TEXTOS DISPONÍVEIS

sábado, 28 de abril de 2012

Hemingway é uma festa

Jornal (3)


Hemingway é uma festa


Relançamento de obras do escritor americano traz de volta ao leitor brasileiro, num dos seus livros mais belos, a evocação da vida em Paris nos anos 20.



            Quando terminei a leitura de Paris é uma festa senti-me em estado de graça. Não há talvez quem não tenha lido (ou visto, em filme) alguma coisa de Hemingway. O sol também se levanta circula muito entre nós e em toda parte também se podem encontrar, novos ou usados, O Velho e o Mar, Por quem os sinos dobram e Adeus às armas. Esses todos eu já conhecia, mas este livro póstumo tão famoso, que estava desaparecido das prateleiras há muito tempo, ainda não.
Hemingway disse certa vez que trocaria uma renda de um milhão de dólares por ano pelo prazer de ler pela primeira vez alguns dos livros de que mais gostava. Lembrei-me dessa frase porque, embora me lamentasse por não ter lido Paris é uma festa até esta semana, senti-me, por outro lado, estranhamente feliz por me haver escapado a edição anterior, pois foi com emoção maior ainda do que quando li pela primeira vez O sol também se levanta que fechei o livro, já decidido a escrever esta resenha e anunciar a boa nova do seu relançamento, em tradução de Ênio Silveira (Bertrand Brasil, R$ 30).
Paris é uma festa (A moveable feast), publicado originalmente em 1964, é a narrativa autobiográfica dos primeiros anos da vida literária de Hemingway. Ele estava casado com Hadley, sua primeira mulher; tinha um filho, muito pouco dinheiro e vários amigos. Alguns dos que são retratados no livro são nomes célebres: Gertrud Stein, James Joyce, Ezra Pound e Scott Fitzgerald. Outros são menos conhecidos entre nós e há também grande número de pessoas cuja memória se perdeu.

Biografia e ficção

Hemingway (1899-1961) parece ter sido uma pessoa intratável. A ponto de suas biografias serem quase sempre um julgamento em que ele acaba condenado. Um bom exemplo é o livro de Anthony Burgess (Ernest Hemingway, 1978) que não procura disfarçar a sua aversão (que em alguns momentos mais se aproxima do nojo) à suposta personalidade do seu assunto. E nesta época de ecologia, feminismo e comportamento politicamente correto, Hemingway não tem grandes chances de ser muito desculpado.
As apreciações usuais de Paris é uma festa, por isso mesmo, mais do que as de outros livros do autor, acabam mediadas fortemente por esse tipo de preocupação. A pergunta recorrente é quase sempre a mesma: é pertinente, é justo, é honesto o retrato que Hemingway traça de si mesmo e dos intelectuais com que conviveu nos anos 20 em Paris?
A questão só desvia o olhar do que realmente importa no livro: o que o torna uma obra-prima e faz que seja hoje tão impressivo quanto em 1964, ano em que foi publicado. O autor, aliás, já apontara o caminho, no Prefácio: "se o leitor preferir, considere este volume como um trabalho de ficção". Resta acrescentar que o que poderia, nos anos 60, ser apenas uma preferência, é hoje a única opção do leitor que não queira ser mais uma vítima da velha falácia biográfica.
É que uma autobiografia (como também uma biografia ou qualquer outra forma narrativa, incluindo aí a História) é sempre um texto de ficção. O que é diferente não é tanto o trabalho de linguagem, mas as balizas que cada tipo de autor escolhe para limitar os seus movimentos e a sua capacidade de não contraditar, com a sua narração, os dados que se consideram objetivos ou passíveis de comprovação objetiva. Mas não creio que faça muito sentido acreditar que a memória possa ser exposta fora dos padrões usuais da narrativa ficcional. No caso do discurso biográfico, a própria seleção dos "fatos" é de ordem prioritariamente estética. Os "eventos" são selecionados e hierarquizados segundo a sua relevância simbólica, a sua coerência com o tom geral da narrativa, a forma como se encaixa no fio causal, temporal ou simplesmente cronológico que permite passar de um para outro e, por fim, segundo a sua conformação à imagem pessoal, à coerência psicológica da personagem que resulta da história que é contada. Ou seja, submetida aos princípios amplos da verossimilhança e da coerência interna da narrativa, a vida contada é uma imagem e, nesse sentido, uma ficção da vida vivida, seja lá o que isso tenha sido.
O que distingue um texto declaradamente autobiográfico de um texto declaradamente ficcional é, portanto, que um se propõe a ser avaliado por parâmetros externos de coerência e de acordo geral e aceita, no limite, ser contraposto a outros testemunhos sobre o mesmo "fato"; e o outro, não.

