TEXTOS DISPONÍVEIS

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Jaime Cortesão - esboço de figura

Amar e servir o Brasil é uma das melhores formas de ser português:
Jaime Cortesão – esboço de figura


[Este texto reproduz, com pequenas alterações, o que integra o volume Missão portuguesa – rotas entrecruzadas, organizado por Rui Moreira Leite e Fernando Lemos, publicado pela Editora da Unesp, em São Paulo, em 2003.]


Não posso dar um depoimento sobre Jaime Cortesão. Afinal, quando ele faleceu, apenas estava chegando, para mim, a hora de aprender a decifrar as letras. E tampouco o historiador foi uma referência próxima como outros exilados portugueses, que tanto contribuíram para a cultura comum, como Adolfo Casais Monteiro e Jorge de Sena. Apenas tardiamente tomei contato com os seus textos e vim a saber da sua vida brasileira. Mas desde que pude conhecer-lhe a obra, foi ela talvez (junto com a de Oliveira Martins) a presença mais constante na minha atividade didática e de pesquisa sobre a cultura portuguesa e brasileira.
Ao perceber que Cortesão tinha estudado de modo tão integrado a história do mundo português dos séculos XVII e XVIII, pareceu-me desde logo estranho que não tivesse ouvido falar dele logo nos primeiros anos de faculdade; depois de conhecer melhor a obra, pareceu-me já descabido que ela tenha ficado tão obscurecida no Brasil a ponto de não haver hoje disponível edição brasileira de qualquer dos seus livros mais importantes.
Talvez o motivo principal de sua pequena difusão na universidade brasileira nas últimas décadas resida naquilo mesmo que julgo sua maior qualidade, pois ao pensar as questões culturais e políticas do período anterior à Independência como questões portuguesas, Cortesão colocou-se na contramão de uma corrente ideológica até hoje muito forte e atuante: a que consiste em repetir a projeção romântica dos ideais nacionalistas e nativistas sobre o passado colonial. Essa corrente que, durante décadas anos, teve força suficiente para praticamente banir da universidade brasileira um pensador nacional de vulto tão grande quanto Gilberto Freyre, parece finalmente estar perdendo lugar na descrição do período colonial. E, na esteira do sucesso da crítica da teleologia nacionalista das principais narrativas de história da cultura brasileira, por certo se desenhará um novo lugar para uma obra tão rica de questões quanto a do autor de Os descobrimentos portugueses.
            Dado o relativo desconhecimento contemporâneo do vulto humano e das principais linhas de articulação da sua obra, optei neste texto de apresentação e homenagem, por apresentar um sucinto panorama da vida e da obra de Jaime Cortesão, de modo a situar devidamente nele a importância da sua fase brasileira. No que diz respeito à análise da obra, concentrei-me, pelos mesmos motivos, no comentário mais amplo, porém não tão aprofundado quanto gostaria de poder fazê-lo, daquele que considero o trabalho mais importante dos seus estudos luso-brasileiros: Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid.

