TEXTOS DISPONÍVEIS

sábado, 7 de julho de 2012

Marcos Siscar, O Roubo do Silêncio


O Roubo do Silêncio, de Marcos Siscar

 [texto publicado no portal Cronópios, em 25/10/2009]



Marcos Siscar é uma das vozes significativas da poesia brasileira contemporânea. Tenho acompanhado com atenção e interesse cada novo lance da sua obra poética, bem como os ensaios em que reflete sobre poesia. Da sua poesia própria já se disse que é “culta e teórica”.[1] Por isso mesmo, provoca a reflexão crítica e estimula a discussão mais ampla.
Na última página do seu mais recente livro, O roubo do silêncio, lê-se: “Simplicidade é artifício recolhido, dobrado, alisado a ferro. Leveza aérea daquilo que foi corrigido e passado a limpo”. E poucas linhas abaixo: “Simplicidade é aquilo que se quer. É a górgona do sentido. Desejo de dados já jogados, de versos estendidos com as faces para cima.”
Aparentemente, temos na primeira sequência a glosa de um lugar-comum: em arte tudo é construção, a simplicidade é um objetivo de uma poética, um efeito, um resultado, não uma condição ou um estado de espírito.
Mas, se for assim, como entender a segunda declaração? Se a simplicidade é o que se deseja como resultado poético, qual é o seu aspecto horrível e qual o seu poder paralisante sobre o sentido?
Do ponto de vista da formulação mais alta e convencional, bordejando a angústia da influência, essa górgona que atrai, que ameaça de paralisia, é um ser de muitos nomes. Alguns deles surgem com todas as letras na sequência desse último texto do livro: Bandeira, Montale, Kaváfis, cummings, T. S. Eliot. Uma lista sem evidente coerência, invejando de um o talento e de outro o esforço; de um o poema, de outro a sesta, do terceiro o ambiente, do quarto o que não é o procedimento difundido e mais característico, do último o que não é o tom. Uma listagem díspar que termina pela utilização banal da palavra que é objeto de todo o esforço aforismático do texto, reduzida a uma locução corriqueira: “Eu queria, é simples, mas bem aqui, longe de Starnbergersee”, vinculada à afirmação do local, por interposição de outra reminiscência, a confusão de línguas e fronteiras, à margem do lago alemão da terra devastada. Ou seja, por um gesto de ironia insustentável no calidoscópio de citações, paródias, paráfrases e referências enviesadas que constituem o livro.  
De fato, o livro é dominado pelo vulto dos paredros. Além dos que vêm nesse último texto, há dois nas epígrafes (Rimbaud e Drummond) e na selva selvaggia de reflexos, é fácil perceber a fisionomia fragmentária de Baudelaire, Mallarmé, Ferreira Gullar e outros que seria ocioso caçar para nomear aqui. Mas como a identificação dos intertextos é justamente a isca aliciante do livro, preparada para o leitor dotado de instrumentos para a decifração, a busca da simplicidade, que aparece como o ingênuo ridículo e é denunciada como repetição de estratégias, num jogo já jogado – e poderia completar, mantendo a paráfrase de Eliot: “por gente com quem não podemos pretender rivalizar” –, se tinge também de certa coloração melancólica – quase como a saudade de algo que nunca existiu senão como desejo. Não é possível estar bem aqui, se para definir o aqui se tem necessidade de convocar o Starnebergersee.
Por outro lado, é certo que nesse quadro o simples não é oposto ao complexo. O objetivo do texto não é discutir os limites da expressão do ponto de vista do conceito; pelo contrário, seu foco é a distinção entre simplicidade e espontaneidade, ou seja, imediatismo de expressão.
Sendo assim, o sentido que afinal pode ser paralisado pela simplicidade surge não mais como o significado, mas como aquilo que foi objeto de um sentir, que foi experimentado. Essa dupla acepção da palavra “sentido”, o reverter do nível de referência entre o abstrato e o concreto, entre o geral e o individual se mantém na sequência do texto e dá o movimento íntimo do livro, animando cada uma das suas cinco partes.
Delas (“Prefácio sem fim”; “Sentimento da violência”, “Ficção de origem”, “Balões brancos” e “Cidades sem sol”) é a segunda que interessa a este comentário, porque dá o tom do livro e apresenta os ritmos e procedimentos que, ao longo das demais, comporão o retrato do tempo. Nela se encontra sintetizada a novidade desse volume, em relação à obra pregressa do autor.
