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quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Papel social das editoras universitárias

 Editoras universitárias: seu papel social[1]

 

 

                                                                       

Para ir logo ao ponto desta apresentação: eu creio que o papel social de uma editora universitária é em tudo homólogo ao papel social da universidade, de que ela é parte. 

Embora seja possível encontrar semelhanças entre universidades públicas e privadas, no que toca à sua função social, a mim parece evidente que as públicas têm escopo muito diferente aqui no Brasil. De fato, elas oferecem gratuitamente ou quase gratuitamente uma formação que, nas universidades privadas, tem um grande custo. 

As universidades públicas brasileiras, tanto as federais quanto as estaduais, são um investimento governamental, de base amplamente democrática, tendo por finalidade não o lucro, mas a criação de um espaço de pesquisa e ensino, capaz de bem formar pessoas nas várias áreas do conhecimento. 

Já uma universidade privada, mesmo quando não tenha o lucro como principal objetivo, necessita fazer um balanço entre as condições ótimas ou ideais e as condições possíveis, dentro de um orçamento que é determinado, no Brasil, quase exclusivamente pelo pagamento de mensalidades. 

Disso derivam imediatamente algumas diferenças. 

Uma universidade pública normalmente mantém o ideal universitário de contemplar todas as áreas do conhecimento, mesmo as que são menos rentáveis – seja por pouca procura, seja por alto custo operacional, seja por não terem uma terminalidade valorizada pelo mercado. Da mesma forma, uma universidade pública pode investir enormemente nas instalações e equipamentos de ponta, necessários à realização de pesquisas e à formação de pesquisadores, sem precisar fazer as contas do retorno financeiro desse investimento. 

Outra diferença fundamental é que são as universidades públicas que mantêm o mais amplo espectro de cursos de pós-graduação de alto nível, e é nelas que encontramos a maior quantidade de docentes com alta titulação, trabalhando em tempo integral.

Esse breve quadro serve para situar o foco da minha fala, que é a editora da universidade pública no Brasil. Alguns pontos certamente serão comuns entre editoras de universidades públicas e privadas, mas não todos e talvez nem mesmo a maioria.

 

Começo então por uma questão que comparece frequentemente no discurso sobre editoras de universidades. E o ponto é este: recentemente, por conta de uma visão pobremente empresarial, administradores insistem no conceito confuso de “autossustentável”. Uma editora deve ser autossustentável, repetem até à exaustão reitores, pró-reitores, gestores de vário calibre e até – pasmem! – editores universitários.

Como se a universidade pública devesse ser autossustentável, como se os laboratórios devessem ser autossustentáveis, as bibliotecas devessem ser autossustentáveis, as moradias estudantis devessem ser autossustentáveis, os hospitais universitários devessem ser autossustentáveis, as orquestras universitárias e os grupos de teatro universitários devessem ser autossustentáveis, ou, por fim, os cursos de graduação e de pós-graduação devessem ser autossustentáveis.

Repeti a palavra à exaustão para demonstrar o descabido de uma ideia que pode parecer, de tão repetida, razoável. De fato, quando se discute o orçamento, numa universidade pública e gratuita, de que órgão se pede que seja autossustentável? Da editora! E por quê? Talvez porque se suponha, por analogia com as comerciais, que uma editora universitária é uma espécie de empresa incrustada na Universidade, uma produtora de mercadorias destinadas à venda, e não um órgão importante da universidade, com uma função social e cultural da maior relevância. 

Não creio que a vulgar exigência de autossustentabilidade da editora universitária seja um passo para exigir autossustentabilidade de toda a estrutura universitária, a começar pelos hospitais e pelos cursos de pós-graduação. Creio antes que essa cobrança provenha exclusivamente da ignorância de qual seja o papel das editoras universitárias, do desconhecimento das três funções para as quais elas são insubstituíveis. Ao menos no Brasil. Então vejamos quais são.

 

A primeira delas é a publicação de textos que podem não ser rentáveis, mas são essenciais ao desenvolvimento das áreas de atuação da universidade. 

É que a publicação de um livro que se destine a um conjunto restrito de estudantes ou pesquisadores torna inviável um investimento privado. De fato, que editora de mercado se interessaria por publicar, a bom preço, um título cuja venda estimada seja 100 ou 200 exemplares por ano? Ainda mais se for um livro traduzido? Esse cálculo não deve ser determinante, porém, para uma boa editora universitária. Para ela, não é o lucro financeiro que conta, mas a relação entre investimento e retorno intelectual. E ela deve publicar o que for preciso para alavancar a ciência e a cultura nacional. 