Magreza nostálgica

Como texto, Paris é uma festa é um livro enxuto, que narra episódios esparsos da vida de um jovem escritor na capital francesa, nos anos 20. O fato de que quase todas as personagens são também figuras intelectuais bem conhecidas acentua a economia narrativa, pois não é sequer preciso construir a personagem Gertrud Stein ou a personagem Fitzgerald. Todos já temos uma idéia de quem sejam e a simples menção dos nomes dispara determinadas associações. O narrador, assim, as põe diretamente em interação com a sua personagem principal, sem sequer precisar traçar-lhes um breve perfil ou caracterizá-las quanto à compleição física.
Com isso, vêm para primeiro plano da atenção dois temas que, combinados, respondem pelo alto poder de sedução do livro. O primeiro é a narração do período formativo do escritor, suas leituras, suas ambições e, principalmente, sua concepção de escrita e seus ideais estéticos. O segundo é a apresentação da solidariedade de uma vida amorosa marcada pela pobreza, na qual se destacam, como pontos luminosos, pequenos momentos de exceção e de esplendor.
Do primeiro decorre o lado exaltante do livro: o escritor/personagem persegue, naqueles primeiros tempos, a forma e o estilo econômico e verídico que o leitor constata no presente volume a cada página e a cada parágrafo. Na p. 89 da edição brasileira, por exemplo, Hemingway está contando como escreveu um conto chamado Fora da Temporada e escreve: "eu omitira seu final lógico, que seria o suicídio do velho, por enforcamento. Fizera isso com base na minha nova teoria de que sempre se pode omitir qualquer coisa de um conto, desde que se saiba por que se omitiu e a parte omitida reforce a narrativa, fazendo com que os leitores sintam alguma coisa além daquilo que entenderam". Bem antes, na p. 26, já anotara que dizia sempre para si mesmo, quando ia escrever e tinha alguma dificuldade: "Tudo o que tem a fazer é escrever uma frase verdadeira. Escreva a frase mais verdadeira que puder". Logo depois, registra: "Se começasse a escrever rebuscadamente, ou como se estivesse defendendo ou apresentando alguma coisa, percebia logo que podia cortar esses floreados ou ornamentos, jogá-los fora, e começar com a primeira proposição afirmativa verdadeira e simples que tivesse escrito." E pouco mais adiante: "Foi lá naquele quarto que decidi escrever um conto a respeito de cada coisa que conhecesse realmente bem. Era o que me esforçava por fazer, sempre, e esse método constituía uma boa e severa disciplina".
O segundo tema responde pelo tom melancólico do livro, que progressivamente se apresenta como evocação de um tempo feliz que o narrador/personagem, por inépcia ou por irresponsabilidade, vai arruinar e tornar para sempre perdido. De fato, se o livro começa centrado na apresentação do escritor e das suas relações intelectuais, esse centro rapidamente se muda para a narração da vida afetiva, que progride num registro cada vez mais intimista e pessoal, até terminar na pura exibição da culpa: "Quando voltei a ver minha mulher, ela me esperava na estação de Schruns, depois da pilha de madeira. Preferia ter morrido antes de me interessar por alguém mais além dela. Hadley estava sorridente, o sol batia-lhe no rosto moreno e bem-proporcionado, e seus cabelos dourados, que haviam crescido de maneira estranha, mas bela, durante o inverno, brilhavam na luz viva." Essa é a imagem para a qual converge toda a narrativa de evocação amorosa, e dela decorrem as frases finais, que sobrepõem Hadley e Paris, com tudo que este último nome contém: "Amei-a profundamente naquele instante, seguro de que não poderia gostar de ninguém mais"; "Paris nunca mais seria a mesma para mim"; e, finalmente: "neste livro, quis retratar a Paris dos meus primeiros tempos, quando éramos muito pobres e muito felizes".

