.

Isso porque Os corumbas, assim como Moleque Ricardoe principalmente Capitães de Areia são, digamos, urbanos pelo espaço em que decorre a ação. Mas frequentemente se enquadram nas descrições críticas na categoria “regionalismo”.
O termo, portanto, me despertou a atenção. Exigiu reflexão. E foi o que me propus a fazer: pensar sobre ele, a partir do uso que vejo no seu trabalho, como forma de dialogar com você.


Lendo o que escreveu na página 17 sobre José Candido de Carvalho (“o regionalismo do escritor segue a modernidade da linhagem modernista, voltado para o tempo presente e para a tradição do regionalismo nacional”), percebo que um ponto realmente importante para a sua reflexão é a existência de uma tradição no regionalismo. 

Nesse primeiro texto, você afirma que, “o espaço típico, regional, nos dois romances (Fogo MortoO coronel e o lobisomem), constitui a base do discurso interpretativo da enunciação.” E que “há ... nos dois romances, uma relação íntima entre as ações das personagens e os espaços ocupados por elas”.

Enquanto lia esse trabalho, lembrei-me da discussão feita por Luis Costa Lima (em A literatura no Brasil) sobre o conceito de regionalismo. E lá fui conferir.
Em certo ponto, ele diz: “uma obra é regionalista enquanto a realidade literária se inspire e se ampare em um plano físico e social determinados, que aparece como a sua contraface” – p. 363. Essa definição não conduz a uma valoração exatamente positiva do termo regionalismo, para Costa Lima. Tanto assim que ele vai concluir que os defeitos da obra da Lins do Rego (que ele vê justamente na desarticulação entre a natureza e o homem, que termina por impossibilitar a unidade global da obra) vão fazer dele, de fato, um autor regionalista.

Não é essa, evidentemente, a sua percepção do que seja o regionalismo. Muito menos é esse caráter valorativo que a palavra tem nos seus ensaios. 

E é claro que há um uso do termo regional que está consagrado e se encontra, por exemplo, no trecho de carta de Graciliano que você transcreve na p. 216: “trabalho numa série de contos regionais”. 

Mas uma coisa que eu gostaria de entender melhor é o alcance de postulação referida: a de que o espaço típico constitui a base do discurso interpretativo da enunciação. Porque justamente um ponto interessante desse seu ensaio é a abordagem produtiva do “tema universal da loucura” nas personagens dos dois romances, do seu desajuste em relação à família tradicional e o que esse desajuste revela sobre a sua estrutura. E é só no final, por meio de duas citações, que aparecem duas questões que pareceriam centrais numa abordagem sobre o regionalismo: a de Antonio Olinto, que destaca o linguajar do brasileiro do Centro-Leste; e a de Carpeaux, que destaca em Fogo morto a problemática da decadência do patriarcalismo.

            Eu li com muito interesse a sua análise do espaço, da paisagem ficcional, dos topoiretomados de um romance a outro. E está claro na sua apresentação que esse é um ponto, em princípio, de grande interesse. Mas eu ainda gostaria de perseguir o conceito de regionalismo, antes de comentar alguma outra coisa.

            É que o mesmo Graciliano, que afirmava estar escrevendo contos regionais, na mesma carta diz: “quero ver se consigo fazer psicologia de bichos: cachorros, matutos, etc.” O que me fez perguntar a mim mesmo o que de regionalismo há na psicologia dos bichos. E porque os matutos aparecem aqui no mesmo nível dos cachorros. 
De fato, que regionalismo haveria na psicologia dos bichos? Quero dizer: a psicologia dos bichos, se houver alguma, deveria ser tudo menos regional. Por outro lado, quando diz “cachorros, matutos, etc”, há algo que se insinua nessa redução do humano ao nível do animal. E, principalmente, na distância que se estabelece entre o autor e o tema ou assunto. Nesse sentido, embora se possa fazer coincidir o “regional” com o determinado ou limitado, a ideia da “psicologia dos bichos” tenderia a situar o “regional” no âmbito realmente do externo, do ambiente. Ou seja, seria regional o bicho, ou o seu ambiente, não a sua psicologia.
            No entanto, em outra carta, que você transcreve na p. 217, lemos Graciliano definindo Vidas secascomo “um livrinho, sem paisagens, sem diálogos. E sem amor”. Portanto, se “Baleia” é um “conto regional” e integra um livro sem paisagens nem diálogos, então o regional não é nem a paisagem nem a linguagem. Da mesma forma, Paulo Honório nos diz (e você transcreve a frase na p 23), que escreveu São Bernardo omitindo a paisagem. No entanto, ambos os livros são regionalistas ou classificados como tal (e o próprio autor parecia aceitar a designação, a ponto de usá-la), o que me leva a pensar que “regional” ou “regionalista” são, em alguma medida, termos que estão acima da questão da paisagem ou da linguagem. Mas seria então a configuração num espaço determinado que responderia pela utilização dessas palavras?