A primeira peça da seção “Sentimento da violência” se intitula “As flores do mal”. O título instaura um desenho claro, que busca as fronteiras da modernidade, pois o livro abre com a referência à obra que a crítica vulgarizou como marco de modernidade e fecha com a excelência modernista do Waste Land. As formas de lidar com a herança, de incorporá-la e superá-la ou, pelo menos, decepá-la do seu poder de paralisia são um dos núcleos positivos de tensão do livro.
Desde o primeiro parágrafo, ocorre a redução bruta da expectativa e da perspectiva instalada pelo título a um cenário de fundo de quintal. As flores do mal terminam por ser carrapichos, nomeados cuidadosamente nas suas espécies. No entanto, o investimento alegórico é grande: o aparecimento das ervas é devido a uma falha de responsabilidade individual, o silêncio é o gerador de mato, a erva impetuosa representa uma ameaça para o espaço civilizado do pomar, o sentido calejado é espicaçado em certos momentos pela intrusão do mato, o arrancador de flores do mal se declara um misto de filósofo e artesão, um defensor da ordem no pomar, ou seja, no jardim das musas. Já não é um maldito este que nos fala. Não cultiva flores do mal, nem nelas se compraz culpadamente, nem demonstra maior empenho em combatê-las. Pelo menos, não é maldito pelas mesmas razões que Baudelaire, convocado pelo título. Não há aqui movimento luciferino de superar as limitações impostas por um deus ciumento às suas criaturas, nem comprazimento pecaminoso nos sentidos, muito menos revolta por não poder ter, deste lado da vida, delícias que se prometem para depois dela. Este parece afinal um ser inofensivo: enquanto as ervas se renovam, ele se deita na grama e no fundo da alegoria, após uma peleja exaustiva, na qual, de joelhos, arrancou alusões e ervas más que não param de brotar. A desproporção entre as referências do poeta contemporâneo e do poeta moderno cria um efeito de comicidade corrosiva, que mais se acentua pela ausência de epifania. Mas não é o absurdo o resultado. O absurdo não se instala a não ser por um momento, como decorrência da desproporção, como efeito da concentração no pequeno, no irrisório. O procedimento lógico aqui não é a reductio ad absurdum, mas a reductio ad parvum. Por isso mesmo, a peça seguinte, ao traçar a fenomenologia do carrapicho enfraquece a primeira, reinstalando um discurso alto, no qual a ironia fica contida ou se dissolve na evocação final da infância.
Na sequência, o texto que dá nome ao livro, embora seja aberto por uma volta à redução ao pequeno e pela corrosão irônica, logo ensaia a mimese do discurso engajado. Mas a ironia não pode tudo. Aqui, parece francamente impotente para afastar o namoro real, por baixo do pano, com o Poema sujo de Gullar, que aflora não na última parte do livro, onde é chamado pelo nome (uma peça ali é denominada “Outro poema sujo”), mas disseminado intermitentemente ao longo do volume – respondendo pelos vários momentos de tensão mais baixa e formulações apaziguadoras da consciência burguesa (para usar a linguagem do engajamento) como, por exemplo, “Natureza morta”.
Contribui para essa impressão o fato de que, precisamente onde se poderia esperar a melhor justificação do título (no texto denominado “O roubo do silêncio”), depara-se com uma declaração das menos suficientes para explicar o sentido do livro, seu título e a própria forma assumida pelo seu discurso: “A vida vai bem em prosa, quando a violência lhe rouba definitivamente a liberdade de corte”. É uma explicação que, se levada a sério, banalizaria a forma do poema em prosa de tal modo que não haveria gesto irônico posterior capaz de redimi-la. O melhor é concluir que, embora venha no poema homônimo do volume, não é uma asserção mais sincera ou confiável do que as demais, embora seja mais fácil de compreender do que esta outra: “O silêncio é o sofrimento da palavra, quando a poesia do silêncio lhe é roubada”. O interessante é que o raciocínio não se segue: o definido entra como definidor. A poesia do silêncio é algo roubado à palavra; desse roubo resulta que a palavra sofre e a forma do seu sofrimento é a não-palavra, o silêncio. Se fosse possível, “simplificar” a proposição, teríamos que quando se rouba a poesia à palavra, obtém-se o silêncio. Nesse caso, a palavra não existiria plenamente sem a poesia. A poesia responderia pelo sentido da palavra; sem poesia, a palavra esvaziada equivaleria ao silêncio. Mas não é isso o que se lê. Há, claramente proposta, a existência de uma “poesia do silêncio”, que ecoa a “musicista do silêncio” de Mallarmé. Mas a alusão não salva: a frase seguinte traz para o chão: “A vingança dos desapropriados é o barulho da prosa do mundo”. Compõe um quadro de família, essa frase, quando posta lado a lado com esta outra: “a vida vai bem em prosa”.