Jaime Zuzarte Cortesão nasceu em Ançã, perto de Coimbra, em 1884 e morreu em Lisboa, em 1960. Formado em Medicina em 1910, depois de ter seguido por algum tempo o curso de Direito e, antes, o de Belas-Artes, exerce a profissão por pouco tempo. De fato, já em 1912, que é também o ano do seu casamento, abandona a carreira médica ao ser nomeado professor de História e Literatura no Liceu Rodrigues de Freitas, no Porto. Só voltará a praticar a ciência em que era diplomado por um breve período e em situação de guerra. Todo o resto da sua vida centrou-se na atividade política, na literatura e, principalmente, no estudo da história.
Desde 1908, Cortesão fora adepto e militante do Partido Republicano, pelo qual tentará ser eleito deputado em 1911, por Coimbra. Posteriormente, quando de sua participação na Renascença, foi diretor do quinzenário A vida Portuguesa -- órgão do movimento -- e um dos mais ardentes defensores das Universidades Populares, onde lecionou graciosamente e proferiu inúmeras conferências.
Durante a primeira Guerra Mundial, em 1915, foi eleito deputado e marcou a sua atuação com a defesa, pela tribuna e pelos jornais, da intervenção de Portugal no conflito, ao lado da Inglaterra. Juntando as palavras ao gesto, alistou-se em 1917 e seguiu para a França como médico. Tendo participado ativamente dos socorros aos feridos na frente de batalha, acabou atingido por gases químicos em 1918. Temporariamente cego, voltou a Portugal e ali foi condecorado com a Cruz de Guerra. Em breve, porém, defrontou-se com a ditadura de Sidónio Pais, que o encarcerou por três meses em incomunicabilidade total. Após o assassinato de Sidónio e a conseqüente alteração do quadro político, Cortesão voltou à ativa, sendo, em 1919, nomeado Diretor da Biblioteca Nacional de Lisboa.
Foi esse o período mais profícuo da sua vida em Portugal. No cargo em que permaneceu até 1927, liderou o famoso Grupo da Biblioteca (composto por Raul Proença, António Sérgio, Aquilino Ribeiro, Raul Brandão, Afonso Lopes Vieira, entre outros) e cuidou da expansão do acervo. Foi ainda nesse posto que se empenhou na oposição ao regime autoritário surgido do golpe de 1926, integrando a Junta Revolucionária de 3 de fevereiro de 1927. Do ponto de vista da constituição da sua obra, datam dessa época alguns trabalhos fundamentais, como A expedição de Pedro Álvares Cabral e o Descobrimento do Brasil (1922), e o artigo em que inicia uma das linhas mais conhecidas da sua obra histórica: "Do sigilo nacional sobre os Descobrimentos" (1924).
Com o fracasso do movimento revolucionário de oposição à ditadura militar, começa o longo período de exílio de Jaime Cortesão: segue para a Espanha, e daí para a França, onde permanece de 1927 a 1931. Entre 31 e 39, reside na Espanha, até que a vitória de Franco o obriga a fugir novamente para a França, onde permanece até o ano seguinte.