            Na página 30, ao descrever Ponciano, você diz que “é personagem de uma história que conta em primeira e terceira pessoa suas sagas, de forma livre, fantástica e com traços regionalistas”.
            Nesse ponto, creio que os traços regionalistas mais importantes – a julgar pela transcrição dos trechos de Rachel de Queiroz e Bosi, na p. 33 – residam no esforço de “compor as vozes da cultura popular em acordes próprios do escritor culto”, ou, mais exatamente, nesse caso, de inventar uma linguagem que provenha da linguagem falada num determinado recorte regional.
            Mas, pensei, em que a linguagem de um Lins do Rego ou, principalmente, a de Graciliano, denota um recorte regional – a não ser no vocabulário típico? O torneio da frase não é, de modo vago, modernista – sem o experimentalismo de 22, em busca de uma espécie de língua literária padrão próxima do coloquial? Uma “língua franca literária”, como a chamou Luís Bueno (p. 62)?

            É certo que em O coronel e o lobisomem, como você frisa, temos um registro de paródia. E por isso a linguagem é mais marcadamente “regionalista” do que em Lins do Rego ou em Graciliano. Mas isso apenas revela, quanto a mim, a dificuldade ou as dificuldades de definir traços comuns a todas as obras que comumente podemos designar como “regionais” ou “regionalistas”.

            No prosseguimento da leitura do seu texto, deparei com uma passagem de Bernardo Élis que me pareceu intrigante. Diz ele: “como não podia deixar de ser, há ao longo da velha história do regionalismo brasileiro uma tradição que permanece, embora o contexto cultural se modifique, permanência que se reflete nos temas ficcionais. Um deles é a maneira de considerar os bichos, os animais domésticos, na descrição abundante e minuciosa de paisagens, vegetais e plantas.” (47)

            Esse de fato me parece um traço interessante, que daria conta de algo que me parece importante, embora eu não tenha muitos elementos para pensar nisso. E este é o sentido último desta intervenção: sugerir pontos de diálogo com você, que tem muito mais leitura do corpus regionalista e refletiu mais longamente sobre isso; dar uma contribuição talvez ao seu pensamento, a partir da minha exterioridade ao campo.

            Esse ponto é a ligação entre “regionalismo” e exotismo, no sentido amplo. Quero dizer: regionalismo e notícia daquilo que não está dentro do universo de referência. No caso, do universo de referência do leitor previsto.

            E para isso queria voltar a uma formulação sua que achei do maior interesse, mas que não vi, nestes textos, desenvolvida como eu gostaria de ter visto. 
            Trata-se do que escreveu na página 13: “Um autor, quando escreve, prevê um leitor plural, variado, geral, e também um leitor singular, distinto, um observador. Tanto um quanto outro veem-se constituídos como sujeito, alguém que percebe, entende, sabe, avalia, interpreta um texto, aceitando ou rejeitando seus argumentos e, até, sua fabulação. É alguém que lê nas características discursivas do texto algo presente a partir da sua materialidade, entre suas escolhas enunciativas. Assim, um texto, nas suas coerções discursivas, expõe tanto as imagens de um autor, como as de um leitor”.

            Achei essa formulação muito interessante, e creio que, a partir dela, seria possível refinar o conceito de regional e regionalismo, transcendendo a restrição ao tema ou a determinação pelo típico.

            Quero dizer, ou melhor, sugerir: não seria possível estabelecer também o grau de “regionalismo” de um texto a partir das imagens de autor e de leitor nele previstas e operantes? 
            Penso nisso porque “regionalismo” é um termo que se utiliza por oposição. Embora se possa falar, como Afrânio Coutinho, de 6 tipos de regiões culturais ou literárias e até de incluir como sub-região o Rio de Janeiro e sua zona suburbana (para ele, até a literatura de Machado poderia, nesse sentido, ser entendida como regional), o certo é que o senso comum no uso do termo trabalha na direção apontada por você, quando traça uma tipologia capaz de abarcar vários autores regionalistas, na p. 50. 
            Essa tipologia se define basicamente pela noção de distância: o regionalismo baseado no caipira, se define pela distância do cosmopolitismo da capital; enquanto o baseado no sertanejo, pela distância da civilização litorânea.
            