Veracidade

No Prefácio, Hemingway já escrevera que "por motivos suficientemente fortes para o autor, muitos lugares, pessoas, observações e impressões foram deixados de lado neste livro". Por outro lado, no imaginário comum não há nada que alguém possa conhecer melhor do que a própria vida e as experiências pessoais. A conjunção dessas premissas com a forma especial de articulação dos capítulos desse livro, em que se vão justapondo, sem claras marcações temporais ou de causalidade afetiva, uma série de episódios, produz um efeito de verdade e de presentificação da experiência como raramente se encontra em letra de forma. E assim, qualquer lacuna, qualquer recorte mais violento na frase, qualquer falta de explicitação acaba (como proposto no texto da p. 89) fazendo com que nós, leitores, sintamos muito intensamente algo muito além do que entendemos, ou mesmo além do que nem sequer chegamos a compreender direito.
Essa é a magia do livro. Nada do que Hemingway pudesse ter colocado nele de inverdade ou de vingança contra as pessoas com que conviveu poderia ofuscar o brilho intenso dessa evocação muito comovente, que transmite uma impressão tão forte de veracidade como a dos seus melhores romances. É justamente por isso, porque essas duzentas e poucas páginas se aproximam tão econômica e convincentemente do que há de mais característico nos seus romances (e não pelo contrário, como poderiam querer os biógrafos e outros crentes da essencialidade), que elas conservam enorme interesse e têm a  vitalidade que as marca como um momento privilegiado – um dos maiores – na escrita do autor.

[publicado na página Livros, do jornal Correio Popular, em 18 de novembro de 2000)

quarta-feira, 25 de abril de 2012

O haicai de Issa


Jornal (2)

ISSA

            Kobayashi Issa nasceu em 1763, em uma aldeia do atual distrito de Nagano, e faleceu em 1827. Sua obra tem sido objeto de avaliações bastante divergentes, e entre os grandes haicaístas do Japão certamente nenhum gerou mais controvérsia do que ele. Para o leitor ocidental, Issa é talvez o mais acessível dos grandes haicaístas. É mais fácil lê‑lo e gostar dele do que de Bashô ou Buson.
Alguns críticos japoneses e ocidentais pensam que isso se deve ao que consideram “sentimentalidade excessiva” ou “excessiva subjetividade” dos seus versos. Essa tem sido uma opinião moderna, que ganhou força após a "restauração" do haicai empreendida por Masaoka Shiki (1867‑1902).
Os críticos que defendem tal julgamento insistem em retraçar a sua biografia para explicar o tom específico do seu haicai: perdeu a mãe aos dois anos, teve uma vida marcada pelas desavenças familiares, pela morte de vários filhos e outros desgostos. Daí que leiam nos seus versos o  “complexo de inferioridade”, a sensação de “rejeição”, a “consciência de ser o enteado”, o “desamparado” etc. Ou seja: daí que pensem que foi essa biografia conturbada que tornou Issa incapaz de evitar a exposição de sentimentos e afetos que não combinariam bem com o haicai.
Mas será que tais explicações, fundadas num psicologismo tão banal, têm ainda algum interesse?
            Mesmo que tivessem, não dariam conta do fato de que também no Japão, até hoje, Issa é um dos poetas de haicai mais lidos, sendo majoritariamente considerado um dos “quatro grandes” da sua arte.
            Uma outra vertente crítica vê como virtude o que é visto como defeito pelos que se apóiam em Shiki. René Sieffert e Reginald H. Blyth, por exemplo, não apenas consideram Issa um dos “quatro grandes”, mas ainda afirmam que ele é um dos poucos poetas japoneses ‑‑ senão mesmo o único ‑‑ a ombrear com Bashô. No entendimento desses dois reconhecidos estudiosos do haicai, o “sentimentalismo” de Issa é um alargamento das fronteiras da poesia de haicai, uma novidade positiva, que revitalizou o gênero.
            O sucesso de Issa entre leitores de todas as idades e nacionalidades parece dever-se principalmente ao efeito de humor franco e simples de boa parte de seus textos e à sua preferência por temas ligados à vida e comportamento de animais e insetos. Isto é: ao seu excelente domínio do registro humilde. É isso também o que explica a sua maior acessibilidade aos leitores não-japoneses: por não utilizar o registro “elevado”, ele quase nunca se vale do procedimento mais comum da poesia japonesa, que é a alusão a fatos, locais, poemas e personagens das obras clássicas chinesas e nipônicas, indecifráveis para a maior parte dos leitores ocidentais.
            Para que se possa ter uma amostragem significativa do estilo de Issa, seguem-se alguns textos do autor, comparados com outros, escritos por diferentes poetas japoneses.