Durante esses anos, impossibilitado de trabalhar nos arquivos portugueses, desenvolve pesquisa em arquivos estrangeiros e produz outros trabalhos interessantes, entre os quais se destacam, por se vincularem à contribuição mais original de sua obra, L'expansion des Portugais dans l'histoire de la civilisation (1930), os vários capítulos que escreveu sobre os Descobrimentos para a História de Portugal dirigida por Damião Peres (1931-4), e os ensaios "O Franciscanismo e a mística dos Descobrimentos" (1932) e "Os fatores democráticos na formação de Portugal" (1930).
1940 é um ano doloroso na biografia de Jaime Cortesão. É o ano em que volta a Portugal, mas apenas por quatro meses. Preso, é logo banido e sai da prisão direto para o Brasil.
Não era a primeira vez que Cortesão vinha ao Brasil. Em 1922, quando ocorreram as comemorações da Independência brasileira, ele tinha integrado a comitiva de intelectuais que acompanharam o presidente António José de Almeida.
No Brasil, Jaime Cortesão vai viver cerca de 17 anos e escrever alguns dos trabalhos fundamentais da historiografia portuguesa moderna. Aqui, também, encontrará apoio governamental para proceder às pesquisas na área de estudos em que sempre se distinguiu mais: a pesquisa histórica fortemente baseada nos dados científicos relativos à navegação e, especialmente, na evolução do conhecimento geográfico e cartográfico. De fato, desde 1944, o historiador passa a ensinar duas disciplinas no Instituto Rio Branco: História da cartografia no Brasil e História da formação territorial no Brasil.
A lista dos trabalhos de Cortesão escritos durante o seu período brasileiro é bastante grande e os títulos são bem conhecidos. Mas para dar uma idéia real da atividade do historiador português no Brasil, eis aqui uma pequena relação: A carta de Pero Vaz de Caminha (1943), Cabral e as origens do Brasil (1944), Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid (1950), Manuscritos da Coleção de Angelis (Jesuítas e Bandeirantes no Guairá, Tapé, Itatim, Paraguai e Sacramento (1951), A fundação de São Paulo -- capital geográfica do Brasil (1955), “Brasil (hist. do período colonial)”, in Historia de América y de los pueblos americanos (1956), Pauliceae Lusitana Monumenta Historica (1956-60), Raposo Tavares e a Formação Territorial do Brasil (1958).
Além desses trabalhos notáveis, Jaime Cortesão foi ainda o curador da grande exposição comemorativa do quarto centenário de fundação da cidade de São Paulo, realizada em 1954. A julgar pela maioria dos depoimentos de época, a exposição, que foi um grande sucesso de público, estava organizada de modo inteligente, equilibrado e didático. Não obstante, houve quem acusasse o curador de ter dado mais destaque à seção dedicada a Portugal e ao período colonial, do que à parte dedicada à vida independente da nação e da cidade.
Foi para responder a um desses ataques, que Cortesão escreveu uma resposta que é uma declaração apaixonada de luso-brasileirismo, e sintetiza todo o seu sentimento de gratidão ao país que o acolhera e onde vivia há já 15 anos. Trata-se destas palavras, que se encontram na p. 17 do prefácio do volume A fundação de São Paulo,  capital geográfica do Brasil (1955):

