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domingo, 9 de junho de 2013

A Gaveta da Memória



A gaveta da memória








Tive a sorte ou o azar de ter um pai fotógrafo. Desde sempre, a caixa de fotografias trazia o rosto de todos os parentes, vivos e mortos, bem como suas casas, cachorros, automóveis, mesas de aniversário, lavouras, máquinas e tratores, formaturas, casamentos, desfiles. Depois de algum tempo, como não havia nomes nas fotos, alguns rostos se confundiram, bem como as histórias de vida dos mais distantes. Minha infância, por conta da caixa, é composta de lembranças excessivas, pormenores que nunca poderia ter guardado, se não fosse a visitação constante das fotografias. Um livro de figuras que lia quando pequeno persistia na memória com nitidez. A página na qual os porquinhos dividiam a comida com outros animais era predominantemente azul, e o sofá no qual eu me debruçava sobre os cotovelos tinha um delicioso tom de rosa. A foto da época era p&b e estava no álbum que o pai me deu quando saí de casa. A cor da cena era a contraprova de que a memória do fato perdurava vívida, mais intensa e completa do que a reproduzida, ao longo dos anos, pela fotografia. Quando, porém, em busca de uma foto da nossa cidade natal, abri a grande gaveta onde agora ficava a maior parte dos negativos e das fotos, deparei com outra cópia, que explicava tudo. Meu pai, em certa época, fizera experiências com pintura. Creio que era uma espécie de aquarela. A foto, que intitulara “Horas de lazer”, estava inacabada. Ele apenas pintara o céu da página do livro e o sofá no qual eu me deitava, apoiando o rosto na mão, na pose correta. Outras cores e fatos fixados como testemunhos da concretude da infância, pensei, tiveram a mesma origem. É provável que, por conta disso, a minha lembrança mais intensa de cor continue a ser um segredo que nunca revelei no interior da família. Certa vez moramos numa casa que tinha um terraço sobre a garagem e a edícula; chegava-se a ele por uma escada que saía da varanda traseira; tanto a escada quanto o terraço tinham, como corrimão e parapeito, armações de cano galvanizado pintadas de verde-escuro; no centro do terraço erguiam-se duas caixas-d’água, conectadas entre si. Durante os anos em que moramos ali, a menor dessas caixas guardou um tesouro, que eu chamava de “os vidros das cores”. Eram muitos pequenos vidros de penicilina, dotados de tampa hermética de borracha marrom, cheios de pó de giz escolar, tingido com as mais variadas substâncias: tintas de todas as canetas-tinteiro, óleo de cozinha (que dava ao pó um tom amarelado e doce), azul de metileno, mercúrio-cromo, iodo, mertiolato, calda de cereja, licor de menta, gema de ovo, groselha e os grafites moídos de uma caixa de vinte e quatro lápis coloridos. Os vidrinhos lotavam o fundo da caixa-d’água. Quando estava só, erguia a tampa de madeira e deixava entrar a luz. Ainda me parece próxima a sensação da água fria, na qual enfiava o braço até mergulhar uma parte da cabeça, para apanhar um punhado de vidros coloridos. E também a do vento na pele molhada, enquanto eu contemplava a cor intensa ou pálida, agradável ou nojenta, mas sempre impressionante, de cada um daqueles objetos gelados e luminosos. Algumas vezes, quando a cor do céu, de uma pintura ou de um automóvel me impressiona muito, de uma forma que não sei definir, eclode em mim a mesma sensação – como se o tempo se dobrasse e os dois momentos acabassem sobrepostos – de maravilhamento frente ao vidro de penicilina girando nos meus dedos, escorrendo água sob a luz do sol. Não sei, porém, em que momento comecei a me desinteressar deles, se é que me desinteressei. Talvez eu os tenha simplesmente deixado lá, no seu esconderijo, quando nos mudamos de casa. Ou a caixa-d’água terá sido esvaziada para limpeza e eu os terei guardado em outro lugar, onde ficaram até perder o encanto, com o avançar dos anos. De fato, não sei. E não consigo estimar a sua quantidade ou rever a disposição exata, no fundo da água, quando eu os ia buscar. Não há deles registro fotográfico, nem, portanto, memória compartilhada na família. Os pequenos vidros coloridos podem mesmo nunca ter existido, embora eu não creia nisso. Para mim, o essencial, de qualquer forma, é outra coisa: que a sua existência não possa reduzir-se um dia apenas à mera construção retrospectiva a partir de uma foto a mais, entre tantas outras que ainda repousam, cheias de potência destrutiva, na grande gaveta de papéis e negativos.




Foto de Archânjelo Franchetti. Ele a intitulou Horas de lazer.


Publicado em

Pro-Posições, v. 19, n. 1(55) jan./abr. 2008
como depoimento num número dedicado a fotografia & memória