            O que me ocorreu é que esse distanciamento espacial implica também um distanciamento temporal – na medida em que o regional tende a aparecer não apenas como outro lugar, mas também como outro tempo. 
A isso eu queria voltar ainda.
            Mas primeiro queria registrar, para a nossa conversa, uma lembrança: a de uns apontamentos escritos por Victor Segalen, nos quais ele operacionaliza a noção de exotismo num âmbito muito mais amplo do que o usualmente circunscrito pela palavra.
            Para Segalen, o exotismo é a experiência do que está fora dos padrões usuais, do diferente. Ele subintitula seu livro (ou projeto de livro), “une esthétique du divers”. O diverso, a alteridade, portanto, é que define o exotismo. Para ele, há vários graus de exotismo, conforme uma escala de abstração na vivência da alteridade. O mais simples e comum é o geográfico, das paisagens cheias de surpresa. O mais complexo e elevado é o religioso, que consiste na percepção de Deus como transcendência, ou seja, exterioridade irredutível. Entre essas formas extremas, há gradações: exotismo da sexualidade, exotismo histórico etc.
            Assim compreendido, o exotismo é um ideal político e civilizacional, que tem como adversária uma forma mentis moderna, que sistematicamente combate a diversidade, seja pela extinção do diferente, seja pela sua redução e assimilação enquanto “pitoresco”. Ou seja, o exotismo é uma forma de resistência contra a imposição de um padrão único civilizacional, contra a homogeneização. Uma forma de tratar o “outro” como “outro”.Daí também a ojeriza de Segalen ao turista e ao amante do pitoresco, que ia ao ponto de ele denominar Pierre Loti “um proxeneta da sensação do diferente”.  Ou seja, o exotismo de Segalen nada tem a ver com o registro do pitoresco, que é seu inimigo.
                        
Por fim, ainda no âmbito do exotismo, isto é, da percepção e fruição da alteridade, lembro-me de que a relação com o “outro” foi o critério utilizado por Luís Bueno para estabelecer a tipologia do romance de 30. E foi essa centralidade da noção de outro o que lhe permitiu encontrar um mínimo denominador comum, por meio do qual ele pôde descrever a enorme diversidade da produção romanesca do decênio.
            
            E agora, voltando ao ponto: quando me dediquei a esse assunto a propósito de um autor português, vali-me da sugestão de Segalen de que o distanciamento no espaço é também um afastamento no tempo. Ou seja: quanto mais longe se vai do centro civilizacional, que era a Europa, mais se recua no tempo. Isso para o bem ou para o mal: em direção à barbárie ou em direção a uma idade de ouro. 
            Deslocar-se, assim, é buscar o passado.

            Todas essas questões e sugestões me ocorreram meio desordenadamente na leitura do seu trabalho, porque me pareceu que um ponto importante do conceito de regionalismo, tal como aparece na literatura brasileira, é a identificação do regional como correspondendo a um estado passado (não necessariamente ultrapassado, pelo contrário) da evolução nacional. Uma das metáforas centrais em certo ponto do seu trabalho, é a da árvore. E, nessa metáfora da árvore, a questão do enraizamento.
            O regionalismo, dentro de um projeto de construção da literatura nacional ou mesmo da nação, poderia ser visto com uma busca das raízes? Ir para a região, afastando-se da metrópole ou da civilização litorânea, é ir de alguma forma para o passado?
            
            Também me ocorreram essas perguntas a propósito da sua formulação sobre o leitor previsto pelo autor. A função-leitor. E me perguntei se não seria possível construir uma definição ou mesmo uma tipologia do regionalismo a partir do jogo das imagens autor/leitor existente nos textos.

            Por exemplo: qual a posição do autor e do leitor em relação à matéria ficcional de O Gaúcho ou de O tronco do Ipê, de Alencar? É muito diferente do que ocorre nos romances indianistas? Quero dizer: não se tem, nesses dois romances regionalistas de Alencar, um autor falando de um assunto que lhe é alheio (no sentido da vivência – ou seja, algo que nada tem de testemunhal ou que se estribe numa experiência direta, e quem nem mesmo pode reivindica-la) para um leitor disposto a ser informado de algo distante da sua própria experiência e contexto? Não é algo semelhante o que ocorre no romance indianista? E, nesse caso, seria demais falar em exotismo, mesmo no sentido menos abrangente da palavra?

            Por outro lado, o jogo entre autor e leitor previsto, nesses romances, não é profundamente diferente do que vemos em Machado? Ou mesmo no Alencar dos romances urbanos?
            Se for assim, não faz sentido falar, como Coutinho, que Machado pertence a uma região ou sub-região literária... O que nos leva a pensar que o conceito de “região literária” de Coutinho pouco ajuda no estabelecimento do conceito de “regionalismo” ou na propriedade de atribuir tal palavra para descrever esta ou aquela obra.

            Por outro lado, quando Lins do Rego ou Graciliano escreve, qual o jogo? Para quem eles escrevem? Que notícia dão?
            Luís Bueno conta a febre que houve de romance nordestino. Algo semelhante, em certo sentido, à gula que Eça de Queirós registrava na Inglaterra, no fim do XIX, por livros de viagens. O regionalismo seria, nesse sentido, em alguma medida, um “dar notícia” do diverso, do diferente, do atrasado ou do paraíso perdido aos leitores concentrados na corte ou nas grandes cidades do tempo?
            E seria possível (ou seria sem sentido?) hierarquizar os romances regionalistas conforme seu interesse no oferecimento do típico (da macumba pra turistas, para retomar a frase de Oswald) ou no esforço de manter o típico e o pitoresco subordinado ao interesse maior da coerência estética?