Quando dizemos que impulsos cívicos nos ditaram esta obra, subentendemos, em primeiro lugar, os deveres de cidadão português e de cidadão brasileiro. Brasileiro, repetimos. E, embora anunciemos separadamente essas categorias, sabemos que, em nossa consciência de homem e historiador, as duas se fundem numa única; e que temos direito, pelo nosso passado, a que os brasileiros assim o reconheçam. Abstraindo, aliás, do nosso caso, entendemos que amar e servir o Brasil é uma das melhores formas de ser português.

Na metade do ano de 1957, Cortesão retorna, finalmente, a Portugal. Não será, porém, pacífico esse retorno. Em 1958 é preso novamente por motivos políticos e só parece ter sido libertado graças à pressão da imprensa brasileira e, talvez, à influência do governo brasileiro.
Será curto esse período de retorno, pois virá a falecer em 14 de agosto de 1960, deixando inacabado o segundo volume de O humanismo universalista dos Portugueses, que será publicado postumamente, em 1965.

Além de geógrafo e historiador, Jaime Cortesão foi também autor de teatro, de vária panfletagem política, prosa de ficção, poesia e até mesmo literatura infantil. A notar, ainda, um livro singular: Portugal, a Terra e o Homem, misto de divulgação geográfica, crônica enternecida, livro de viagens e guia turístico.
O primeiro trabalho de vulto de Jaime Cortesão no campo da historiografia foi o artigo sobre a expedição de Cabral, de 1922. Nele, Cortesão explora a nova tendência da historiografia dos descobrimentos, já inaugurada no artigo "A conquista de Ceuta", que Antonio Sérgio publicara em 1920. Como se sabe, a tese desse trabalho é que Portugal se formara e mantivera pela atividade comercial e portuária decorrente das cruzadas, e que, portanto, a revolução de 1383 e os Descobrimentos se deveram basicamente à ascensão de uma burguesia comercial e marítima. Jaime Cor­tesão, com base no estudo dos mapas e dos documentos do período, aceita que a expansão portuguesa seja produto da ação de uma burguesia de interesses e mentalidade cosmopolita, formada também, mas não só (como logo veremos), a partir da atividade portuária no tempo das cruzadas, e tenta investigar qual a forma específica que teve esse empreendimento, quais os seus pressupostos e estratégias.
Já aqui parece despontar também outra das teses fundamentais da obra histórica de Jaime Cortesão, que se explicita em um artigo de 1924, publicado na revista Lusitânia -- "Do sigilo nacional sobre os Descobrimentos". A idéia central desse texto -- desenvolvida e retomada ao longo de toda a vida de Cortesão -- é a de que houvera uma estratégia de segredo a cercar toda a empresa dos descobrimentos. Estratégia essa justificável por motivos militares e de com­petição inter­nacional, e de que teria resultado, ao longo dos séculos, não só uma historização deficiente, mas também uma avaliação muito parcial da dimensão da cultura portuguesa nos séculos XIV e XV, pois os notáveis progressos científicos e técnicos realizados nessa época ficaram quase desconhecidos.