A encenação da violência moderna atinge ponto de destaque na peça “A vítima”, na qual o vocabulário exibe gosto cediço (“palavras peroladas de silêncio”, por exemplo). Aqui também, a ironia não consegue vir em socorro do sentido: a cedência à moda do discurso contemporâneo sobre a violência termina por revelar-se a verdadeira górgona do livro.
O ressaibo do tributo ao empenho felizmente se dissolve em poemas como “Ötzi”, que retoma o texto de abertura da seção “Sentimento da violência” e consegue equacionar as linhas de força do volume, reduzindo o lugar do contemporâneo por meio da postulação de que as raízes das flores do mal se perdem no tempo. O homem pré-histórico, autor e vítima da violência, está na base de uma vertigem que guarda alguma semelhança com a da impotência frente às ervas daninhas: “Deito-me no tapete para ver melhor”. A frase final, porém, é quase um arrependimento do que parece um falhado impulso de transcendência: “Talvez algumas se levantassem, tendo força de presente, e invertessem por curto instante a direção daquilo que, em nosso olhar, divertido, observa.” Por que “divertido”? O sentido mais arcaico é “desviado” ou “dissimulado”.  Mas o uso contemporâneo produz um ricto de ironia, de sabor defensivo. Sem a ambiguidade entre o sentido presente e o arcaico – que de fato é preciosa –, o poema perderia um pouco da sua força, que é grande, num fecho acomodatício.
Um exercício final de definições encerra a parte das “flores do mal”, fronteira deste comentário. Intitula-se, alusivamente a Perec, “Modo de usar”. A bula, não a arte poética – é o que diz o título irônico sobre esse breve capítulo de poética assertiva.
O texto abre com outra frase de feição lapidar: “Sinceridade não vai bem em prosa”. Logo, sendo em prosa o livro, ou ele destoa do esperado, porque é sincero; ou atende ao esperado, negaceando ou sendo moeda de troca. Qual o terceiro excluído? Se a oposição fosse entre a poesia e a prosa, a decisão seria mais difícil. É, porém, entre duas formas – digamos – de disposição: verso e prosa. Por isso a poesia pode entrar como o terceiro elemento, a separar ou a unir os contendores: “o verso se torna a prosa da poesia quando se nutre da fidelidade à experiência ou da impessoalidade programada”. É um jogo com três elementos, portanto. E a forma da frase nos permite supor a possibilidade de uma operação inversa, que teria por expressão a pergunta: de que modo se poderia obter a poesia da prosa? Ou não existe uma poesia da prosa, mas apenas uma prosa da poesia? Qual é o tipo e qual é a variação por carência ou acrescentamento: a prosa ou a poesia? A frase final poderia fazer a aposta pender para a primeira: “não há verso simples, apenas prosa subvertida”. Mas haveria um verso complexo, que não guardasse com a prosa nenhuma relação? Ou é apenas o desejo de simplicidade que torna o verso uma modalidade da prosa?
As perguntas que esse discurso desperta ou mesmo exige evidenciam outro aspecto, outra inflexão temporal, senão mesmo formal: ensaia-se aqui o ensaio. O gosto do paradoxo, porém, e o pendor para o lapidar paralisam o movimento próprio da forma, que é o desenvolvimento e a clarificação de uma percepção, de uma intuição.
