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sexta-feira, 20 de abril de 2012

Haicai - um depoimento


DEPOIMENTO 
(HAICAI)


            O interesse do conhecimento de outras culturas me parece ser a ampliação das nossas formas de sensibilidade, nosso jeito de estar no mundo. Creio que essa é uma das razões por tanto nos interessarmos pelos eventos e costumes externos ao círculo da nossa cultura, distanciados no tempo ou no espaço do que definimos como o nosso presente.
No que diz respeito à arte, a aprendizagem das formas de significação, dos princípios e das expectativas da recepção, o choque com outras convenções, revela mais claramente as estruturas da nossa maneira habitual de ver, de expressar e de construir. Confronta-nos com a historicidade de nosso próprio modo de ser e permite ver mais claramente os limites convencionais do que, por inércia, termina por ser naturalizado e universalizado.
Para mim, o haicai constituiu uma espécie de revelação. Acostumado a pensar a poesia como obra de arte literária, isto é, como objeto dotado de autonomia estética e valor “universal”, confrontei-me com algo frente ao qual meus conceitos de avaliação estética, bem como as técnicas interpretativas pareciam girar em falso.
É certo que é possível reduzir o haicai à nossa própria dimensão. Podemos lê-lo, por exemplo, com as nossas ferramentas: investigar a sua estrutura (ainda que sendo ele extremamente breve) em busca de correspondências fônicas, de acoplamentos sintáticos, de figuras de linguagem. Talvez possamos ainda procurar nele um caráter documental sobre as formas de vida em cada época da sua produção. Mas é uma tarefa, além de difícil, inglória. O método de leitura seleciona o objeto, criando uma tabela de valores que normalmente tem como ponto mais alto os objetos nos quais o método pode exercer-se em plenitude. Ora, a primeira constatação que faz um estrangeiro é que o cânone que ele compõe a partir da aplicação de formas ocidentais de leitura difere profundamente dos cânones autóctones, ainda que estes também variem de acordo com a escola ou o momento histórico.
De fato, é difícil compreender em que consiste o haicai mais famoso do mundo, aquele que todos os ocidentais que já ouviram falar dessa forma de poesia identificam como o mais típico do gênero: o de Bashô, que apresenta uma rã pulando para dentro da água de um velho tanque. O que diz esse haicai? Qual seria a paráfrase possível, nos termos em que fazemos paráfrases de poemas? E porque, entre tantos, seria este exemplar? Sua estrutura fônica diz pouco: furuikeya kawasutobikomu mizunooto. Para alguns, o interesse do poema residiria no verbo tobikomu, formado por dois outros: saltar e cair.
Mas quando lemos a literatura crítica produzida no Japão, por críticos literários ou por outros mestres de haicai (como é o caso de Masaoka Shiki, o restaurador do haicai no século XIX, que comentou longamente esse poema), não encontramos ênfase na qualidade do verso, na sua forma ou no emprego do verbo. Segundo Shiki, o poema nunca foi apresentado como o melhor de Bashô, mas apenas como o que inaugura sua maneira – e que o seu valor está justamente na sua simplicidade e na recusa à figuração ou antropomorfização da rã, bem como às alusões ou referências a poemas clássicos. Para ele, nesse poema a rã (ou as rãs, pois em japonês não há marcas morfológicas de plural) faz apenas o que as rãs fazem – isto é, saltar para a água – e a sua grande relevância histórica é a redução ao registro objetivo. Uma análise que quase poderia ser tomada como uma afirmação da poesia pela recusa aos procedimentos poéticos.
Pequeno rendimento teria também, uma vez lido esse artigo de Shiki, valorizar o haicai de Bashô considerando-o uma violência contra a tradição. A sua escola persistirá para além do seu próprio século, atravessando o XVIII, o XIX e o XX – e até hoje é a base da prática internacional. Ou seja, não é (nem foi) a novidade da maneira de Bashô a base da sua eficácia e persistência.
Uma tentativa de compreender o haicai “por dentro” (por assim dizer) confronta o interessado com questões que ele não poderia imaginar apenas lendo os textos e escolhendo, entre os haicais disponíveis, os que considerasse os melhores, segundo a sua forma usual de avaliar poesia.
