[texto publicado no portal Cronópios, em 25/10/2009]
Marcos Siscar é uma das
vozes significativas da poesia brasileira contemporânea. Tenho acompanhado com
atenção e interesse cada novo lance da sua obra poética, bem como os ensaios em
que reflete sobre poesia. Da sua poesia própria já se disse que é “culta e
teórica”.[1] Por isso
mesmo, provoca a reflexão crítica e estimula a discussão mais ampla.
Na
última página do seu mais recente livro, O
roubo do silêncio, lê-se: “Simplicidade é artifício recolhido, dobrado,
alisado a ferro. Leveza aérea daquilo que foi corrigido e passado a limpo”. E poucas
linhas abaixo: “Simplicidade é aquilo que se quer. É a górgona do sentido.
Desejo de dados já jogados, de versos estendidos com as faces para cima.”
Aparentemente,
temos na primeira sequência a glosa de um lugar-comum: em arte tudo é
construção, a simplicidade é um objetivo de uma poética, um efeito, um
resultado, não uma condição ou um estado de espírito.
Mas,
se for assim, como entender a segunda declaração? Se a simplicidade é o que se
deseja como resultado poético, qual é o seu aspecto horrível e qual o seu poder
paralisante sobre o sentido?
Do
ponto de vista da formulação mais alta e convencional, bordejando a angústia da
influência, essa górgona que atrai, que ameaça de paralisia, é um ser de muitos
nomes. Alguns deles surgem com todas as letras na sequência desse último texto
do livro: Bandeira, Montale, Kaváfis, cummings, T. S. Eliot. Uma lista sem
evidente coerência, invejando de um o talento e de outro o esforço; de um o
poema, de outro a sesta, do terceiro o ambiente, do quarto o que não é o
procedimento difundido e mais característico, do último o que não é o tom. Uma
listagem díspar que termina pela utilização banal da palavra que é objeto de
todo o esforço aforismático do texto, reduzida a uma locução corriqueira: “Eu
queria, é simples, mas bem aqui,
longe de Starnbergersee”, vinculada à afirmação do local, por interposição de
outra reminiscência, a confusão de línguas e fronteiras, à margem do lago alemão
da terra devastada. Ou seja, por um gesto de ironia insustentável no calidoscópio
de citações, paródias, paráfrases e referências enviesadas que constituem o
livro.
De
fato, o livro é dominado pelo vulto dos paredros. Além dos que vêm nesse último
texto, há dois nas epígrafes (Rimbaud e Drummond) e na selva selvaggia de reflexos, é fácil perceber a fisionomia
fragmentária de Baudelaire, Mallarmé, Ferreira Gullar e outros que seria ocioso
caçar para nomear aqui. Mas como a identificação dos intertextos é justamente a
isca aliciante do livro, preparada para o leitor dotado de instrumentos para a
decifração, a busca da simplicidade, que aparece como o ingênuo ridículo e é
denunciada como repetição de estratégias, num jogo já jogado – e poderia completar,
mantendo a paráfrase de Eliot: “por gente com quem não podemos pretender
rivalizar” –, se tinge também de certa coloração melancólica – quase como a
saudade de algo que nunca existiu senão como desejo. Não é possível estar bem
aqui, se para definir o aqui se tem necessidade de convocar o Starnebergersee.
Por
outro lado, é certo que nesse quadro o simples não é oposto ao complexo. O objetivo
do texto não é discutir os limites da expressão do ponto de vista do conceito;
pelo contrário, seu foco é a distinção entre simplicidade e espontaneidade, ou
seja, imediatismo de expressão.
Sendo
assim, o sentido que afinal pode ser
paralisado pela simplicidade surge não mais como o significado, mas como aquilo
que foi objeto de um sentir, que foi experimentado. Essa dupla acepção da
palavra “sentido”, o reverter do nível de referência entre o abstrato e o
concreto, entre o geral e o individual se mantém na sequência do texto e dá o
movimento íntimo do livro, animando cada uma das suas cinco partes.
Delas
(“Prefácio sem fim”; “Sentimento da violência”, “Ficção de origem”, “Balões
brancos” e “Cidades sem sol”) é a segunda que interessa a este comentário, porque
dá o tom do livro e apresenta os ritmos e procedimentos que, ao longo das
demais, comporão o retrato do tempo. Nela se encontra sintetizada a novidade
desse volume, em relação à obra pregressa do autor.