 O que há de ensaio nesse livro, assim, além de evocar os mitos, as origens e os adversários que busca exorcizar, é uma reivindicação de genealogia e um conjunto de recusas, que mapeia as atualizações contemporâneas da forma. Mas o faz não a modo de discurso sobre, mas de discurso ao lado, que almeja presentificar a questão que examina ou convoca. Ou seja, como arte. Como se lê em outra parte, “o que pode haver em comum entre um poema e um ofício [...] é relevante para a poesia? Digamos que só um poema pode dizê-lo.” Mas, no quadro traçado pelo livro, talvez o leitor devesse completar, levando ao limite o paradoxo: ...em prosa. Ou em quase-prosa, como mostra ostensivamente “Poesia a caminho”, único do livro que vem despido dos apetrechos mais ostensivos da pontuação e das maiúsculas, funcionando o polissindetismo e a dificuldade da delimitação sintática, paradoxalmente, como o corte recusado dos versos.
Mais do que um conjunto de ensaios sobre a poesia, tem-se aqui um conjunto de quase-ensaios ou para-ensaios variados à volta da e de poesia. Em “Prosa”, as drummondianas “palavras [que] rolam num rio difícil e se transformam em desprezo” aparecem metamorfoseadas em “minhas escamas se descolam, rolam num rio difícil e se transformam em história.” Essa nova procura da poesia não se faz em versos, mas em compensação a metáfora pode ocupar o lugar na ponta da mesa do banquete. Não se trata agora de palavras rolando autônomas ou em estado de dicionário, mas de partes que se desprendem de um corpo metafórico. E como tal esses fragmentos deixam um rastro, que é  história. Ou seja, registro, matéria memorável, narrável. O quase-ensaio dessa prosa que aspira à poesia é, portanto, num tempo que transborda a modernidade que lhe dá estofo, uma ambição de registro do “sentido”, do vivido, protegido pelo artifício da górgona que o paralisaria.
Noutro trecho, que aponta para o mesmo poeta, lê-se “Vou lhe contar um segredo. Hoje em dia, é preciso coragem para escrever um verso sincero.” Frase que o livro permite desdobrar: é preciso coragem para escrever um verso; é preciso coragem para escrever sinceramente. É a “alegria da negação”, que também se convoca naquele texto central, chamado “Prosa”, que começa afirmando a indeterminação: “Na superfície deste pântano, quando uma cabeça assoma fora d’água, não se sabe se é pato ou serpente”. Em outro nível, se é ensaio ou poesia.
O que permite ler o seu livro como uma resposta a pragas da literatura brasileira atual, em domínios que se mantêm à margem do romance estribado na história e na memória, no relato policial ou no turismo dos lixões e das favelas. De fato, não há aqui o tatibitate minimalista da poesia de herança concreto-cabralina, nem parentesco com a prosa sua irmã, prisioneira da paronomásia, nem concessões à gaiolinha pintada dos novos parnasianos – escravos da medida automática, acadêmicos no sentido curto –, e muito menos comunga este livro o caldo indigesto de preciosismo tardo-simbolista, auto-intitulado neo-barroco, amante do bestialógico.
Com esse gesto, o poeta terá respondido melhor ao desafio do que o crítico. De fato, Marcos Siscar crítico talvez não concorde com este panorama da poesia brasileira contemporânea. Pelo menos, não concordava quando, um ano antes do Roubo, assinou um texto sobre “A cisma da poesia brasileira”, no qual se revelava otimista, capaz de apostar em que a profusão de má poesia e os muitos reparos críticos ao que boiava nessa grande maré de coisas ruins fossem, em si mesmos, um índice da importância da mesma poesia má ou, quem sabe, um sinal de que a questão da qualidade merecesse ficar em segundo ou terceiro plano perante a vitalidade que a agitação lhe sugeria.[2] O que é estranho, pois um homem atento ao quintal não deveria confundir agitação com vida, desde que tivesse visto como o rabo cortado de uma lagartixa se debate sozinho, enquanto o corpo a que pertencia passa ao largo, em grande carreira.
O roubo do silêncio é um livro importante não só pelos seus momentos altos de realização, mas porque não é solidário ao geral, porque ensaia um produtivo discurso de fronteira e porque o seu caráter claramente defensivo pode ser lido como uma afirmação arrevezada da centralidade da poesia no contemporâneo. Pato ou serpente, está muito acima do nível viscoso da água.


[1] João Adolfo Hansen, na orelha de O roubo do silêncio. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006.
[2] Publicado em Sibila — Revista de Poesia e Cultura, ano 5, n. 8-9, 2005 e disponível em http://www.germinaliteratura.com.br/sibila2005_acismadapoesia.htm .