Álvares de
Azevedo e seus contemporâneos[1]
Entre os poetas românticos brasileiros mais lidos ao longo dos anos,
três fazem parte da chamada 2ª geração : Casimiro de Abreu, Junqueira Freire e
Álvares de Azevedo. Desses, o que exerceu maior influência nas gerações
imediatamente seguintes foi Álvares de Azevedo, embora o mais popular tenha
sido, sem dúvida, Casimiro de Abreu, cujo lirismo intimista e relativamente
simples, em que a sensualidade, embora às vezes perversa, nunca se revelava de
maneira brutal e o tornava o predileto das declamações em saraus e salões.
A influência de Álvares de Azevedo se exerceu sobretudo pela sua faceta
ostensivamente byrônica, de que há marcas nas várias gerações que vieram depois
dele na Academia de Direito de São Paulo. Para que se compreenda o alcance e a
natureza dessa influência, portanto, é necessário entender o que significou o
byronismo no Brasil e no mundo.
A designação deriva do nome do poeta inglês George Gordon Byron
(1788-1824), que se tornou internacionalmente conhecido em 1812, com a
publicação da primeira parte de um longo poema narrativo intitulado Childe Harold's Pilgrimage (
Peregrinação de Childe Harold) e cuja fama só aumentou com seus textos
subsequentes: The Giaour (1813), A noiva de Abydos etc.A característica
principal do estilo de Byron é a apresentação de um herói descrente, corroído
por uma angústia indefinida, sempre pronto a afirmar seu caráter de exceção e a
fazer longas digressões sentimentais, que hoje nos parecem completamente
desinteressantes. Em outros textos, como Don
Juan (1819), temos a outra faceta de Byron: sua ironia e seu tom mordente
que também foram largamente imitados.
O fenômeno internacional do byronismo, no entanto, não derivava apenas
da leitura das obras de Byron: talvez até mais do que as próprias obras, faziam
furor as histórias que circulavam sobre os atos do poeta, sobre seu caráter,
sobre as orgias que promovia em sua residência na Inglaterra e na Itália, sobre
a relação incestuosa que teria mantido com uma sua meio-irmã etc. E assim,
quando dizemos byronismo pensamos em mais do que em um estilo literário:
pensamos em um modo de vida, uma visão de mundo, uma moda. Jovens poetas de
todo o Ocidente imitavam não só os versos e as personagens de Byron, mas a sua
peculiar maneira de se vestir (o colarinho à Byron, p. ex.) e se comportar.
Pode-se dizer que o inglês foi a maior figura literária de sua época, a
encarnação do romantismo, a realização dos seus ideais. E o mínimo que se pode
dizer dele é que foi coerente com esses ideais, tendo inclusive morrido à
frente de uma expedição que financiara para lutar pela libertação da Grécia, ou
seja, morrido num ato de revolta e de afirmação da liberdade.
E é como representante desse amplo movimento da sensibilidade e da
literatura internacional que Álvares de Azevedo é mais conhecido no Brasil:
basta ler os contos que formam seu texto mais vezes editado, Noite na Taverna, para que se possa ter
uma ideia do que foi o byronismo no Brasil. Aqui, como em vários outros
lugares, ele consistiu em um apelo ao cinismo, ao pessimismo e à ironia e em um
especial apego a descrições mórbidas e funerárias, à imagética diabólica e à mistura
de tedium vitae com lubricidade
desenfreada.
No entanto, há uma diferença interessante entre Azevedo e seus modelos
europeus: enquanto Byron tinha uma vida momentosa e cheia de acidentes eróticos
e mundanos, e enquanto o outro modelo, o francês Alfred de Musset, tinha também
as suas glórias românticas, como a viagem que empreendera com George Sand à
mesma Itália do inglês, o nosso poeta vivia na pequena, provinciana e mal
urbanizada São Paulo da primeira metade do século, em uma sociedade acanhada,
de poucas possibilidades intelectuais e de poucos atrativos românticos.
Mesmo
para os estudantes, que formavam uma espécie de grupo social à parte, ao qual
era permitida uma liberdade maior, São Paulo era muito menos do que um bairro
das capitais do romantismo europeu. Como a "autenticidade" e a
"sinceridade" eram conceitos importantes para a estética romântica,
vários críticos lamentaram a pobreza do meio em que viveu e morreu
prematuramente Álvares de Azevedo e que condenava seus textos a serem
considerados meros delírios adolescentes. Outros buscaram criar um substrato
vivencial que pudesse justificar, a seus olhos, a obra do poeta, criando para
Azevedo uma vida nos moldes da dos modelos byronianos.