As idéias desses dois textos serão amadurecidas e sistematizadas em 1930 no trabalho intitulado L'expan­sion des Portugais dans l'histoire de la civilisation, publicado em Bruxelas. Já aqui estão bem desenvolvidas duas teses apenas esboçadas na década anterior, e que irão estruturar praticamente toda a reflexão de Jaime Cortesão sobre os descobrimentos portugueses. A elas se vai juntar uma terceira proposição, aparecida logo depois, em 1932, num artigo da Revista de las Españas, "O Franciscanismo e a mística dos Descobrimentos". Boa parte do trabalho de Jaime Cortesão, no que diz respeito às navegações será a tentativa de afirmar, por meio de grande pesquisa documental, este tripé sobre o qual se apóia o edifício da sua história das descobertas.
Em rápidas linhas, o quadro geral de desenvolvi­mento da nação portuguesa construído por Jaime Cortesão ao longo das décadas de 20 e 30, é o seguinte: a organização social democrática do norte de Portugal permitira, no final da Idade Média, o desenvolvimento de um novo modo de vida nacional, fundamentado no comércio marítimo à distância com base na agricultura. Disso decorreu a formação de uma solidariedade maior entre as populações de beira-mar, a consolidação do desenvolvimento das classes urbanas nos portos e a subseqüente trans­formação de Lisboa -- seu melhor porto -- em empório comercial e metrópole de uma grande nação marítima.
De seu ponto de vista, quando esse movimento desembocou na revolução urbana e popular de 1383‑5, solidificou-se a reorganização social e econômica em função do novo modo de vida nacional.
Dessa mesma revolução triunfante se originaram o plano de defesa da costa, que vai implicar a conquista de Ceuta, e a organização metódica e científica da empresa dos descobrimentos, com o necessário investimento na criação e desenvolvimento dos instrumentos técnicos necessários.
Todo esse desabrochar, no entanto, só poderia tornar-se efetivo graças à existência de um pensamento religioso que lhe fornecesse uma base espiritual e moral adequada. Uma alteração de tal monta, segundo Cortesão, não se poderia fazer sem um novo conjunto de valores religiosos. Tal conjunto era, no caso português, o Franciscanismo.
A tese vem, como vimos, desde 1932, e vai frutificar ao longo da obra de maturidade. Sua melhor exposição em vida do autor é um texto  de 1956, intitulado "O sentido da Cultura em Portugal no século XIV", onde se encontram estas linhas:

Sob o ponto de vista religioso, o que caracteriza a Baixa Idade Média, em Portugal, é o advento da Ordem de São Francisco e a sua fulminante expansão desde os meados do século XIII e, com ela, do conjunto de valores novos, sociais, morais e espirituais, a que conveio chamar‑se o Franciscanismo. Até o advento de São Francisco, a terra para os crentes era apenas um lugar de passagem e de expiação; e o ideal religioso, o isolamento, a inércia contemplativa e a abstenção ascética. A São Francisco e aos seus continuadores se deve a mudança radical desse espírito inibitório da expansão do homem no Planeta." (pp. 190‑191)

Do ponto de vista português, as mais palpáveis conseqüências da difusão do franciscanismo teriam sido a afirmação do gosto natura­lista, que o historiador acredita ser a característica mais marcante da literatura portuguesa dos séc. XIV, XV e XVI; o grande desenvolvimento da teoria do direito natural no séc. XIV, e, finalmente, o fortalecimento da atitude empirista frente ao mundo.
Eis como conclui esse texto de 1956:

