[Jornal 6]
T. S. Eliot
[texto publicado na coluna Livros, do jornal Correio Popular,
em 14 de outubro de 2000]
Dentre os poetas do século XX,
T. S. Eliot (1888-1965) é um dos que teve mais ampla e profunda influência
sobre os contemporâneos. De fato, é fácil constatar que não só os seus versos,
mas também os seus textos de teoria e de crítica da poesia deixaram marcas
profundas nas literaturas ocidentais do primeiro e do segundo pós-guerra.
No Brasil não foi diferente,
embora a recepção de Eliot tenha sido um bocado particular. Lido principalmente
nos anos 40, Eliot vai permanecer associado aqui ao tipo de poesia que se
convencionou denominar de 'Geração de 45'. É uma injustiça. E o pior é que é
uma injustiça que continua sendo feita, pois mesmo hoje a tradução mais
facilmente encontrável (a publicada pela Nova Fronteira) transforma Eliot num
escritor empolado, amante da palavra rara e da sintaxe preciosa e que se
expressa num tom uniformemente alto. Ou seja, transforma-o num poeta monótono,
num chato.
Eliot pode ser acusado de
muitas coisas, menos de ser chato. Ou de ter apenas um tom. Pelo contrário, o que
caracteriza a sua poesia é a finura na alternância e no contraste (irônico ou
trágico) dos registros e a capacidade de obter efeitos muito intensos com
procedimentos minimalistas.
O melhor da sua obra, do meu
ponto de vista e da maior parte da crítica, são dois poemas longos: A Terra
Devastada, de 1922, e Quatro Quartetos, de 1943. O primeiro, num
desses inquéritos da moda, foi aclamado como o melhor poema do século XX. Do
segundo pouco se fala no Brasil, embora haja dele uma boa tradução, feita por
Oswaldino Marques, na Coleção Prêmio Nobel.
Na impossibilidade de
comentar, neste espaço, aqueles poemas, optei apresentar dois textos breves,
nos quais se pode perceber o tom mais característico da poesia de T. S. Eliot.
O primeiro poema chama-se La figlia che piange. É do começo da carreira de Eliot: foi escrito em 1911, quando o
poeta estudava em Harvard e publicado apenas em 1916, numa revista de poesia de
Chicago. O segundo já pertence ao período da sua maturidade. Chama-se Marina
e foi escrito em Londres, em 1930.
Não é fácil a poesia de Eliot.
Ela é mesmo resistente ao primeiro contato: não tem clara estrutura narrativa,
e tampouco é poesia lírica, baseada no discurso confessional ou expressivo. As
partes em que se divide o poema evocam ou provocam determinados estados de
espírito e não se ligam logicamente umas às outras. O resultado da primeira
leitura, por isso, nunca é um desenho claro, mas a percepção de que se trata de
fragmentos justapostos, de sentido geral obscuro. Ficam na memória algumas
imagens, algumas frases que ecoam e que provavelmente o leitor acabe por
repetir mentalmente, em situações várias. Leitura após leitura, os diferentes
focos parciais de atenção possivelmente se cristalizarão em um desenho, ou
melhor, em vários desenhos possíveis, mais ou menos coerentes e não exclusivos.
Mas não é o caso de teorizar
sobre isso, e, sim, de apresentar os poemas.
La figlia che piange significa, em italiano, a
moça que chora. A epígrafe latina é um verso da Eneida, de Virgílio:
"Ó virgem, como devo chamar-te?". Quem diz essa frase no poema latino
é Enéas e a situação é a seguinte: ele acaba de chegar a Cartago, fugindo de Troia,
e sua mãe, que é a deusa Vênus, lhe aparece disfarçada de virgem caçadora e lhe
dá informações sobre o território a que chegou e instruções para entrar em
contato com Dido, rainha do lugar.