As dez noites do Nambutsu

Ah, o som sagrado.
O chá também diz da‑bu da‑bu
- estas dez noites!   (Buson)

A noite é longa.
É muito, muito longa:
Namuamida.     (Issa)

            Os dois haicais têm como tema a recitação do Namuamidabutsu (Glória ao Buda Amida), palavra que é incessantemente repetida nos templos da seita da Terra Pura, durante dez noites, em outubro. O de Buson permite duas leituras: uma, a de que todas as coisas, cada qual a seu modo, dizem as palavras sagradas e participam da mesma ordem; outra, a de que o poeta, cansado de ouvir o nembutsu, começa a ouvi‑lo por toda a parte, mesmo no borbulhar do chá para fora da chaleira. A primeira leitura é piedosa; a segunda, enfatiza a ironia; e a graça do poema é justamente a oscilação entre ambas. Já o de Issa, embora possa ser lido como levemente irônico, é sobretudo pungente. O que nele triunfa é a percepção de abandono do homem no meio das trevas de onde emergem as palavras sagradas e, com elas, a possibilidade de encontrar algum sentido nas coisas, por meio da graça concedida pelo Buda.
Os dois textos são profundamente diferentes: o de Buson é sobretudo espirituoso, evidentemente trabalhado; o de Issa, mais empenhado num tom despojado, coloquial, direto.

Os olhos da libélula

É quase nada
a cara da libélula:
somente olhos.  (Chisoku )

Nos olhos da libélula
refletem‑se
montanhas distantes.   (Issa)

A libélula é um inseto que se associa tradicionalmente à estação do outono e à idéia de mobilidade e de transitoriedade. Estes dois haicais se constroem sobre a observação dos enormes olhos do inseto. No entanto, a diferença é muito grande. No poema de Chisoku, o sujeito observador e o objeto observado estão rigidamente separados e a “objetividade” leva a uma observação cômica. No de Issa, todas as coisas se compreendem, se refletem e correspondem: o símbolo da mobilidade é capaz de conter, ao menos nos grandes olhos, a imagem da permanência e solidez das grandes montanhas distantes. É, portanto, um poema "piedoso". Do mesmo tipo de piedade que Bashô ensinou a um seu aluno, , quando lhe censurou o seguinte haicai: “uma libélula – tirando-lhe as asas, uma pimenta!”. À violência e ao riso, Bashô preferiu outra coisa, e por isso refez assim os versos do discípulo: “uma pimenta – pondo-lhe asas, uma libélula!”. Também Issa, ao invés de opor e reduzir, tratou aqui de integrar e de ampliar.


A paisagem branca

A neve cai mais forte
quando me detenho
de noite na estrada.  (Kitô)

Não há céu nem terra,
apenas a neve
caindo sem parar.   (Hashin)

Nós contemplamos
Até mesmo os cavalos
Nesta manhã de neve!  (Bashô)

Apenas estando aqui,
estou aqui,
e a neve cai.    (Issa)

            De todos esses haicais, o de Issa é o que apresenta menos elementos, E, no entanto, é muito impressivo. Produz, num ambiente budista, um grande efeito de “sabedoria” ou “desenvolvimento espiritual”, de que foi necessário "envelhecer" muito para simplesmente poder estar ali, inteiramente ali, enquanto algo acontece.