Por exemplo, em certo momento os professores de alemão da Unicamp procuraram a sua Editora para que ela traduzisse e publicasse em português um conjunto de livros didáticos que consideravam o melhor.[2] Com base no exposto, a Editora comprou os direitos e publicou. Isso permitiu, de imediato, que o curso dessa língua fosse reduzido em um semestre letivo, graças ao melhor aproveitamento das aulas. E permitiu que outras universidades ou escolas privadas pudessem aproveitar a oferta do material para melhorar a sua prática. O mesmo sucedeu com duas coleções bilíngues de venda para público restrito, mas de enorme repercussão científica: a coleção de textos filosóficos coordenada por Fausto Castilho, e a coleção de textos clássicos, coordenada pelos professores da área de grego e latim da Unicamp.[3]

Em todos esses casos, um empreendimento de pouco retorno direto se tornou exequível por conta do trabalho, sem ônus para a Editora, de membros do corpo docente (na tradução e redação de textos de apoio), já que suas atividades foram enquadradas no cumprimento aos requisitos do tempo integral. O que é outra vantagem de uma editora universitária pública, que não visa lucro e sim atender às demandas da comunidade acadêmica, que se mobiliza, por sua vez, para tornar exequíveis os projetos editoriais que propõe.

E aqui chegamos a uma questão que devo frisar, pois se aplica a toda a produção consequente de uma editora universitária, em graus variáveis: o retorno do investimento não deve ser computado de um ponto de vista estreitamente financeiro. Numa editora verdadeiramente universitária, não é a venda de livros que garante o sucesso e a justeza do investimento dos recursos públicos ou próprios. Os casos citados são exemplares, porque é fácil ver o verdadeiro e diferenciado retorno: o aumento de qualidade dos cursos, apoiados no material didático novo, no caso das obras clássicas e de filosofia, e a economia de horas de trabalho em sala de aula (um semestre!), no caso do curso de alemão. Mas, torno a dizer, esse é o retorno (em medida vária) de todo livro responsavelmente publicado por uma editora universitária.

Nesse contexto, insistir na ideia de autossustentabilidade parece piada sem graça, no que diz respeito aos objetivos e funções da universidade pública.

 

Uma segunda função é a de “filtro”. 

Uma editora acadêmica de valor tem um conselho editorial de peso, com representantes respeitados em todas as áreas. Assim, o que publica vem com uma chancela: a universidade tal, de tal lugar, garante que este livro tem relevância! Por isso mesmo, atribuo a uma visão curta do processo editorial e do papel da editora universitária a decisão de algumas editoras acadêmicas de não publicar teses de doutoramento, usando como argumento que estão todas no banco de dados da CAPES, disponíveis para download. 

Em primeiro lugar, porque a pós-graduação, infelizmente, por conta das exigências de cumprimento de prazos, tem aprovado no Brasil teses em profusão, de qualidade muito díspar. À editora universitária de prestígio (como também a respeitadas editoras de mercado) cabe a tarefa de filtrar esse material e de editá-lo. Quero dizer: fazer com que o autor retire da tese aquelas partes formais, aquele aparato de notas que para um leitor comum o mais das vezes é excessivo, bem como os argumentos defensivos, que tentam antever as objeções da banca; fazer com que ele reforme o conteúdo, adequando-o à forma “livro”. 

Quantos não são, nas Humanidades, os livros fundamentais que foram defendidos como teses? E quantos ainda não serão? Recusar, por comodismo ou renúncia ao trabalho editorial, a publicação de teses, parece-me um erro brutal e uma abdicação de um dos papeis relevantes da editora acadêmica. 

Além do que, uma boa edição produz outro objeto, como se pode ver (um exemplo entre tantos!) nos volumes sobre erótica japonesa, que eram uma tese de livre-docência, quase ilegível no repositório da CAPES, e se transformaram numa obra magnífica, de enorme valor científico e estético, ao serem publicados pela Edusp.[4]

 

Uma terceira função que cabe à editora universitária, do meu ponto de vista, é a disposição e capacidade de abastecer os cursos da sua universidade (e também de outras, claro) com a bibliografia estrangeira necessária, em traduções cuidadas, revistas e garantidas pelo seu controle de qualidade. Principalmente daqueles livros que não serão sucesso garantido de vendas, mas que são importantes para cursos de graduação e de pós-graduação, bem como para a formação da cultura literária ou científica. Esse é um trabalho difícil, demorado, custoso. Mas se não for feito por uma editora universitária, por quem seria feito aqui no Brasil?