Agora podemos definir o sentido da cultura em Portugal no século XIV, como sendo laico, até prescindir da intervenção da Igreja na realização do casamento; civilista, até negar ao Papa o direito da investidura e democratizar a coroação; experimental e expansionista, pelo espírito de dúvida e a negação da autoridade dos Antigos, princípios que presidiram aos primeiros descobrimentos atlânticos ‑‑ enfim, sentido geral e solidário pela mesma tendência da ciência, do direito, da literatura, das artes plásticas e da religião. (p. 201)

Essas idéias, centradas basicamente no período da primeira e da segunda dinastias, ocupam Jaime Cortesão até o final da década de 30. Foi apenas em 1940 que publicou o seu primeiro texto mais longo dedicado à história portuguesa posterior, uma comunicação ao Congresso do Mundo Português, intitulada "A geografia e a economia da Restauração".
Exilado no Brasil, Cortesão começa nesse ano a longa série de trabalhos dedicados à história luso-brasileira, em que justamente o período da Restauração merecerá um estudo monumental. São trabalhos que, não obstante iluminarem a vida do Brasil colonial, têm sua maior importância na revisão que promovem da história portuguesa. Como já se notou, os trabalhos luso-brasileiros de Cortesão representam, desde esse primeiro texto de 1940, a mais radical e bem-sucedida tentativa de superar de vez os valores legados pela Geração de 1870 na apreciação da história dos séculos XVII e XVIII.
Em A geografia e a economia da Restauração, Cortesão discute em primeiro lugar um texto de Antero, em que este afirma que a Restauração só foi possível devido ao abatimento da Espanha, e que o Portugal aí ressurgido nada tem a ver com o outro Portugal, sendo apenas um bastardo, definhado e mal vindo, um "produto artificial da diploma­cia que o seu grande amigo, o Inglês herético, protege, maltrata, diverte, explora," que "pela sua própria força não se manteria de pé..." (p. 65).
No texto de Antero, Jaime Cortesão identifica o paradigma de uma posição mais generalizada, e dominante na historiografia do final do século. Essa posição -- cuja melhor exposição se encontra na História de Portugal de Oliveira Martins -- seria, segundo Cortesão, "em grande parte, falsa", pois esses autores, embora fossem "dois artistas de gênio", teriam feito, ­nos moldes do tempo, história filosofante, preconcebida ideologicamente e sem estudo de fontes.
A essa versão da história, Cortesão vai contrapor a sua própria visão do período, que procura integrar o desenvolvimento da indústria açucareira do Brasil e a situação privilegiada de Portugal no domínio do comércio marítimo numa força única que conduziria às lutas pela Restauração da soberania lusitana.
A hipótese, assim, é que o comércio do açúcar no Brasil foi o que levou Portugal à Restauração, graças ao renascimento das forças nacionais, resultante da retomada do gênero de vida mais próprio ao país, isto é, o comércio marítimo à distância baseado na agricultura. A principal peça de seu esquema argumentativo é o combate, vigoroso e erudito, à afirmação generalizada desde 1870 de que a marinha portuguesa entrara em profunda decadência durante o período filipino. Conseguindo demonstrar convincentemente que, pelo contrário, no início do século XVII, a frota portuguesa e a ciência náutica tiveram uma recuperação muito impressionante, o texto termina por afirmar que foi daí que provieram a força e o dinheiro com que a burguesia empenhada nesse comércio sustentou o movimento da Restauração e a guerra contra Espanha.
Esse esforço programático de combater os preconceitos pessimistas legados pela geração de 70 vai desaguar no grande panorama que traçou da vida luso-brasileira do século XVIII em Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid.
Sem contar os tomos de documentos, que são cinco, têm-se aí, centrados na figura de Gusmão, quatro volumes de texto, ao longo dos quais o historiador se empenha em elevar, na medida do possível, a figura tão denegrida de D. João V, que de Oliveira Martins só recebera como elogio a afirmação irônica de que "não era sempre bolônio".
Pode parecer, a princípio, que tenha existido alguma falta de sentido de proporções nesse estudo. Afinal, por que Alexandre de Gusmão, um relativamente obscuro secretário e favorito de D. João V, mereceria uma empresa tão grandiosa como a que um dos maiores historiadores portugueses deste século lhe consagrou?
No entanto, à medida que se percorrem as páginas do livro, percebe-se melhor o escopo da tarefa: nesse luso-brasileiro de origem humilde, estrangeirado, iluminista e adepto da diplomacia como a melhor forma de resolução dos conflitos, Jaime Cortesão vai representar as virtudes portuguesas tradicionais, como as entendia. Gusmão -- que promove, em pleno século XVIII, uma nova edição da política de sigilo no que se refere aos conhecimentos geográficos -- é também um símbolo do universalismo português (pois era luso-brasileiro e "estrangeirado"), da força patriótica das classes populares (porque era de origem humilde, e chegou ao lugar que ocupou graças aos dotes pessoais) e do espírito da nova religiosidade franciscana (porque Gusmão era, segundo o autor, forte simpatizante da ordem de Assis).
Por contraste, a elevação de seu vulto permite descrever a mesquinharia do ambiente português da época, que termina por originar a ditadura do Marquês de Pombal, cuja figura é franca­mente odiosa a Cortesão.
Lendo Alexandre de Gusmão e o tratado de Madrid, a impressão final é, por isso tudo, muito curiosa. É certo que Cortesão destrói, com sólidos argumentos, o quadro negativo e morto que a Geração de 70 – especialmente Oliveira Martins – tinha traçado do período. Vitorino Magalhães Godinho já notou que esse ponto: nenhum outro trabalho tinha contribuído tanto, até esse momento, para enfraquecer, na mitologia da época, a imagem martiniana da morte do Portugal histórico em 1580. Por outro lado, não há como não perceber que, com esse trabalho, Cortesão efetua uma revalorização da história biográfica e simbólica de Oliveira Martins, que explicitamente condenava.