A
primeira peça da seção “Sentimento da violência” se intitula “As flores do mal”.
O título instaura um desenho claro, que busca as fronteiras da modernidade, pois
o livro abre com a referência à obra que a crítica vulgarizou como marco de
modernidade e fecha com a excelência modernista do Waste Land. As formas de lidar com a herança, de incorporá-la e
superá-la ou, pelo menos, decepá-la do seu poder de paralisia são um dos
núcleos positivos de tensão do livro.
Desde
o primeiro parágrafo, ocorre a redução bruta da expectativa e da perspectiva
instalada pelo título a um cenário de fundo de quintal. As flores do mal
terminam por ser carrapichos, nomeados cuidadosamente nas suas espécies. No
entanto, o investimento alegórico é grande: o aparecimento das ervas é devido a
uma falha de responsabilidade individual, o silêncio é o gerador de mato, a
erva impetuosa representa uma ameaça para o espaço civilizado do pomar, o
sentido calejado é espicaçado em certos momentos pela intrusão do mato, o arrancador
de flores do mal se declara um misto de filósofo e artesão, um defensor da
ordem no pomar, ou seja, no jardim das musas. Já não é um maldito este que nos
fala. Não cultiva flores do mal, nem nelas se compraz culpadamente, nem
demonstra maior empenho em combatê-las. Pelo menos, não é maldito pelas mesmas
razões que Baudelaire, convocado pelo título. Não há aqui movimento luciferino de superar as limitações
impostas por um deus ciumento às suas criaturas, nem comprazimento pecaminoso
nos sentidos, muito menos revolta por não poder ter, deste lado da vida,
delícias que se prometem para depois dela. Este parece afinal um ser inofensivo:
enquanto as ervas se renovam, ele se deita na grama e no fundo da alegoria,
após uma peleja exaustiva, na qual, de joelhos, arrancou alusões e ervas más
que não param de brotar. A desproporção entre as referências do poeta
contemporâneo e do poeta moderno cria um efeito de comicidade corrosiva, que
mais se acentua pela ausência de epifania. Mas não é o absurdo o resultado. O
absurdo não se instala a não ser por um momento, como decorrência da
desproporção, como efeito da concentração no
pequeno, no irrisório. O procedimento lógico aqui não é a reductio ad absurdum, mas a reductio
ad parvum. Por isso mesmo, a peça seguinte, ao traçar a fenomenologia do
carrapicho enfraquece a primeira, reinstalando um discurso alto, no qual a
ironia fica contida ou se dissolve na evocação final da infância.
Na
sequência, o texto que dá nome ao livro, embora seja aberto por uma volta à redução
ao pequeno e pela corrosão irônica, logo ensaia a mimese do discurso engajado.
Mas a ironia não pode tudo. Aqui, parece francamente impotente para afastar o
namoro real, por baixo do pano, com o Poema
sujo de Gullar, que aflora não na última parte do livro, onde é chamado
pelo nome (uma peça ali é denominada “Outro poema sujo”), mas disseminado intermitentemente
ao longo do volume – respondendo pelos vários momentos de tensão mais baixa e
formulações apaziguadoras da consciência burguesa (para usar a linguagem do engajamento)
como, por exemplo, “Natureza morta”.
Contribui
para essa impressão o fato de que, precisamente onde se poderia esperar a
melhor justificação do título (no texto denominado “O roubo do silêncio”),
depara-se com uma declaração das menos suficientes para explicar o sentido do
livro, seu título e a própria forma assumida pelo seu discurso: “A vida vai bem
em prosa, quando a violência lhe rouba definitivamente a liberdade de corte”. É
uma explicação que, se levada a sério, banalizaria a forma do poema em prosa de tal modo que não haveria gesto irônico posterior
capaz de redimi-la. O melhor é concluir que, embora venha no poema homônimo do
volume, não é uma asserção mais sincera ou confiável do que as demais, embora
seja mais fácil de compreender do que esta outra: “O silêncio é o sofrimento da
palavra, quando a poesia do silêncio lhe é roubada”. O interessante é que o raciocínio
não se segue: o definido entra como definidor. A poesia do silêncio é algo
roubado à palavra; desse roubo resulta que a palavra sofre e a forma do seu
sofrimento é a não-palavra, o silêncio. Se fosse possível, “simplificar” a proposição,
teríamos que quando se rouba a poesia à palavra, obtém-se o silêncio. Nesse
caso, a palavra não existiria plenamente sem a poesia. A poesia responderia
pelo sentido da palavra; sem poesia, a palavra esvaziada equivaleria ao
silêncio. Mas não é isso o que se lê. Há, claramente proposta, a existência de
uma “poesia do silêncio”, que ecoa a “musicista do silêncio” de Mallarmé. Mas a
alusão não salva: a frase seguinte traz para o chão: “A vingança dos
desapropriados é o barulho da prosa do mundo”. Compõe um quadro de família,
essa frase, quando posta lado a lado com esta outra: “a vida vai bem em prosa”.