            Quando tentava pôr alguma ordem nessas ideias, lembrei-me de uma referência que não consegui achar. Creio que era uma consideração de Inglês de Sousa sobre que tipo de linguagem usar ao escrever sobre uma região afastada. O ponto era que usar a linguagem da região exigiria uma profusão de notas que seria insuportável para o leitor. Não estou seguro, porém, de que tenha sido Inglês de Sousa a defrontar-se com esse problema – que foi o problema com que se defrontou Alencar ao usar a sua linguagem índia, por sinal. 
Mas seja dele ou de outro escritor “regionalista”, é uma questão válida, que incide sobre o leitor previsto no romance regionalista – que poucas vezes me parece poder confundir-se com o leitor “regional”. Quero dizer: o romance regionalista se define como tal não apenas pelo assunto ou espaço ficcional, mas também pela destinação: por ser um discurso que não perde de vista o fato de que fala para um público que não compartilha a experiência regional.

            Nesse sentido, é de fato notável que em Lins do Rego ou em Graciliano – depois do Modernismo – já seja bem conseguida a tal língua franca literária, em que já não são necessárias notas de rodapé, nem se apresente a cada momento, de forma crua, a divisão linguística entre o autor que fala para um auditório não regional e as personagens que falam no confinamento regional.    

            Por fim, creio que há um outro sentido da palavra “regionalista” no seu trabalho. É quando você fala de José Candido de Carvalho e, principalmente, de Francisco Dantas. Aí o sentido da palavra não é o mesmo de quando é empregada para definir a literatura de Lins do Rego, por exemplo. Quando você diz, na p. 16, que eles “dão sequência ao regionalismo literário”, entendo que se trata aqui de uma reivindicação: eles reivindicam a tradição, atuam sobre ela, filiam-se a ela, favorecendo um modo de leitura.
            Nesse sentido, ganha relevo o que anota na página seguinte: “Carvalho se faz um cronista de um mundo superado, em desaparecimento, que se inicia, a partir da segunda metade do século XVII, com a lavoura de cana em Campos de Goytacazes, na Baixada Fluminense, seguida de engenhos a vapor, ao lado da pecuária”.
            Ora, não era Lins do Rego também um cronista de um mundo em desaparecimento? Qual a diferença? Por um lado, isso permite que a obra de Carvalho, seja lida como pertencente à tradição regionalista, que reivindica. Por outro lado, algo me faz pensar que a diferença reside na palavra “superado”, pois a paródia de Carvalho parece evocar um mundo que não é mais agônico, e sim morto ou reduzido à fantasmagoria. Ou ao domínio da farsa.
            Já o caso de Coivara da memóriatalvez permita uma leitura diferente, mas que não é o caso de tentar aqui. 
            Basta, por enquanto, que este texto faça o que se propôs fazer: apresentar uns pensamentos soltos de alguém que nunca se dedicou ao tema, mas que, por isso mesmo, possam talvez servir de gatilho a uma conversa.



            

terça-feira, 7 de agosto de 2018

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Editor/autor - depoimento

Este texto foi escrito para integrar o volume A versão do autor, organizado por Jonathan Busato, Laura Moreira e Milton Nakanishi, e publicado pela ComArte, em 2004.
Fazia um ano que eu começara a dirigir a Editora da Unicamp, quando me pediram o depoimento. Por isso, em vez de falar como autor, preferi falar como dublê de autor e editor.
Hoje, em busca de material para uma memória, encontrei esse texto. E por trazer muitas coisas em que acredito, neste momento da nossa história editorial em que muita coisa mudou e está mudando no que diz respeito a editoras universitárias, resolvi publicá-lo no blog.