A arte de "apenas estar desperto"

            É contra esse mesmo pano de fundo do pietismo e da “iluminação” budista – isto é: num quadro tradicional, e não em função da biografia do poeta, ou num quadro psicologista –, que se devem ler alguns dos seus versos mais famosos, como os que aqui são publicados.
            Com ou sem humor, tratando de temas que podem ou não ser colocados em função da sua biografia, o que de fato importa no haicai de Issa é a maestria com que atualizam, numa dada forma literária, elementos centrais da tradição budista.
O despojamento da linguagem, a facilidade dos poemas, o “sentimentalismo”, a ausência de alusões eruditas e até a biografia atormentada (que Issa é o primeiro a explorar em diários e em poemas) são, assim, elementos que não podem ser considerados separadamente, mas como parte de uma “poética”. Ou seja, são elementos organizados por um ponto focal e que têm, por isso, uma determinada ação sobre o leitor. E esse ponto focal é o que ecoa a resposta de Buda à pergunta sobre o que o tornava Buda: "Apenas estou desperto".

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Breve antologia do haicai de Kobayassi Issa:

Venha brincar comigo,
Pardalzinho
Sem pai e sem mãe.

Dia de Ano‑Novo.
Que sorte, que grande sorte:
Um céu azul‑claro!

Em solidão,
Como a minha comida –
E sopra o vento do Outono.

Vou sair.
Divirtam-se fazendo amor,
Moscas da minha cabana.

A neve está derretendo –
A aldeia está cheia
De crianças.

Chuva de primavera –
Uma criança
Ensina o gato a dançar.

A lua da montanha
Gentilmente ilumina
O ladrão de flores.

Da ponta do nariz
Do Buda do campo
Desce um filete de gelo.

Primeiras neves:
Meu maior tesouro
É este velho penico.


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Para saber mais:
Nos livros:
Blyth, R. H. Haiku. Tóquio: The Hokuseido Press, 1972.
Franchetti, P. et al. Haikai – antologia e história. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.
Leminski, P. Matsuó Bashô. São Paulo: Brasiliense, 1983.
Verçosa, Carlos. Oku – viajando com Bashô. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo, 1996.

Na internet:

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Quem? O quê?:

Haicai -- ou haiku: poema japonês breve, que apresenta objetivamente, em linguagem quotidiana, uma cena ou um evento natural.
Matsuó Bashô (1644-1694): o criador do gênero tal como ainda se pratica no Japão.
Yosa Buson (1715-1783): um dos quatro grandes mestres do haiku (os outros são Bashô, Issa e Shiki).
Masaoka Shiki (1867-1902): é tido como o restaurador do haiku nos tempos modernos.

[Publicado na página LIVROS, do jornal Correio Popular, de Campinas, em 09 set. 2000]

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Haicai - um depoimento


DEPOIMENTO 
(HAICAI)