Claro que vai sem dizer que uma editora assim constituída deve dar atenção à produção local, dos seus docentes. Mas sempre tendo em mente que a sua função de chancela é a principal, pois ela carrega no nome a marca da universidade. Assim, a seleção rigorosa das produções locais é uma forma de acrescentamento da qualidade do trabalho na instituição, uma forma de estimular a emulação e de orientar, com base nos pareceres ad hoc e nas decisões do conselho, os docentes e pesquisadores no sentido de atingirem patamares elevados de exigência e realização. Na contramão, a publicação de trabalhos locais que não seriam aceitos em outras editoras de primeira linha é o caminho mais rápido para a perda de uma das funções principais da editora universitária, que é aquilo que descrevi como uma espécie de declaração de qualidade com fé pública.

Por fim, há uma outra função social das editoras universitárias, ligada não mais à produção, mas à distribuição do livro acadêmico. 

A questão do mercado e da distribuição dos livros acadêmicos, que é um problema em muitas partes do mundo, se agrava num país como o Brasil. Exemplos: um livro publicado numa universidade de Porto Alegre tem de percorrer cerca de 4000 km para chegar ao campus da Universidade Federal do Pará, 4200 para chegar à Universidade Federal do Ceará e 4400 para atingir o campus da Federal do Amazonas. Como despachar em tão longas distâncias livros que muitas vezes não são objeto de nota fiscal? E quem paga o custo do envio ou do retorno?

Para fazer frente a esse problema, foi criado nos anos de 1980 o Programa Interuniversitário de Distribuição de Livro, da ABEU – pelo qual as editoras participantes tinham, por meio de um acordo com regras claras, a possibilidade de trocarem livros entre si, para venda em suas livrarias.

O que implicava outra questão: para poderem participar do PIDL e para o PIDL ter alguma abrangência, as editoras precisavam ter pontos de venda, livrarias, pelas quais se escoasse a produção.

A dificuldade de criação e manutenção de livrarias é grande: primeiro porque a administração universitária, da mesma forma que cisma com a autossustentabilidade da editora, insiste na da livraria; segundo, por conta da concorrência das livrarias privadas estabelecidas no interior dos campi, que normalmente oferecem à universidade alguma contrapartida imediatista.

O PIDL, mesmo assim, foi, durante muito tempo e creio que ainda é, a tábua de salvação do livro universitário, tanto para as pequenas editoras, que podem sustentar um ponto de venda com os livros das grandes (o desconto é de 50%, igual ao que exigem os distribuidores), e assim expor e vender os seus próprios, quanto para as médias e grandes, que assim podem enviar e expor seus produtos em lugares aos quais eles não chegariam por intermédio dos distribuidores comerciais – ou por essas editoras não terem documento fiscal, ou porque o custo do transporte de um livro de baixa vendagem não torna a operação atrativa para o comerciante.

Da mesma forma, ao longo do tempo as editoras universitárias, a exemplo da Edusp, foram organizando feiras e eventos, nos quais livros de editoras universitárias são vendidos diretamente à comunidade acadêmica, com significativos descontos.

Com isso, sem dúvida, presta-se um serviço à causa do livro universitário. Mas um serviço menor. Os pontos realmente importantes e que justificam a existência de uma editora dentro de uma universidade ou a ela subordinadas são aqueles relacionados no corpo desta comunicação, pois é possível imaginar muitas formas criativas de comercializar e distribuir livros – ainda mais na era do predomínio da cultura digital – mas ainda não é possível imaginar, além das editoras universitárias, outras instâncias ou organismos capazes de responder tão bem e com tanta agilidade (e fora do interesse econômico imediato) às necessidades universitárias no que diz respeito à seleção, produção e difusão de obras relevantes para o avanço do ensino e da pesquisa no Brasil.



[1] Texto lido em mesa-redonda no IV Encontro de Editores da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (ENEDIF), em 29/10/2020.

[2] Blaue Blume - Curso Completo

[3] Coleção Multilíngue de Filosofia Unicamp; Coleção LVMINA.

[4] A Erótica Japonesa na Pintura e na Escritura dos Séculos XVII a XIX, de Madalena Natsuko Hashimoto Cordaro.