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Durante muitos anos, fui exclusivamente autor de textos. Alguns, perdidos; a maior parte merecidamente abandonada e esquecida em velhos disquetes de computador, que já não servem nas máquinas modernas; e uns poucos encadernados. Depois, por acidente de percurso, improvisei-me há pouco mais de um ano editor universitário.
            Como autor, sempre reclamei da demora dos trâmites para a elaboração dos livros, dos atrasos constantes dos cronogramas, dos imprevistos de toda ordem durante o processo de edição e lançamento, bem como lamentei a má distribuição, a morosidade da prestação de contas, as pequenas quantias recebidas a título de direitos.
            Desde que me desdobrei em editor, pude observar o outro lado do palco, as coxias e os camarins, bem como os esforços de publicidade e, finalmente, os magros resultados da bilheteria. E pude viver em sobressaltos por conta de vários pequenos fatores de desordem, imprevistos criados por prestadores de serviço, por funcionários e, claro, também por mim.
            Isso produz alguma esquizofrenia.
            Por exemplo: como autor, louvo e admiro o editor da Ateliê, pelo seu importante papel cultural de dar voz a autores estreantes; olho meu próprio primeiro livro de ficção, perfeito no seu design e acabamento, e me lembro de quando o editor me telefonou, dizendo que gostara de ter lido o texto e que por isso ia publicá-lo. Fico, então, feliz que existam alguns poucos como ele. Mas como editor, no dia seguinte, espanto-me com a temeridade do colega, que vai publicando novatos e investindo capital em obras de retorno improvável. Seguisse o meu impulso, como sou seu amigo (e parceiro em vários outros projetos), já lhe teria telefonado, aconselhando-o a não fazer imprudências como essa. Mas volta de novo a voz do autor, e já não telefono, preferindo referi-lo como exemplo a outros autores.
            Há algum tempo, quando era apenas autor, ficava muito irritado quando alguém me dizia que não tinha encontrado algum dos meus livros nas livrarias que frequentava. Praguejava, maldizia a ineficácia da editora, escrevia uma carta de reclamação.
Agora, como editor, continuo ficando irritado, mas além de me enervar por conta dos meus próprios livros, enervam-me em acréscimo as idênticas reclamações de autores publicados pela editora que dirijo. E como me esforço, todos os dias, para minorar os problemas da distribuição, o resultado é uma irritação elevada ao quadrado. A novidade é que ela agora se distribui contra vários alvos simultâneos: o livreiro, que quer descontos tanto mais escorchantes quanto maior é a importância da sua livraria; o distribuidor, que nem sempre faz um bom trabalho, a menos que também tenha, por sua vez, descontos inviáveis; os serviços internos das editoras, que canalizam os seus esforços para a divulgação daqueles títulos que trazem rendimentos mais seguros; o sistema educacional brasileiro, assentado na cultura do xerox e da apostila mal editada; as desastrosas políticas econômicas, que fazem o país passar por seguidas crises de desemprego e instabilidade econômica... Quando um autor me telefona, queixando-se da distribuição do seu livro, penso em pôr ordem no pensamento e lhe explicar tudo isso, mas logo desisto, porque ele provavelmente, como eu em outros tempos, não estará interessado ou simplesmente não acreditará em nada e pensará que são apenas desculpas por um trabalho mal realizado.
Nem tudo, porém, são divergências entre o ponto de vista do autor de ontem e o do editor de hoje. Um ponto central de concordância é o apreço à instituição da editora universitária. Como autor, a minha dívida é enorme: foram a Editora da Unicamp e a Editora da USP as que acolheram a publicação dos trabalhos a que dediquei a maior parte da minha vida intelectual. Se não existissem editoras universitárias que investissem numa política consistente de apoio à publicação de resultados de pesquisa, a parte mais importante dos trabalhos que realizei ao longo de 25 anos de carreira acadêmica estaria ainda inédita, restrita às estantes de teses dessas duas universidades. Em consequência, é muito provável que os demais trabalhos que acabei lançando por outras editoras não tivessem chegado a ser publicados.
Como editor, tento pagar essa dívida, apostando no modelo de editora universitária que me parece o melhor: o que privilegia a exigência acadêmica e a relevância científica na hora de selecionar os títulos, em detrimento das projeções de vendas. Ou seja, procuro entender que a saúde financeira da Editora é apenas uma condição para que ela cumpra o seu papel essencial de lugar de divulgação dos resultados importantes da pesquisa universitária.
Não é uma tarefa simples, como pode parecer, pois implica afrontar a crescente pressão para tornar hegemônico um modelo de editora universitária em moldes comerciais, atenta basicamente aos resultados de venda, aos balanços financeiros e orgulhosa do seu crescente afastamento das instâncias de julgamento qualificado e dos critérios de avaliação acadêmica.
Por fim, um último registro de concordância: o de que a boa editora é aquela trata bem o seu autor, que o compreende não como um elemento de mão de obra, ou como um mero cliente de serviços, mas como parceiro essencial, colega numa tarefa de construção e divulgação do conhecimento, e não mero produtor de mercadoria de sucesso ou de encalhe. É um ideal de editora, e é um fato digno de registro que esse ideal, quando se realiza, quase sempre o faz numa editora mantida e dirigida por uma instituição universitária de primeiro nível.


terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Haicai - algumas reflexões