Há, de fato, relatos de tentativas de imitar aqui as comentadas orgias
empreendidas por Byron e amigos, mas seriam, sem dúvida, uns pobres simulacros
e, a julgar pelas cartas de Álvares de Azevedo e pelo relato de memórias de um
seu contemporâneo, Ferreira de Rezende, são pura invencionice as histórias que
chegaram a passar por documentos, como as de Pires de Almeida, em seu livro A escola byroniana no Brasil. Para ter
uma ideia das fantasias desse autor, veja-se esta descrição do quarto do poeta
em uma de suas "repúblicas" em São Paulo:
Seu aposento era
um completo museu mortuário. Nas paredes e no teto, forrados de preto, viam-se
ornamentos singulares, bem como estrelas e lágrimas prateadas, e diabretes
semelhando fogo.As poucas cadeiras eram decoradas no mesmo gênero; e a um dos
ângulos da peça, notava-se uma espécie de divã em forma de tumba que lhe servia
de cama.A mesa de estudo eram duas lousas, sobre cavaletes encarnados; e a
livraria, que ocupava todo o espaço de uma parede, constituía-se da reunião de
cinco pedras tumulares, intercaladas de crânios (...) Sobre a plancha de
mármore superior, várias corujas e morcegos empalhados; e à cabeceira do
aludido leito, solene urubu-rei, cujas asas abertas abrigavam o poeta. (...)
Sua mesa de estudo era simplicíssima: por tinteiro, uma rótula cavada no
centro, posta sobre duas clavículas em cruz (...) Alguns crânios de feto,
dispersos e sem ordem, (...) serviam-lhe de guarda-penas, lacre, obreias,
selos, etc.
Quando lemos os textos da
época, vemos que essas coisas eram associadas comumente a uma afirmação da
"profundidade" do poeta, dos poemas e das atitutes byrônicas. Hoje
nos é difícil perceber de imediato que profundidade haveria naquele conjunto de
atitudes e objetos mórbidos, e em um gosto duvidoso e tão estilizado pelo lado
"maldito" da vida e da morte. Um paralelo com um fenômeno similar –
pela abrangência e pelo apelo à juventude – e recente pode ser útil aqui: com o
chamado fenômeno hippie. A associação pode parecer extemporânea, mas muitos
aqui presentes certamente se lembram daquelas cenas dos anos 60-70, em que toda
a sabedoria e profundidade de pensamento de uma geração parecia estar em não
cortar o cabelo, usar tal ou qual roupa e ficar sentado com os olhos parados,
falando de modo truncado. Para os participantes, no entanto, as coisas eram
claras, as conversas plenas de sentido. Também havia aí o peso do lado
socialmente maldito: a droga, o sexo livre.
E há uma gravidade insuspeitada, passado algum tempo, no mais simples
ato de afrontamento consciente das normas sociais. Assim, podemos imaginar que,
na época e na sociedade de Álvares de Azevedo, celebrar o vício do fumo e do
álcool em versos equivalia à celebração das drogas em música popular nos anos
60-70; e tematizar o desvario sexual, referir o incesto e o crime passional, talvez
possa ser associado ao escândalo da celebração do amor homossexual há apenas
alguns anos. Vendo por esse ângulo, não é difícil compreender por que, para o
rapazinho de bem, que só frequentava algumas casas escolhidas e só dançava com
algumas famílias, o byronismo, a descrença, a referência a fumo, álcool e
orgias assumiam uma dimensão prometeica, libertária, contestadora. Nas
imaginárias ou reais orgias "regadas a cachaça", Álvares de Azevedo e
seus companheiros se colocavam no mesmo nível de todos os paradigmas fáusticos
que já levantaram a voz contra a sociedade e contra Deus.
Mas, embora tenha sido essa a faceta que mais influência exerceu na
nossa literatura, a obra de Álvares de Azevedo é bem mais do que isso e pode-se
dizer com segurança que a sua contribuição mais original e atual à poesia
brasileira está em poemas como “Ideias íntimas”, “Namoro a cavalo”, “Spleen e
charutos”, em que a linguagem coloquial, o humor e o gosto pelos aspectos mais
prosaicos da existência são de surpreendente modernidade.
E é essa originalidade que é colocada em destaque por Antonio Cândido,
para quem Álvares de Azevedo
foi o primeiro,
quase o único antes do Modernismo, a dar categoria poética ao prosaísmo
quotidiano, à roupa suja, ao cachimbo sarrento; não só por exigência da
personalidade contraditória, mas como execução de um programa conscientemente
traçado.