Deformado pela gota, torcido pelas dores, arruinado e amargado até ao fundo da alma pelo desespero de ver a sua obra do tratado caída em mãos tão más e traiçoeiras, o coração parou-lhe, esfriando para sempre os suores de sua paixão de criador crucificado. [...] Na Gazeta de Notícias, nem palavra. Sarcasmo do acaso e remate lógico do seu drama: no dia 1 de Janeiro, noticiava, a seguir, o órgão oficial que o Cardeal Patriarca celebrara um Te Deum de graças pelos grandes favores que o céu concedera, durante o ano volvido, a Portugal.

É assim que Jaime Cortesão narra o final da vida de Alexandre de Gusmão. Sem conhecer a autoria, não seria possível atribuir o trecho a Oliveira Martins? Como essa, há muitas e muitas outras passagens nesse livro em que não apenas o esforço de construção biográfica, mas o próprio estilo e forma de compor os quadros simbólicos, fazem lembrar imediatamente as últimas biografias do autor de Os Filhos de D. João I.
Finalmente, sem querer levar muito longe a homologia, registro apenas que, além do estilo e do procedimento de simbolização das forças históricas em personagens individuais, aproximam ainda de Martins o último Cortesão a crença na história como lição moral e a coloração apaixonadamente política, que colore este livro tão intensamente quanto a paixão política de Martins, segundo Eça de Queirós, coloria o Portugal Contemporâneo. De fato, se o volume é lido contra o pano de fundo do tempo de sua publicação e da situação biográfica do seu autor, é difícil não ver, no elogio do intelectual de classe humilde, geógrafo estrangeirado, luso-brasileiro, lutando contra a mesquinharia da corte de D. João V para afirmar a sua ampla visão política, e na aversão à figura autoritária de Pombal que na mesma época começa a dominar o horizonte político português, uma projeção das vicissitudes do historiador, exilado há 23 anos do seu país, onde imperava uma ditadura.
Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid é uma das principais obras de Jaime Cortesão. Se não for a mais importante, é, sem dúvida, das mais ambiciosas. Para realizá-la, o historiador recebeu total apoio do Instituto Rio Branco, o que lhe permitiu usufruir de excelentes condições de trabalho, como até então nunca tivera. E foi talvez por dispor dessas condições excepcionais que ele pôde unir aqui, de modo forte e articulado como poucas outras vezes o faria, as duas características principais do seu temperamento de pesquisador: o rigor documental e o gosto pela especulação ousada, nem sempre sustentada por provas conclusivas, como é o caso da que vem no capítulo "Alexandre de Gusmão e a Ilha-Brasil": o mito da "ilha-Brasil" que será recusado como formação mítica e como fator histórico importante, pouco depois, por Sérgio Buarque de Holanda. No geral, qualquer que seja o valor que se dê a reparos como o do autor de Visão do Paraíso, a verdade é que o livro de Cortesão é um monumento imponente, que ilumina o período de que se ocupa com uma luz nova: a luz de uma perspectiva integradora, luso-brasileira, que não teve, depois dele, outro momento tão brilhante.
­            Após Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid, Cortesão publica ainda três trabalhos importantes no campo dos estudos coloniais. São eles os já referidos A fundação de São Paulo – capital geográfica do Brasil, Pauliceae Lusitana Monumenta Histórica e Raposo Tavares e a formação territorial do Brasil.
Com esse conjunto de obras, com a sua atividade jornalística intensa no Brasil (de que é exemplo a série de 64 artigos, "Introdução à história das bandeiras",  publicados entre 1947 e 1949 no jornal O Estado de São Paulo) e com a sua atividade quotidiana de professor do Instituto Rio Branco, Jaime Cortesão se tornou uma figura da maior importância  na cultura brasileira do pós-guerra.
Sobre os motivos prováveis dessa obra e dessa figura pública não terem recebido ainda a atenção que merecem dos historiadores da moderna cultura brasileira, já disse o que aqui cabia ser dito do ponto de vista acadêmico. Dum ponto de vista mais geral, creio que o reconhecimento pleno do lugar que ocupou se imporá no dia em que a luso-brasilidade deixar de ser o que tem sido desde há cem anos até hoje, isto é, apenas um discurso oficial, que se esgota em jantares e proclamações rodeadas de pompa e se reduz ao transporte subsidiado, para um e outro lado do Atlântico, de um punhado de figurões especializados em celebrações vazias. Nesse dia (que ainda parece longínquo), quando se buscar a sério alguma nova forma de convergência não-colonial para a cultura de língua portuguesa, será provavelmente reconhecido como exemplo de verdadeiro luso-brasileirismo esse homem que, no século XX, serviu à nação comum com a mesma inteligência brilhante e a mesma dedicação e persistência com que o fez o seu herói do século XVIII.

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Nota bibliográfica:
Todas as citações de textos do autor foram feitas segundo a edição das Obras completas de Jaime Cortesão feita em meados dos anos de 1980 pela editora Livros Horizonte, de Lisboa. A única exceção é o trecho retirado de A fundação de São Paulo, capital geográfica do Brasil. Nesse caso, utilizei a primeira edição, realizada no Rio de Janeiro, em 1955, pela editora Livros de Portugal.
O estudo de Vitorino de Magalhães Godinho a que aludo no corpo do trabalho é o que veio como introdução a Os factores democráticos na formação de Portugal. Intitula-se "Presença de Jaime Cortesão na historiografia portuguesa" e foi escrito em 1964.
Embora não o refira explicitamente, está presente em todo o texto o capítulo em que Óscar Lopes estuda o sentido da obra histórica de Jaime Cortesão em Entre Fialho e Nemésio (Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1987): "Panorama geral dos doutrinários - 1910-1925", pp. 239-247.
Um último registro se faz necessário, para completar a bibliografia crítica essencial aqui utilizada: o do estudo de Jorge Borges de Macedo, "A teoria da história de Jaime Cortesão", publicado no número especial da revista Prelo dedicado ao historiador (Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, dez. de 1984).