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Quando comecei a interessar-me pelo haicai, no final dos anos de 1980 e começo dos 90, meus primeiros guias foram os livros de R. H. Blyth. A princípio, os dois volumes de A history of haiku. Depois, os quatro de Haiku. Na sequência, o restante da sua obra que pude obter. Junto com Blyth, na esteira do orientalismo da contracultura, vieram Alan Watts  (com The way of Zen; Beat Zen, Square Zen, and Zen e, claro, This is it) e  D. T. Suzuki, cujo volume sobre o Zen e as artes tradicionais li com a mesma voracidade. E foi só depois dessa inflexão marcada pelo grande interesse pelo budismo zen no Ocidente que pude ter acesso aos livros-base da escola de Bashô: os textos de seus discípulos, dos quais era possível deduzir muita coisa que não estava nos anteriores. E foi numa tradução de René Sieffert (Le Haïkaï selon Bashô : propos recueillis par ses disciples) que os encontrei, enquanto me dedicava a aprender o pouco japonês que consegui aprender. E foram eles e outros tratados antigos japoneses que ampliaram um pouco mais o meu ponto de vista sobre o haicai, embora eu me mantivesse ainda dentro das balizas iniciais.
           Desse período resultou, em parceria com minha colega do IEL e professora de língua japonesa, Elza T. Doi, uma coleção de cento e poucos haicais traduzidos, que vinha precedida do que eu tinha podido aprender ao longo daqueles anos.
           Foi depois de publicado esse livro (Haikai: antologia e história) que conheci um grupo de praticantes de haicai em português. Na verdade, foi durante o lançamento do livro que encontrei alguns integrantes do Grêmio Haicai Ipê, que depois frequentaria esporadicamente.
           O Grêmio tinha, naquele momento, uma figura central: Masuda Goga, um imigrante japonês, que praticara o haicai em japonês, fora discípulo de Nempuku Sato, e há algum tempo se esforçava na promoção do haicai tradicional japonês em língua portuguesa. Junto com sua sobrinha Teruko Oda, desenvolveu sempre um magistério ativo e ambos se esforçaram para organizar (já que se tratava do haicai tradicional – cujas características e peculiaridades logo veremos) uma kigologia brasileira. Isto é, um catálogo de palavras indicativas da sucessão das estações do ano. Tarefa dificílima num país com a dimensão longitudinal que tem o nosso.
            Sempre simpatizei muito com o trabalho do Grêmio, com a sua seriedade e com o esforço de enraizar aqui uma tradição e uma prática que eram estranhas à nossa poesia. E embora aqui e ali, numa notação crítica talvez pouco piedosa, apontasse o que me parecia artificial na busca e no esforço de fixação do kigo – bem como na exigência de que todo haicai tivesse um kigo (e apenas um) claramente identificado – assim como na fixação na forma do terceto 5-7-5, que não me parecia razoável como novidade ou esforço – o certo é que acompanhei com o maior interesse o trabalho e os frutos e celebrei os bons resultados, principalmente os que vieram do ensino do haicai às crianças em fase escolar.
             Entretanto, na minha própria prática, apesar da simpatia pelo “tradicional” – tal como descrito no Grêmio e mesmo nos livros de Blyth – nunca me mantive nos limites. Na verdade, meu interesse no haicai pode estar na resposta a uma pergunta que me fiz várias vezes, inclusive no prefácio à coletânea Oeste, na qual reúno o pequeno número de haicais que não tive talvez o bom senso de desprezar: “o que se busca incorporar à nossa tradição, por meio do haicai?”
Porque pouco me interessava uma nova forma fixa. Fazer tercetos com duas redondilhas menores envolvendo uma redondilha maior não tem dificuldade, nem interesse especial. E fixar palavras de estação muitas vezes me pareceu artificialismo pouco razoável e nada estimulante. Já a forma de composição por justaposição, de modo que uma frase ocupe dois versos ou segmentos e uma frase outro verso ou segmento, pareceu sempre interessante e produtiva. Assim também a prescrição de renúncia ao brilho verbal, à metaforização fácil, à personificação. E, talvez mais que tudo, o caráter lacunar, inacabado, do conjunto. Isso me parecia merecer atenção, junto com um outro aspecto, que a mim pareceu sempre o mais importante e desafiador: fazer um impressivo registro “de uma percepção muito ampla ou intensa nascida de uma sensação”. E isso, para continuar usando as palavras do prefácio a Oeste, por meio de uma composição que é “uma recusa a dizer longamente, ou a dizer com muitas palavras”, uma composição que busca “com o mínimo, obter o suficiente”. Uma poética da modéstia e do fragmento, portanto.
              Por isso mesmo, a maior parte dos tercetos daquele livro não mantêm a métrica usual no haicai brasileiro e muitos deles não têm, a rigor, kigo, palavra de estação. E creio que nem por isso deixam de ser haicais. Embora, devo confessar, esse “desvio “do tradicional me incomodasse ainda na época, pois eu ainda conhecia pouco e – pior – do que conhecia tinha extraído apenas aquilo que me parecia mais familiar, mais simplificado.