Por exemplo, se lesse os documentos da escola de Bashô, reunidos nos livros dos seus primeiros discípulos, logo perceberia que o ensinamento do mestre era pautado não apenas pela rígida disciplina para obter o domínio da técnica do corte e equilíbrio interno dos segmentos de fala (digo “fala”, pois o haicai-renga era um texto oral, recolhido a seguir por um escriba), bem como pela técnica das palavras indiciadoras da estação do ano, mas também por regras de conduta e de busca de aprimoramento espiritual que não eram acessórias ou externas, mas tendiam a transformar-se em padrões de avaliação. O haicai era um caminho, um “dô”. E por isso um dos principais obstáculos à prática correta era a atitude espiritual errada. Um mesmo poema podia ser considerado “bom” pelo mestre se tivesse sido escrito por um dos discípulos, mas “ruim” se fosse escrito por outro – dependendo de o que ele dissesse ser sincero e espontâneo ou afetado e artificioso. Por isso mesmo, o principal obstáculo à prática do haicai era a “visão própria”, sendo a objetividade e a despersonalização um objetivo não apenas da realização textual, mas da atitude frente ao mundo.
Daí decorrem os repetidos conselhos para fugir ao desejo de fazer um bom poema, para evitar ter em mente as qualidades que se gostaria que o poema tivesse. Diz Bashô: “Os versos de alguns, porque eles querem atribuir‑lhes brilho, carecem precisamente de brilho. O brilho não consiste em dizer as coisas de modo brilhante. Os versos de alguns outros carecem de delicadeza. É porque eles querem atribuir‑lhes delicadeza que a delicadeza lhes falta. Nos versos de outros, ainda, à força de artifício, a espontaneidade se perde. As obras produzidas pelo espírito são boas, mas as produzidas apenas com artifícios de palavras não são dignas de respeito.”
Já o bom haicai é aquele no qual “o sentimento interior se funde com as coisas exteriores para determinar a forma do verso, e tão bem que o objeto é apreendido tal qual ele se apresenta, sem que a visão própria crie a menor divergência”.
Já o mau haicai é produto do artificialismo e do puro trabalho com as palavras: “Se o espírito, pelo contrário, não se depurou, a visão própria entra em ação e a pessoa tende a buscar a perfeição no arranjo das palavras. E isso constitui apenas a vulgaridade de um espírito que não se esforça para encontrar a verdade.”
O que está na base do objetivismo do haicai é, portanto, algo muito sutil: a postulação de que os objetos devam ser apreendidos pela observação não intencional, e que só assim conseguem compor uma unidade com o estado de espírito do observador. E aí também está a origem da recusa a que o sentimento organize ou se junte ao dado recolhido desse tipo de observação: o sentimento enlameia o haicai, diz a escola de Bashô.
Outras novidades aguardam o leitor que se aventurar pelo universo do haicai tradicional: o seu caráter de arte ensinada e prática coletiva, a valorização extrema da modéstia, da simplicidade e da “magreza” do poema.
De modo que, após o mergulho no haicai, o olhar que retorna sobre a poesia da sua própria tradição vem marcado pela experiência da alteridade, da experiência (ainda que limitada) do que está fora do círculo usual de referências: não se apenas valorizam mais algumas características comuns, que antes passavam despercebidas ou ficavam sem relevo, mas também se incorporam alguns dos conceitos e valores à prática usual, ampliando o leque das possibilidades de construção e de leitura. A consideração da história da poesia moderna e contemporânea permite ver facilmente as formas aparentes desse intercâmbio, especialmente nos países de língua inglesa. Bastaria referir a obra de Pound, a ideia do correlato objetivo de Eliot, bem como muitos poemas de Cummings ou de William Carlos Williams. E ainda da Poesia Concreta.
Quando meu interesse pelo haicai aumentou – na exata medida da minha dificuldade de dar conta dele –, dediquei-me a três tarefas simultâneas: estudar a língua japonesa, ler os tratados japoneses disponíveis em tradução, bem como os textos religiosos principais da tradição budista, além de outros clássicos orientais como o Tao Te King e as obras de Confúcio, e, finalmente, praticar o haicai em português, nos moldes tradicionais japoneses.
Creio que em tudo o que tenho feito a partir desse momento se refletem os efeitos dessa convivência. Na minha própria poesia, e não só na de haicai, aquilo que construí a partir da leitura dos autores japoneses constitui provavelmente o que possa haver nela de interesse. E, claro, minhas escolhas de objetos poéticos no exercício da atividade crítica e docente também trazem as marcas dessa iniciação.
Muitas vezes, quando falo de haicai a auditórios acadêmicos, percebo no ar a suspeita de que talvez nós, seus cultores ocidentais, apenas estejamos utilizando o espaço e a cultura distantes como terreno de projeção de nossos desejos. É possível que seja assim e não vejo mal em que fosse assim, pois do que não tenho dúvida é de que se trata de uma prática produtiva – literária e criticamente –, além de consistir num gesto de recusa a outra idealização, essa sim perniciosa: a de que é possível eliminar, por meio do controle da distância crítica, a projeção dos desejos e a ação das crenças na escolha e no trato dos objetos culturais.

[Publicado em Textos e Pretextos, n. 15. Lisboa: Universidade de Lisboa, outono/inverno 2011]