Qual a relação entre a moça
que chora e a fala de Enéas à sua mãe? Esse é o primeiro desafio do poema. A
epígrafe sugere que o poema deva ser lido como uma história de abandono de uma
mulher pelo homem a quem se dedicou. Isto é, que o devemos ler como um eco
moderno da história de Dido e Enéas. Mas também pode reforçar uma leitura muito
diferente. Se a pergunta é dirigida à mãe que se apresenta incógnita, não seria
possível ler o poema como a reconstrução de um momento de ruptura de uma
relação familiar? Essa pergunta conduz a outra: qual é a relação entre a voz
que comanda a representação como se estivesse compondo um quadro ou uma cena de
teatro e o conteúdo emocional da própria cena? Trata-se apenas de uma voz que
constrói um cenário fantasioso, ou de um monólogo no qual alguém tenta
recuperar de alguma forma uma cena para compreendê-la de uma vez e assim se
livrar dela? Provavelmente, é tudo isso ao mesmo tempo. Ou melhor, a cada
momento da leitura, uma dessas possibilidades vem para primeiro plano, para ser
depois suplantada por outra, sem possibilidade de escolhermos uma só e a
impormos sobre as demais.
O segundo poema poderá parecer
menos ambíguo, mas é talvez mais rarefeito e mais obscuro. O título Marina pode
ser lido de três formas diferentes: é um nome de mulher; designa o lugar onde
se atracam barcos; é uma denominação genérica de um tipo de composição poética
ou pictural: marinha. Já a voz que fala é a de um velho que anseia pela paz
espiritual e ao mesmo tempo faz um balanço da vida, ou a de um homem assediado
pelas lembranças, que anseia pela morte, uma vez que o passado é irrecuperável?
Este poema também tem uma
epígrafe em latim, que foi retirada de uma peça de Sêneca, chamada Hércules
furioso: "que lugar é este, que região, que parte do mundo?" O
sentido do poema é independente da peça, mas o seu enredo é um pano de fundo
que importa conhecer. A deusa Juno, perseguidora de Hércules, fez com que ele
perdesse a razão. A frase transcrita é dita pelo herói no momento em que, após
um período de idiotia, começa a recuperar a razão. Na seqüência, Hércules
perceberá horrorizado que, durante o tempo em que esteve fora de si, matou, num
acesso de fúria, toda a sua família.
Não é preciso saber nada disso
para poder gostar do poema, que não seria um bom poema moderno se não
produzisse, com as suas imagens, os seus ritmos e o seu manejo dos tons um
impacto imediato sobre a sensibilidade do leitor atento. Mas penso que os
leitores com mais informação ou experiência de leitura poderão lê-lo com maior
prazer.
Daí estas considerações, que,
resumindo alguns dos resultados da minha própria experiência de leitura desses
poemas, querem ser apenas um convite (talvez um pouco longo, vejo agora) à
leitura dos versos aqui apresentados e traduzidos.
La figlia che piange
O quam te memorem virgo...
Stand on the highest pavement of the stair –
Lean on a garden urn –
Weave, weave the sunlight in your hair –
Clasp your flowers to you with a pained surprise –
Fling them to the ground and turn
With a fugitive resentment in your eyes:
But weave, weave the sunlight in your hair.
So I would have had him leave,
So I would have had her stand and grieve,
So he would have left
As the soul leaves the body torn and bruised,
As the mind deserts the body it has used.
I should find
Some way incomparably light and deft.
Some way we both should understand,
Simple and faithless as a smile and shake of the hand.
She turned away, but with the autumn weather
Compelled my imagination many days,
Many days and many hours:
Her hair over her arms and her arms full of flowers.
And I wonder how they should have been together!
I should have lost a gesture and a pose.
Sometimes these cogitations still amaze
The troubled midnight and the noon's repose.
Tradução de P.F. e Eric Sabinson:
La figlia che piange
O quam te memorem virgo...
Parada no último patamar da escadaria –
Encostada num vaso de jardim –
Tece, tece a lua do sol nos teus cabelos –
Abraça as tuas flores numa surpresa dolorida –
Joga-as no chão e volta-te
Com um lampejo de mágoa nos olhos:
Mas tece, tece a luz do sol nos teus cabelos.