A referência de A. Cândido a um "programa conscientemente
traçado" nos leva de imediato para o cerne mesmo de sua melhor poesia, que
se articula sobre uma dicotomia fundamental, claramente expressa no prefácio à
segunda parte da Lira dos vinte anos que, apesar de muito conhecido, merece ser
transcrito novamente:
Cuidado, leitor,
ao voltar esta página! Aqui dissipa-se o mundo visionário e platônico. Vamos
entrar num mundo novo, terra fantástica, verdadeira ilha Baratária de D.
Quixote, onde Sancho é rei (...) Quase que depois de Ariel esbarramos com
Caliban. A razão é simples. É que a unidade deste livro funda-se numa binomia.
Duas almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de poeta
escreveram este livro, verdadeira medalha de duas faces.
É a essa binomia que se deve não só o contraste entre textos como o
antológico “Lembrança de morrer” e o debochado “Um cadáver de poeta”, entre o
conhecido “Soneto à virgem do mar” e o destemperado e classista “É ela! É ela! É
ela! É ela!”, mas também as melhores páginas de prosa de Álvares de Azevedo,
que são as de Macário.
E é a esse duplo movimento do espírito que devemos algumas das mais
curiosas páginas da crítica literária de Álvares de Azevedo, como aquela em que
ele censura Mendes Leal pela excessiva idealização da mulher, que justamente
caracteriza tantos de seus próprios poemas; ou aquela em que o autor de Noite na Taverna escreve em defesa do
"fim moralizador" do teatro e contra o gosto contemporâneo, que
abusava dos "quadros de terror e abuso de mortualha".
A crítica de Álvares de Azevedo mereceria um estudo à parte, pela sua
singularidade e por ser a faceta de sua obra a respeito da qual mais divergem
as críticas, já que os mesmos críticos que têm razoável coincidência de
opiniões a respeito de sua lírica ou de sua prosa, consideram-na ou
inteligentíssima e penetrante ou absolutamente sem interesse. Seus textos de
crítica e teoria literária, de fato, são no geral de leitura cansativa, pelo
acúmulo de impressões desordenadas e pela referência entusiástica a obras,
temas e autores que hoje já quase não nos dizem nada. Há, porém, boas surpresas
para o leitor curioso, como, por exemplo, o elogio que faz à peça do português
Antonio Ferreira, a Castro, pela
sobriedade e pelo respeito às regras clássicas – elogio esse que termina por
propor Antonio Ferreira como modelo para os jovens escritores, pois nele haveria
"todo o brilhante fascinador do romantismo e o puro da severidade
arquitetônica do classicismo”.
Mas a questão mais interessante desse belo texto de Azevedo intitulado “Literatura
e cultura em Portugal” é a posição que toma frente à momentosa questão da
existência ou inexistência de uma literatura genuinamente brasileira e da
importância do tema, do assunto e da cor local como critérios de brasilidade.
Se essa, como se sabe, tem sido uma questão delicada e polêmica mesmo em nossos
dias, é fácil imaginar a importância de que se revestia em pleno romantismo,
algumas décadas apenas depois da independência política.
A posição assumida por Álvares de Azevedo é a de que, pelo menos até
Gonzaga, não há porque falar em duas literaturas e acrescenta, irônico:
E demais, ignoro
eu que lucro houvera – se ganha a demanda – em não querermos derramar nossa mão
cheia de joias nesse cofre mais abundante da literatura pátria; por causa de
Durão, não podermos chamar Camões nosso; por causa, por causa de quem?...(de
Alvarenga?) nos resignarmos a dizer estrangeiro o livro de sonetos de Bocage!
Está claro que esse é um discurso destoante do coro dos que se ufanavam
da literatura brasílica a ponto de, como fez Santiago Nunes Ribeiro, em um
famoso ensaio, afirmar e gabar a maior cultura de nossos poetas em relação aos
confrades lusos, e se deliciar com versos de Durão, enquanto indagava:
"Acha-se porventura nos poemas portugueses espalhada com tanta profusão a
poesia religiosa, entusiástica e pitoresca?" Contra esse tipo de atitude
se colocava frontalmente Álvares de Azevedo, para quem a lembrança nacionalista
de Nunes Ribeiro era "senão ridícula, de mesquinha pequenez".
Já em relação ao outro tópico, o da importância da temática nacionalista
– cuja manifestação mais pura, o indianismo, lhe era contemporânea –, escrevia,
como também escreverá Machado de Assis:
Crie o poeta
poemas índicos, como o Thalaba de
Southey, reluza-se o bardo dos perfumes asiáticos como nas Orientais, Victor Hugo, na Noiva
de Abydos, Byron, no Lallah-Rook,
Tomas Moore; devaneie romances à europeia ou à china, que por isso não perderão
sua nacionalidade literária os seus poemas.