            O interesse do conhecimento de outras culturas me parece ser a ampliação das nossas formas de sensibilidade, nosso jeito de estar no mundo. Creio que essa é uma das razões por tanto nos interessarmos pelos eventos e costumes externos ao círculo da nossa cultura, distanciados no tempo ou no espaço do que definimos como o nosso presente.
No que diz respeito à arte, a aprendizagem das formas de significação, dos princípios e das expectativas da recepção, o choque com outras convenções, revela mais claramente as estruturas da nossa maneira habitual de ver, de expressar e de construir. Confronta-nos com a historicidade de nosso próprio modo de ser e permite ver mais claramente os limites convencionais do que, por inércia, termina por ser naturalizado e universalizado.
Para mim, o haicai constituiu uma espécie de revelação. Acostumado a pensar a poesia como obra de arte literária, isto é, como objeto dotado de autonomia estética e valor “universal”, confrontei-me com algo frente ao qual meus conceitos de avaliação estética, bem como as técnicas interpretativas pareciam girar em falso.
É certo que é possível reduzir o haicai à nossa própria dimensão. Podemos lê-lo, por exemplo, com as nossas ferramentas: investigar a sua estrutura (ainda que sendo ele extremamente breve) em busca de correspondências fônicas, de acoplamentos sintáticos, de figuras de linguagem. Talvez possamos ainda procurar nele um caráter documental sobre as formas de vida em cada época da sua produção. Mas é uma tarefa, além de difícil, inglória. O método de leitura seleciona o objeto, criando uma tabela de valores que normalmente tem como ponto mais alto os objetos nos quais o método pode exercer-se em plenitude. Ora, a primeira constatação que faz um estrangeiro é que o cânone que ele compõe a partir da aplicação de formas ocidentais de leitura difere profundamente dos cânones autóctones, ainda que estes também variem de acordo com a escola ou o momento histórico.
De fato, é difícil compreender em que consiste o haicai mais famoso do mundo, aquele que todos os ocidentais que já ouviram falar dessa forma de poesia identificam como o mais típico do gênero: o de Bashô, que apresenta uma rã pulando para dentro da água de um velho tanque. O que diz esse haicai? Qual seria a paráfrase possível, nos termos em que fazemos paráfrases de poemas? E porque, entre tantos, seria este exemplar? Sua estrutura fônica diz pouco: furuikeya kawasutobikomu mizunooto. Para alguns, o interesse do poema residiria no verbo tobikomu, formado por dois outros: saltar e cair.
Mas quando lemos a literatura crítica produzida no Japão, por críticos literários ou por outros mestres de haicai (como é o caso de Masaoka Shiki, o restaurador do haicai no século XIX, que comentou longamente esse poema), não encontramos ênfase na qualidade do verso, na sua forma ou no emprego do verbo. Segundo Shiki, o poema nunca foi apresentado como o melhor de Bashô, mas apenas como o que inaugura sua maneira – e que o seu valor está justamente na sua simplicidade e na recusa à figuração ou antropomorfização da rã, bem como às alusões ou referências a poemas clássicos. Para ele, nesse poema a rã (ou as rãs, pois em japonês não há marcas morfológicas de plural) faz apenas o que as rãs fazem – isto é, saltar para a água – e a sua grande relevância histórica é a redução ao registro objetivo. Uma análise que quase poderia ser tomada como uma afirmação da poesia pela recusa aos procedimentos poéticos.
Pequeno rendimento teria também, uma vez lido esse artigo de Shiki, valorizar o haicai de Bashô considerando-o uma violência contra a tradição. A sua escola persistirá para além do seu próprio século, atravessando o XVIII, o XIX e o XX – e até hoje é a base da prática internacional. Ou seja, não é (nem foi) a novidade da maneira de Bashô a base da sua eficácia e persistência.
Uma tentativa de compreender o haicai “por dentro” (por assim dizer) confronta o interessado com questões que ele não poderia imaginar apenas lendo os textos e escolhendo, entre os haicais disponíveis, os que considerasse os melhores, segundo a sua forma usual de avaliar poesia.
Por exemplo, se lesse os documentos da escola de Bashô, reunidos nos livros dos seus primeiros discípulos, logo perceberia que o ensinamento do mestre era pautado não apenas pela rígida disciplina para obter o domínio da técnica do corte e equilíbrio interno dos segmentos de fala (digo “fala”, pois o haicai-renga era um texto oral, recolhido a seguir por um escriba), bem como pela técnica das palavras indiciadoras da estação do ano, mas também por regras de conduta e de busca de aprimoramento espiritual que não eram acessórias ou externas, mas tendiam a transformar-se em padrões de avaliação. O haicai era um caminho, um “dô”. E por isso um dos principais obstáculos à prática correta era a atitude espiritual errada. Um mesmo poema podia ser considerado “bom” pelo mestre se tivesse sido escrito por um dos discípulos, mas “ruim” se fosse escrito por outro – dependendo de o que ele dissesse ser sincero e espontâneo ou afetado e artificioso. Por isso mesmo, o principal obstáculo à prática do haicai era a “visão própria”, sendo a objetividade e a despersonalização um objetivo não apenas da realização textual, mas da atitude frente ao mundo.
