UMA CARTA
a Victor Mateus, sobre o seu livro Regresso (Amarante, 2010)
Prezado Victor,
Li o seu livro com prazer, renovando assim o que me deu o
contato primeiro com a sua poesia.
Não sei bem, entretanto, como traduzir a percepção em poucas
palavras. Muito menos como redigir algo que pudesse colocar em alguma parte da
capa do seu livro.
Mas vou tentar, com muitas palavras e talvez confusas, dizer
o que senti ou pensei ao ler a sua poesia, neste livro – mas não só.
O que mais me impressiona nessa poesia é a tensão constante entre
o discurso e a forma do verso. Se é que de verso se trata. Temos de fazer algum
esforço, colocar a linha entre parênteses, para ouvir mais próxima a cadência
dos outros versos, que se escondem dentro e ao redor dos definidos pela
tipografia. Ao mesmo tempo, os cortes trazem um princípio de medida. Muito
além, entretanto, do limite das doze sílabas: bárbaros, como se dizia. Em
alguns poemas, a persistência do número das sílabas (em extensões médias de
catorze, por exemplo) cria como um discurso duplo. Há uma frase que se ergue
pela força do sopro lírico – a direção entusiasta da frase, para aproveitar
remotamente uma formulação de Mallarmé – e que se vaza num molde abstrato, que
a rompe, sem a impedir de se afirmar no seu ritmo próprio. Lembrando versículos
entranhados num corpo estranho, o fraseado impõe aos poucos os princípios da
sua regularidade, de que resultam interessantes harmônicos de sentidos. Por
qualquer ângulo que se olhe, o que este livro faz é expor uma percepção aguda de
cambiantes e contrastes. Uma desproporção anima o embate dos opostos: interior
e exterior, carência e posse, olhar para
o outro e olhar do outro, sensação de partida e anseio pelo regresso. O
discurso constitui os temas. A forma do verso os cristaliza, por meio do corte violento
e aparentemente arbitrário, dos blocos regulares de linhas que se sucedem além
dos requisitos ou emblemas da sintaxe, nos quais de repente brilha uma frase
repetida, modulada agora pela nova posição em que se encontra. O motivo do
retorno dá o título e tom dos poemas. O poeta retorna pela memória, pela
celebração do momento efêmero. Retorna a si mesmo, à história de si que repete
à beira do momento do abismo. Mas as suas palavras recusam o retorno
fundamental. Apenas como desenho abstrato e como injunção de leitura se define
esse verso. A voz coletiva do pulsar antigo aparece como escolho, ponto de
referência, tentação. Por isso talvez não sinta que há de fato um tu nesses versos. Ainda quando surja, é
uma duplicação da voz, um espelho, um caminho ou uma fuga de si mesmo. Uma
busca, afinal. Mas essa, apesar da intenção, nunca redunda retorno, nem se
resolve em reencontro, mas apenas em viagem cujo fim só poderá ser também o fim
do viajante. O que senti quando li este livro é que, para desígnio tal e tal
concepção do tempo e dos limites da própria percepção, a vida é mesmo um
milagre, o verso também e, maior que todos, seria o regresso, se pudesse
acontecer.
E aí está o que lhe podia escrever assim de repente.
Um grande abraço,
Paulo