A
encenação da violência moderna atinge ponto de destaque na peça “A vítima”, na
qual o vocabulário exibe gosto cediço (“palavras peroladas de silêncio”, por
exemplo). Aqui também, a ironia não consegue vir em socorro do sentido: a
cedência à moda do discurso contemporâneo sobre a violência termina por
revelar-se a verdadeira górgona do livro.
O
ressaibo do tributo ao empenho felizmente se dissolve em poemas como “Ötzi”,
que retoma o texto de abertura da seção “Sentimento da violência” e consegue
equacionar as linhas de força do volume, reduzindo o lugar do contemporâneo por
meio da postulação de que as raízes das flores do mal se perdem no tempo. O
homem pré-histórico, autor e vítima da violência, está na base de uma vertigem
que guarda alguma semelhança com a da impotência frente às ervas daninhas:
“Deito-me no tapete para ver melhor”. A frase final, porém, é quase um
arrependimento do que parece um falhado impulso de transcendência: “Talvez
algumas se levantassem, tendo força de presente, e invertessem por curto
instante a direção daquilo que, em nosso olhar, divertido, observa.” Por que “divertido”?
O sentido mais arcaico é “desviado” ou “dissimulado”. Mas o uso contemporâneo produz um ricto de
ironia, de sabor defensivo. Sem a ambiguidade entre o sentido presente e o
arcaico – que de fato é preciosa –, o poema perderia um pouco da sua força, que
é grande, num fecho acomodatício.
Um
exercício final de definições encerra a parte das “flores do mal”, fronteira deste
comentário. Intitula-se, alusivamente a Perec, “Modo de usar”. A bula, não a
arte poética – é o que diz o título irônico sobre esse breve capítulo de
poética assertiva.
O
texto abre com outra frase de feição lapidar: “Sinceridade não vai bem em prosa”. Logo, sendo
em prosa o livro, ou ele destoa do esperado, porque é sincero; ou atende ao
esperado, negaceando ou sendo moeda de troca. Qual o terceiro excluído? Se a
oposição fosse entre a poesia e a prosa, a decisão seria mais difícil. É,
porém, entre duas formas – digamos – de disposição: verso e prosa. Por isso a
poesia pode entrar como o terceiro elemento, a separar ou a unir os
contendores: “o verso se torna a prosa da poesia quando se nutre da fidelidade
à experiência ou da impessoalidade programada”. É um jogo com três elementos,
portanto. E a forma da frase nos permite supor a possibilidade de uma operação
inversa, que teria por expressão a pergunta: de que modo se poderia obter a
poesia da prosa? Ou não existe uma poesia da prosa, mas apenas uma prosa da
poesia? Qual é o tipo e qual é a variação por carência ou acrescentamento: a
prosa ou a poesia? A frase final poderia fazer a aposta pender para a primeira:
“não há verso simples, apenas prosa subvertida”. Mas haveria um verso complexo,
que não guardasse com a prosa nenhuma relação? Ou é apenas o desejo de
simplicidade que torna o verso uma modalidade da prosa?
As
perguntas que esse discurso desperta ou mesmo exige evidenciam outro aspecto,
outra inflexão temporal, senão mesmo formal: ensaia-se aqui o ensaio. O gosto
do paradoxo, porém, e o pendor para o lapidar paralisam o movimento próprio da
forma, que é o desenvolvimento e a clarificação de uma percepção, de uma
intuição.