Daí decorrem os repetidos conselhos para fugir ao desejo de fazer um bom poema, para evitar ter em mente as qualidades que se gostaria que o poema tivesse. Diz Bashô: “Os versos de alguns, porque eles querem atribuir‑lhes brilho, carecem precisamente de brilho. O brilho não consiste em dizer as coisas de modo brilhante. Os versos de alguns outros carecem de delicadeza. É porque eles querem atribuir‑lhes delicadeza que a delicadeza lhes falta. Nos versos de outros, ainda, à força de artifício, a espontaneidade se perde. As obras produzidas pelo espírito são boas, mas as produzidas apenas com artifícios de palavras não são dignas de respeito.”
Já o bom haicai é aquele no qual “o sentimento interior se funde com as coisas exteriores para determinar a forma do verso, e tão bem que o objeto é apreendido tal qual ele se apresenta, sem que a visão própria crie a menor divergência”.
Já o mau haicai é produto do artificialismo e do puro trabalho com as palavras: “Se o espírito, pelo contrário, não se depurou, a visão própria entra em ação e a pessoa tende a buscar a perfeição no arranjo das palavras. E isso constitui apenas a vulgaridade de um espírito que não se esforça para encontrar a verdade.”
O que está na base do objetivismo do haicai é, portanto, algo muito sutil: a postulação de que os objetos devam ser apreendidos pela observação não intencional, e que só assim conseguem compor uma unidade com o estado de espírito do observador. E aí também está a origem da recusa a que o sentimento organize ou se junte ao dado recolhido desse tipo de observação: o sentimento enlameia o haicai, diz a escola de Bashô.
Outras novidades aguardam o leitor que se aventurar pelo universo do haicai tradicional: o seu caráter de arte ensinada e prática coletiva, a valorização extrema da modéstia, da simplicidade e da “magreza” do poema.
De modo que, após o mergulho no haicai, o olhar que retorna sobre a poesia da sua própria tradição vem marcado pela experiência da alteridade, da experiência (ainda que limitada) do que está fora do círculo usual de referências: não se apenas valorizam mais algumas características comuns, que antes passavam despercebidas ou ficavam sem relevo, mas também se incorporam alguns dos conceitos e valores à prática usual, ampliando o leque das possibilidades de construção e de leitura. A consideração da história da poesia moderna e contemporânea permite ver facilmente as formas aparentes desse intercâmbio, especialmente nos países de língua inglesa. Bastaria referir a obra de Pound, a ideia do correlato objetivo de Eliot, bem como muitos poemas de Cummings ou de William Carlos Williams. E ainda da Poesia Concreta.
Quando meu interesse pelo haicai aumentou – na exata medida da minha dificuldade de dar conta dele –, dediquei-me a três tarefas simultâneas: estudar a língua japonesa, ler os tratados japoneses disponíveis em tradução, bem como os textos religiosos principais da tradição budista, além de outros clássicos orientais como o Tao Te King e as obras de Confúcio, e, finalmente, praticar o haicai em português, nos moldes tradicionais japoneses.
Creio que em tudo o que tenho feito a partir desse momento se refletem os efeitos dessa convivência. Na minha própria poesia, e não só na de haicai, aquilo que construí a partir da leitura dos autores japoneses constitui provavelmente o que possa haver nela de interesse. E, claro, minhas escolhas de objetos poéticos no exercício da atividade crítica e docente também trazem as marcas dessa iniciação.
Muitas vezes, quando falo de haicai a auditórios acadêmicos, percebo no ar a suspeita de que talvez nós, seus cultores ocidentais, apenas estejamos utilizando o espaço e a cultura distantes como terreno de projeção de nossos desejos. É possível que seja assim e não vejo mal em que fosse assim, pois do que não tenho dúvida é de que se trata de uma prática produtiva – literária e criticamente –, além de consistir num gesto de recusa a outra idealização, essa sim perniciosa: a de que é possível eliminar, por meio do controle da distância crítica, a projeção dos desejos e a ação das crenças na escolha e no trato dos objetos culturais.

[Publicado em Textos e Pretextos, n. 15. Lisboa: Universidade de Lisboa, outono/inverno 2011]