Assim eu o faria partir,
Assim eu a faria ficar, parada e aflita,
Assim ele teria partido
Como a alma deixa o corpo lacerado e ferido,
Como a mente abandona o corpo que usou.
Eu teria encontrado
Algum jeito incomparavelmente leve e fácil.
Algum jeito que ambos pudéssemos entender,
Simples e descrente como um sorriso e um aperto de
mão.
Ela virou o rosto, mas chegando o outono
Forçou minha imaginação muitos dias,
Muitos dias e muitas horas:
Seu cabelo sobre os braços e os braços cheios de
flores.
E fico imaginando como eles teriam ficado juntos!
Eu teria perdido um gesto, uma pose.
Às vezes tais pensamentos ainda assombram
A agitada meia-noite e o repouso do meio-dia.
=x=x=x=x=x
Marina
Quis hic locus,
quae regio, quae mundi
plaga?
What seas what shores what grey rocks and
what islands
What water lapping the bow
And scent of pine and the woodthrush
singing through the fog
What images return
O my daughter.
Those who sharpen the tooth of the dog,
meaning
Death
Those who glitter with the glory of the
hummingbird, meaning
Death
Those who sit in the sty of contentment,
meaning
Death
Those who suffer the ecstasy of the animal,
meaning
Death
Are become unsubstantial, reduced by a
wind,
A breath of pine, and the woodsong fog
By this grace dissolved in place
What is this face, less clear and clearer
The pulse in the arm, less strong and
stronger C
Given or lent? more distant than stars and
nearer than the eye
Whispers and small laughter between leaves
and hurrying feet
Under sleep, where all the water meet.
Bowsprit cracked with ice and paint cracked
with heat.
I made this, I have forgotten
And remember.
The rigging weak and the canvas rotten
Between one June and another September.
Made this unknowing, half conscious,
unknown, my own.
The garboard strake leaks, the seams need
caulking.
This form, this face, this life
Living to live in a world of time beyond
me; let me
Resign my life for this life, my speech for
that unspoken,
The awakened, lips parted, the hope, the
new ships.
What seas what shores what granite islands
towards my timbers
And woodthrush calling through the fog
My daughter.
=x=x=x=x
Tradução de P.F. e Eric
Sabinson:
Marina
Quis hic locus,
quae regio, quae mundi
plaga?
Que mares que praias que
rochas cinzentas e que ilhas
Que água lambendo a proa
E o cheio de pinho e o tordo
cantando através da bruma
Que imagens retornam
Ó minha filha.
Aquele que afiam os dentes do
cão, significando
Morte
Aqueles que brilham com a
glória do beija-flor, significando
Morte
Aqueles que se instalam na
pocilga da satisfação, significando
Morte
Aqueles que estão sujeitos ao
êxtase dos animais, significando
Morte
Tornaram-se insubstanciais,
reduzidos por uma brisa,
Um sopro de pinho, e a névoa
da canção do bosque
Por esta graça dissolvida no
espaço
Que rosto é este, menos e mais
claro
O pulso no braço, menos e mais
forte –
Dado ou emprestado? Mais longe
que as estrelas e mais perto que os olhos
Sussurros e risinhos entre
folhas e pés apressados
Sob o sono, onde todas as
águas se encontram.
O mastro da proa rachado pelo
gelo e a pintura rachada pelo calor.
Eu fiz isso, esqueci
E me lembrei.
O cordame fraco e as velas
apodrecidas
Entre um junho e outro
setembro.
Eu fiz isso sem saber,
semiconsciente, ignorado, meu próprio.
As tábuas de resbordo fazem
água, as juntas precisam ser calafetadas.
Esta forma, este rosto, esta
vida
Vivendo para viver num mundo
de tempo além de mim; que eu possa
Renunciar à minha vida por
esta vida, às minhas palavras pelo não dito,
O desperto, lábios separados,
a esperança, os novos barcos.
Que mares que praias que ilhas
de granito perto do costado do navio
E o tordo chamando através da
névoa
Minha filha.