               Juntei ali, em Oeste, sem o texto em prosa com que os compus, diários de viagem à terra natal, a lugares da infância, e também poemas soltos, escritos em casa ou na rua ou em passeios breves. E mesmo em concursos de haicai. E com eles fiz esse conjunto de tercetos que, nos moldes do que entendemos como haicai tradicional, talvez nem pudessem – a rigor – ser denominados haicais. Mas assim os senti e – curiosamente – assim também os sentiu, de certa forma, Masuda Goga. Ou melhor: tenha tentado senti-los, porque talvez o que tenha feito seja, na sua tradução, “haicaizar” um pouco mais os meus tercetos. Pelo menos foi essa a impressão de uma pessoa que os leu em japonês e me disse que, naquela língua, pareciam de fato muito mais “haicaísticos”. Do que não duvido.
Todas essas lembranças me vieram à mente por conta de dois acontecimentos desconectados entre si, mas cuja conjugação permitiu, como num bom haicai, uma visão mais ampla, a situação de um pequeno evento num campo amplo e profundo, sobre o qual o miúdo não parece tão insignificante.
Esses eventos foram: 1) o fato de eu estar retomando, para publicação, um conjunto de 50 tercetos que em tempos separei para publicar no Cronópios. Era para sair numa latinha virtual, como de sardinhas. E por isso o denominei provisoriamente TOX. Ou seja, algo tóxico talvez, mas ao mesmo tempo, um conjunto de “toques”, traços rápidos, como num desenho breve; 2) o recebimento, por e-mail, de um texto que, mostrando-me histórias inesperadas e curiosas, despertou velhas suspeitas, antigas intuições e terminou por me apresentar novamente, em toda a sua força, questões meio adormecidas. Esse texto, que me foi enviado por Carlos Roberto Bueno, trata de um episódio curioso: a perseguição aos poetas do moderno haiku pelo governo imperial. (O original está aqui: http://haikureality.theartofhaiku.com/esejeng145.htm).
                 Aparentemente, pouco poderia haver ali mais do que curiosidade e espanto com a ideia de prisão de poetas por excesso de modernismo. Entretanto, um ponto logo me chamou a atenção: o papel de Kyoshi Takahama, discípulo de Shiki, no combate pela ortodoxia haicaística, que era também ortodoxia política, patriotismo exacerbado. Ora, Takahama fora mestre de Nempuku Sato, que por sua vez fora mestre de Masuda Goga – que aqui no Brasil continuou a missão de Nempuku: semear um país de haicai. Agora em português.
                  Ao longo da entrevista, aqui e ali apareciam fantasmas meio indistintos ou com forma plena, com que me defrontei ao longo dos anos. E surgiam nomes e referências, que fui perseguindo como pude, por meio da internet e de livros digitais. Por fim, o quadro foi se fixando e fui percebendo algo que tinha intuído há tempos, mas de modo apenas parcial e fora das determinações históricas concretas.
                  O que percebi – além da sempre espantosa dimensão da minha ignorância – foi como a nossa visão do haicai tradicional japonês terminou por ser o reflexo de um movimento moderno no Japão. Mas moderno num sentido não modernista, se assim posso me expressar. É que eu já sabia, como todo estudioso do assunto, que Bashô e os antigos não escreveram “haiku”. Ou seja: nunca escreveram as dezessete sílabas concebendo-as como um conjunto autossuficiente, ou isolado de qualquer contexto verbal. Pelo contrário: produziram “hokku”, isto é, primeira estrofe de renga, e também tercetos em forma de hokku, inseridos em diários de viagem, pinturas e mesmo em folhas soltas, caligrafadas. Mas não com o sentido que tem “haiku”, palavra que eles não conheciam e foi formada por aglutinação de haikai+hokku, dando origem a uma forma literária (talvez mesmo um gênero) sistematizado por Masaoka Shiki. Uma forma literária mais ou menos no mesmo sentido que um soneto é uma forma literária. E ainda tendo como característica a obrigatoriedade de um kigo, uma palavra unívoca de estação.
                   Esse ponto já tinha sido um problema a resolver: como afirmar que o haicai é um terceto diretamente vinculado a uma experiência, se ele existia como gênero (haikai-renga) principalmente como parte de um poema coletivo. E o poema coletivo, evidentemente, ao tratar de percorrer as estações todas do ano, tinha de falar de outros momentos, outros espaços, outras experiências, que não as que delimitavam a sessão de haikai-renga.
                  A questão não é banal, porque dela decorre um conceito de poesia e uma postulação de prática de grande importância: a de que o haicai deve ser composto on site, isto é, deve ser composto a partir de uma experiência imediata, vivida quase em simultâneo à composição.
                   Essa postulação sempre me incomodou por uma questão pessoal. É que talvez o único bom haicai que eu tenha composto seja o primeiro, que produzi num concurso de haicai ao qual fui para apresentar o livro que fiz com a Elza. O tema era “grilo” e, ao me dispor a escrever, busquei na memória uma experiência real. E me ocorreu a mais significativa: eu tinha passado há anos uma madrugada inteira na casa de um amigo, preparando uma aula para um concurso. Um grilo cantava insistentemente do meu lado esquerdo. Levantei-me para o retirar da sala ou matar, mas quando me virei, ele continuou a cantar do mesmo lado. E era sempre assim, onde quer que eu estivesse na sala, o grilo estava sempre à esquerda. E então percebi que tinha perdido um pouco da audição do outro ouvido. Quando me lembrei disso, o haicai se formou sozinho: os grilos cantavam apenas do meu lado esquerdo, eu estava ficando velho. Ganhei o concurso com ele, e gosto ainda hoje do que escrevi. Porém, não foi composto on site. Aliás, naquele burburinho, dificilmente alguém encontraria algum grilo no grande auditório lotado do Centro Cultural São Paulo. De modo que todo mundo ali, inclusive os membros do Grêmio (que eu ainda não conhecia), fizeram haicais “falsos”, no sentido de não procederem a experiência imediata. E ainda hoje fazem, em qualquer concurso com tema revelado na hora...