O que há de ensaio nesse livro, assim, além de
evocar os mitos, as origens e os adversários que busca exorcizar, é uma
reivindicação de genealogia e um conjunto de recusas, que mapeia as atualizações
contemporâneas da forma. Mas o faz não a modo de discurso sobre, mas de
discurso ao lado, que almeja presentificar a questão que examina ou convoca. Ou
seja, como arte. Como se lê em outra parte, “o que pode haver em comum entre um
poema e um ofício [...] é relevante para a poesia? Digamos que só um poema pode
dizê-lo.” Mas, no quadro traçado pelo livro, talvez o leitor devesse completar,
levando ao limite o paradoxo: ...em prosa. Ou em quase-prosa, como mostra
ostensivamente “Poesia a caminho”, único do livro que vem despido dos
apetrechos mais ostensivos da pontuação e das maiúsculas, funcionando o polissindetismo
e a dificuldade da delimitação sintática, paradoxalmente, como o corte recusado
dos versos.
Mais
do que um conjunto de ensaios sobre a poesia, tem-se aqui um conjunto de quase-ensaios
ou para-ensaios variados à volta da e de poesia. Em “Prosa”, as drummondianas
“palavras [que] rolam num rio difícil e se transformam em desprezo” aparecem metamorfoseadas
em “minhas escamas se descolam, rolam num rio difícil e se transformam em história.” Essa
nova procura da poesia não se faz em versos, mas em compensação a metáfora pode
ocupar o lugar na ponta da mesa do banquete. Não se trata agora de palavras
rolando autônomas ou em estado de dicionário, mas de partes que se desprendem de
um corpo metafórico. E como tal esses fragmentos deixam um rastro, que é história. Ou seja, registro, matéria
memorável, narrável. O quase-ensaio dessa prosa que aspira à poesia é, portanto,
num tempo que transborda a modernidade que lhe dá estofo, uma ambição de
registro do “sentido”, do vivido, protegido pelo artifício da górgona que o
paralisaria.
Noutro trecho, que aponta
para o mesmo poeta, lê-se “Vou lhe contar um segredo. Hoje em dia,
é preciso coragem para escrever um verso sincero.” Frase que o livro permite
desdobrar: é preciso coragem para escrever um verso; é preciso coragem para
escrever sinceramente. É a “alegria da negação”, que também se convoca naquele
texto central, chamado “Prosa”, que começa afirmando a indeterminação: “Na
superfície deste pântano, quando uma cabeça assoma fora d’água, não se sabe se
é pato ou serpente”. Em outro nível, se é ensaio ou poesia.
O
que permite ler o seu livro como uma resposta a pragas da literatura brasileira
atual, em domínios que se mantêm à margem do romance estribado na história e na
memória, no relato policial ou no turismo dos lixões e das favelas. De fato, não
há aqui o tatibitate minimalista da poesia de herança concreto-cabralina, nem parentesco
com a prosa sua irmã, prisioneira da paronomásia, nem concessões à gaiolinha pintada
dos novos parnasianos – escravos da medida automática, acadêmicos no sentido curto
–, e muito menos comunga este livro o caldo indigesto de preciosismo tardo-simbolista,
auto-intitulado neo-barroco, amante do bestialógico.
Com
esse gesto, o poeta terá respondido melhor ao desafio do que o crítico. De
fato, Marcos Siscar
crítico talvez não concorde com este panorama da poesia brasileira
contemporânea. Pelo menos, não concordava quando, um ano antes do Roubo, assinou um texto sobre “A cisma
da poesia brasileira”, no qual se revelava otimista, capaz de apostar em que a
profusão de má poesia e os muitos reparos críticos ao que boiava nessa grande
maré de coisas ruins fossem, em si mesmos, um índice da importância da mesma
poesia má ou, quem sabe, um sinal de que a questão da qualidade merecesse ficar
em segundo ou terceiro plano perante a vitalidade que a agitação lhe sugeria.[2] O que é
estranho, pois um homem atento ao quintal não deveria confundir agitação com
vida, desde que tivesse visto como o rabo cortado de uma lagartixa se debate
sozinho, enquanto o corpo a que pertencia passa ao largo, em grande carreira.
O roubo do silêncio é um livro
importante não só pelos seus momentos altos de realização, mas porque não é
solidário ao geral, porque ensaia um produtivo discurso de fronteira e porque o
seu caráter claramente defensivo pode ser lido como uma afirmação arrevezada da
centralidade da poesia no contemporâneo. Pato ou
serpente, está muito acima do nível viscoso da água.
[1] João
Adolfo Hansen, na orelha de O roubo do
silêncio. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006.
[2]
Publicado em Sibila —
Revista de Poesia e Cultura,
ano 5, n. 8-9, 2005 e disponível em http://www.germinaliteratura.com.br/sibila2005_acismadapoesia.htm
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