Sphera, de Marco Lucchesi
(resenha originalmente publicada no jornal
O Estado de São Paulo, em 2003)
Escrever, para Marco Lucchesi, tem algo de conjura.
Num dos poemas de Sphera (Record, 2003), lê-se: “a cada folha / em
branco a cada / verso / inexistente / a baba do dragão / e o fero basilisco”. O
disforme, o caráter desordenado e monstruoso do mundo sem a escrita é o que
primeiro avulta neste pequeno poema em que se resume um dos principais
movimentos do livro. O mítico basilisco, que envenena os lugares por onde
passa, sendo morte física e emblema do diabo, é também dotado de um poder
supremo: o de matar com o olhar. “Fero basilisco”, por isso, é a expressão com
que é qualificada, no D. Quixote, uma pastora que, pela beleza, leva à
morte um apaixonado não correspondido. O envenenamento pelo disforme e a
sedução insuportável do muito belo são, portanto, os riscos, quando a poesia
não ordena ao menos a superfície do mundo.
Ao longo do livro, esse é o movimento principal:
“invoco / uma palavra / que me salve / dos extremos”. Mas tão eficaz é essa
convocação das palavras (não uma palavra especial, um mantra ou fórmula de
encantamento, mas a palavra em situação de poesia), que é em vão perguntar em
que consistem esses extremos: onde é o céu, onde o inferno desta poesia? Onde o
macho e a fêmea, o sol e a lua, a carne e o espírito, a dormência da morte e a
vontade de viver? Onde o aqui e o além? Em nenhum momento do livro se
apresentam imagens dos pólos em tensão. O transcendente não é um objeto de
desejo. É antes um desejo de transcendência sem objeto. A conjura do verso é,
por isso, desejo de apagamento e constatação de incomunicabilidade: “escrevo
sem / deixar vestígios / enquanto busco teus / sinais / ambíguos”.
Perto do final, retornam o dragão e o basilisco,
vestidos de nome moderno. Entre um evento de dimensões cósmicas e um ato
quotidiano, a desordem é outra vez conjurada pelo rapto da palavra que os
equaciona e, assim, reconhece e ordena por instantes: “a supernova / que brilha
pouco acima // do horizonte e o café / que se resfria sobre / a mesa: assim //
opera em todos / os quadrantes / a lei terrível da entropia”.
Esse equacionamento, essa reordenação se constata na
forma de arranjo das palavras, no corte dos versos e estrofes, nas quais o
vocabulário e as imagens equilibram o coloquial de hoje, o verbo imantado pela
lírica camoniana e os rastros da simbologia alquímica.
Os poemas breves, de aparente ritmo sincopado,
quando lidos em voz alta deixam sentir o alento da versificação tradicional,
firmando a cadência antiga que os organiza. Este, por exemplo: “abeira-se / do
abismo // com seus olhos / líquidos para saber / onde repousa // o nada // e
sempre esse desvão / essa caçada // que o aprisiona em / quedas imortais”.
Graficamente entrecortado, resolve-se em um alexandrino seguido de três
decassílabos: “abeira-se do abismo com seus olhos líquidos, / para saber onde
repousa o nada; / e sempre esse desvão, essa caçada / que o aprisiona em quedas
imortais”.
Lucchesi compõe, assim, com fios minimalistas da
tradição poética do ocidente, uma rede por onde escoa o fugidio, o inconstante,
em busca das constelações possíveis de sentido. Como uma aranha, pronta a
recompor a teia esgarçada, o poeta se apresenta como consciência expectante, no
centro do livro, medindo e ponderando os abalos repetidos do desenho, enquanto
contempla o vazio sobre o qual se sustenta a sua leve geometria.
Da sua maneira, é uma busca pelo Éden. Mas o que
resulta é um “gélido jardim”. A fuga do disforme, do olhar paralisante do
basilisco, dos pequenos poderes torturantes que habitam o presente, será apenas
um entregar-se mais rápido ao deserto iluminado, cheio de olhos e de vozes que
apenas assopram, por pouco tempo, a poeira informe.
A impressão final é a de que se trata de um livro no
qual a totalidade se exibe aos pedaços. Melhor dizendo, é um livro em que o
desejo de totalidade se apresenta como pedaços, como uma série de pequenos
triunfos transitórios, cristalizados nos poemas. O voluntário aspecto de
fragmento é, assim, antes um efeito, um recuo estratégico da voz que,
melancólica, conforma o impossível nos ritmos antigos, do que uma confissão de
incapacidade de apreender uma totalidade percebida como inapreensível.
Nesse sentido, a fisionomia resultante é clássica. O
tom do livro é um estoicismo mitigado. E a erudição que o anima é o conforto
possível: o da conversação inteligente, agradável, à margem do abismo, cuja
presença ao mesmo tempo exige e rarefaz as palavras que são ditas.
A ossatura do livro não é dada tanto pelo arranjo
dos poemas, quanto pela ocorrência, em intervalos bastante regulares, de cinco
sonetos de rigoroso corte clássico que, em média a cada nove poemas, erguem-se,
como colunas de apoio ou suma dos momentos que os precedem. Assinalam, em
registro alto, a coleta das experiências e descrevem a progressão de uma obra
alquímica que, aparentemente, não se realiza. Ou então se cumpre apenas como
intenção e falência, pois, como se lê no último soneto do volume, a “palavra
despojada e cristalina”, resultado da grande obra, se perde na corrente das
águas que se afastam da fonte. Que a sua ausência seja tomada como testemunho
da existência de um deus impossível de ser identificado ou compreendido diz
muito sobre a teologia, ou sobre o anseio por sentido teológico, que anima este
volume.
Lidos isoladamente, os sonetos não responderão
talvez pelo há de melhor no livro. Marcando o ritmo das páginas, rodeados pelos
textos breves, que fluem de uma página para a outra, eles funcionam como
lugares de chegada. E, como pontos de chegada, são mais temáticos do que
formais, menos simbólicos do que rítmicos. Mas com o seu ostensivo andamento
tradicional e com o seu vocabulário em que há algo de cediço, retirando dos
demais poemas a sua própria força, são eles, no final das contas, os pontos
luminosos que definem o contorno possível dessa Sphera. Vista de fora,
ela não espelha a vertigem frente à máquina do mundo, nem o pavor face ao
desmedido das vastas esferas estreladas. Apenas revolve, sem muito alarde,
fugazes constelações, nas quais operam e se refletem o acaso e a nostalgia da
totalidade num mundo desabitado pelos deuses.