                    À medida que ia lendo a entrevista de Itō Yūki, essas questões foram emergindo com força, o que me obrigou a fazer a busca de mais informações, a que já me referi.
                   Neste momento, estou traduzindo, do inglês, um texto de enorme interesse – no que me diz respeito e às questões que me importam mais –, de autoria de Haruo Shirane, professor da universidade de Columbia. Espero logo mais poder disponibilizá-lo no blog, porque creio que pode dar ensejo a algum debate, a um rumo novo a pesquisas que, como a minha, se fixaram muito nas definições de campo feitas por estudiosos como Blyth e Henderson, entre outros. Trata-se de um texto já um bocado antigo, e só o meu longo afastamento deste campo de estudo pode explicar que até agora não o tenha lido. Mas ainda bem que as circunstâncias se conjuraram para que eu pudesse encontra-lo, principalmente porque me ajuda a ter mais clareza sobre uma prática que tem, na minha vida, uma grande importância.
O link para o original é este: http://www.haikupoet.com/definitions/beyond_the_haiku_moment.html - e espero que os interessados possam acha-lo útil para o debate.
De imediato, o que me chama a atenção é a maneira como ele demonstra que aquilo que Shiki e Takahama propõem como o mais específico do haicai é, na verdade, um eco da enorme influência ocidental sobre a literatura japonesa. São “modernos”, nesse sentido, porque são mais ocidentalizados, num sentido determinado: promovem uma visão do haiku japonês de grande radicalidade, que ressalta, na verdade, características marcantes da poesia modernista ocidental – principalmente de língua inglesa. A imagem do Japão que nos enviam, apesar do seu patriotismo exacerbado e da crença na restauração da japonidade, é a que melhor nos cai, a que melhor combina com os nossos interesses de época.
Do nosso ponto de vista, isto é, de ocidentais, o haiku restaurado de Shiki e Takahama, relido e atualizado por meio da aproximação com o zen californiano, foi uma boa e feliz projeção de algo que alguma poesia ocidental buscava valorizar.
Creio que esse ponto foi decisivo na minha leitura. Foi um ponto de resolução de várias ponderações que me apresentei ao longo de vários anos.
Por isso, antes de desenvolver as consequências em um ensaio de mais fôlego, chego ao fim deste relato, que se destinava a criar o contexto para que eu pudesse, com proveito, transcrever este trecho do artigo de Itō Yūki:
              “Uma das principais razões para a ênfase no Japão moderno em observações pessoais diretas foi Masaoka Shiki (1867-1902), o pioneiro do haiku moderno do fim do século XIX, que enfatizou o esboço (shasei) baseado na observação direta do sujeito como chave para a composição do haiku moderno. Isso levou ao ginko, às viagens para compor haiku. Shiki denunciou a poesia encadeada como um jogo intelectual e entendeu o haiku como uma expressão do indivíduo. A este respeito, Shiki foi profundamente influenciado pelas noções ocidentais de literatura e poesia; primeiro, ao propor que a literatura deva ser realista e, segundo, que a literatura deva ser uma expressão do indivíduo. Em contraste, haikai, como Bashô o conheceu, tinha sido literatura amplamente imaginativa, e tinha sido uma atividade comunal, o produto de composição ou intercâmbio grupal. Shiki condenou o haikai tradicional por essas duas características. Mesmo que Shiki não tivesse existido, o resultado teria sido semelhante, já que a influência ocidental no Japão a partir do final do século XIX foi enorme. Os primeiros pioneiros americanos e britânicos de haiku de língua inglesa – como Basil Chamberlain, Harold Henderson, R.H. Blyth – tinham interesse limitado no haiku japonês moderno, mas compartilhavam os pressupostos de Shiki. A influência de Ezra Pound e do movimento de poesia modernista (anglo-americano) também foi significativa na formação de noções modernas de haiku. Em suma, o que muitos poetas norte-americanos de haiku pensaram ser exclusivamente japonês tinha, de fato, suas raízes no pensamento literário ocidental.”
É claro que agora, com tempo, tenderei a voltar a estudar, sob uma luz mais ampla, as questões que sempre me interessaram no haicai e na sua apropriação pelo Ocidente moderno. Mas pode ser que não. Que me contente com continuar a fazer os meus haicais de quando em quando. O que me valeu até agora a leitura foi algo simples, mas importante: a boa sensação de que, apesar da teoria e padrões a que me limitei, a prática poética sempre me apontou o caminho mais livre – que, quanto a mim, é o mais correto, desde que a direção seja mantida.