Não é de admirar, assim, que um ardoroso historiador da "tradição
afortunada" do nacionalismo literário, Afrânio Coutinho, simplesmente
exclua essas reflexões de Azevedo do panorama que pretendeu dar dessa questão
em um de seus livros, transcrevendo desse estudo apenas a parte em que trata de
Bocage, sem maior interesse, aliás, do ponto de vista da sua contribuição à
polêmica nacionalista.
Voltando agora ao que julgamos a parte mais importante da obra de
Álvares de Azevedo, seus poemas irreverentes, cômicos e os poemas em que o
realismo e o coloquialismo irônico dão o tom mais moderno de nossa poesia
romântica, talvez seja interessante observar que, embora ainda haja poucos
estudos a respeito, parece possível afirmar que Azevedo faz parte de um
movimento mais amplo da poesia e sensibilidade de seu tempo, a que pertenceram,
com maior ou menor importância, pelo menos três de seus contemporâneos e
amigos: José Bonifácio de Andrada e Silva, Bernardo Guimarães e Aureliano
Lessa.
Desses três, o poeta mais importante parece ser Bernardo Guimarães, que,
entre outros, escreveu versos como os seguintes, a que se sucedem mais de cento
e cinquenta no mesmo tom:
Cantem outros os
olhos, os cabelos/ E mil cousas gentis/
Das belas suas: eu de minha amada/
Cantar quero o nariz./ Não sei que fado mísero e mesquinho/ É este do nariz,/ Que poeta nenhum em prosa
ou verso/ Cantá-lo jamais quis(...)
Em outro poema, Bernardo Guimarães satiriza a moda feminina de seu
tempo;; num terceiro celebra o cigarro; em outro, trava uma batalha contra
exércitos de jornais que o assaltam em sonho. E o poeta da deliciosa Orgia dos duendes e do pornográfico O Elixir do Pajé era ainda exímio cultor
do "bestialógico" e do "disparate rimado":
O queijo, –
dizem os sábios, –/ É um grande epifonema,/ Que veio servir de tema/ De famosos
alfarrábios./ Dá três pontos nos teus lábios / Se vires, lá no horizonte ,/
Carrancudo mastodonte,/ Na ponta de uma navalha,/ Vender cigarros de palha,/
Molhados na água da fonte...// Há opiniões diversas/ Sobre dores de barriga:/
Dizem uns que são lombrigas;/ Outros, – que vêm de conversas./ Porém as línguas
perversas/ Nelas veem grande sintoma/ De um bisneto de Mafoma,/ Que, sem meias,
nem chinelas/ Sem saltar pelas janelas,/ Num só dia foi a Roma.
Do outro companheiro de geração, Aureliano Lessa, há referências de
poemas cômicos e fesceninos, enquanto de José Bonifácio temos estes versos:
Adorem outros
palpitantes seios,/ Seios de neve pura,/
De angélico sorrir meiga fragrância/
Ou sobre colo de nevada garça,/ Caindo a medo em ondas alouradas,/ Bastos anéis de tranças perfumadas.(...)//
Não! não quero painéis de tal encanto!/ Tenho gostos humildes:/ Amo espreitar a
negligente perna,/ Que mal se esconde nas rendadas saias,/ Ou ver subindo o
patamar da escada,/ Sem asas, a voar, um pé de fada (...)// Poeta do amor e da saudade,/ Depois de morto, peço,/ Em vez de cruz sobre
a funérea pedra,/ A forma de seu pé: foi o meu culto.../ Quero sonhar o resto, enquanto a lua,/ Chorosa e triste, pelo céu flutua.
Como se vê, Azevedo, quanto ao aspecto do humor e da comicidade, não
está isolado em sua geração. Pelo contrário, aquilo que constitui uma das
partes mais vivas e interessantes de sua obra parece compor, com esses outros
poetas, um instigante contraponto à face mais séria e divulgada da poesia do
que se convencionou chamar de segunda geração romântica.
[1] Este
texto é antigo: foi lido em 1987. Na sequência, desenvolvi algumas dessas
ideias no artigo “O riso romântico – notas sobre o cômico na poesia de Bernardo
Guimarães e seus contemporâneos”, disponível na internet em http://www.germinaliteratura.com.br/enc_pfranchetti_ago5.htm.
Mas como há aqui uma ou outra formulação que não foi lá aproveitada, resolvi
exumá-lo do computador.
Outro texto da mesma época: http://www.germinaliteratura.com.br/enc2_pfranchetti_ago06.htm
Outro texto da mesma época: http://www.germinaliteratura.com.br/enc2_pfranchetti_ago06.htm