TEXTOS DISPONÍVEIS

domingo, 29 de janeiro de 2023

Primeiro capítulo de um livro não escrito


 Matão era uma cidadezinha pacata, integrada ao mundo pela ferrovia Araraquarense. É certo que também passava ao lado a rodovia Washington Luís. Naquele tempo, porém, o trem era mais seguro e na linha férrea não havia desvios, com eventuais atoleiros, nem vacas pastando à margem, perigosamente, naquela boa preguiça mastigante que eu não me cansava de admirar.

Quanto à gente que lá vivia, eu me lembro de uma frase que meu pai dizia rindo: se alguém fosse ao Banco do Brasil e visse as placas com os nomes dos caixas e demais funcionários, ia achar que era a escalação da Azurra. 

De fato, os italianos eram maioria e, dentre eles, os que tinham origem no Vêneto. Os sobrenomes terminados em consoante já indicavam o dialeto aos menos familiarizados. Mas os demais também acusavam a origem.

Pequena e pacata, era entretanto uma cidadezinha progressista, como disse Mário de Andrade quando a visitou. Ao menos no que diz respeito à indústria. Quando a deixei, no começo dos anos de 1970, um grande cartaz na entrada avisava ao visitante que no município havia cerca de trinta e cinco mil habitantes e cento e quarenta e tantas indústrias.

Depois, a essas empresas de origem familiar veio juntar-se uma grande fábrica de suco de laranja, fazendo brotar em volta campos perfumados e fábricas menores no mesmo ramo. 

As multinacionais trouxeram um contingente grande de migrantes, e até o arrabalde final da cidade, que no meu tempo era a Vila Raposa (acho que era esse o apelido), foi englobado na parte mais central. E também o Bairro Alto, que ficava depois da estação ferroviária, esse marco divisório do miolo e das franjas da cidade, passou a pertencer ao núcleo principal.

Confesso que hoje perdi o contato e não sei como aquilo anda. Mas creio que não anda mal.

Uma outra comunidade de habitantes de algum relevo – se pensarmos nas ramificações desde Matão até São José do Rio Preto – era a de origem árabe. E nessa forquilha me encaixo eu: entre o Vêneto e a Síria (ou o Líbano, porque as fronteiras mudavam mais antes do que hoje).

O lado vêneto, porém, não se radicou ali. Na sequência da crise de 1929, a terra conseguida em pagamento de trabalhos não virou indústria, como no caso de outros vizinhos. Virou mais terra, muito mais terra, no norte do Paraná, para onde o avô levou a prole para derrubar a mataria e plantar café.

Tivessem ficado em Matão, em vez de funcionário público eu poderia ser herdeiro de indústria metalúrgica, porque talento na área não faltava ao avô, nem aos tios, nem ao pai. De modo que mesmo faltando a mim a coisa estaria garantida.

Já no Paraná, as geadas trabalharam contra e só o empenho de vários anos permitiu que a tribo se fosse ajeitando na terra e na comunidade, numa vila que hoje tem tantos parentes quanto o meu apartamento tem livros.

O outro braço da forquilha é o árabe. Ou turco, como se dizia. Monteiro Lobato em algum lugar fala da venda do Elias Turco. Pois era também um Elias Turco o rapaz que se estabeleceu na beirada de uma das fazendas dos ingleses, num sítio pequeno, ao lado da Estrada do Rumo, num armazém de duas portas.

Elias veio cedo do Líbano ou da Síria. Provavelmente desta. Primeiro ele mascateou a cavalo, depois, já com algum capital, de caminhonete; por fim, abriu a venda, que denominou Casa Síria, casou-se com uma calabresa brava, que foi o terror dos clientes, dos filhos e dele mesmo. Ainda conseguiu comprar um pequeno sítio e trazer a velha mãe para a nova terra. E ali, arrastando a perna entre o quarto e a salinha atrás do balcão, onde gostava de se sentar para ouvir a conversa do comércio, terminou os seus dias, depois de dois derrames, dois anos mais jovem do que eu neste momento em que escrevo isto.

Meu pai, depois de descobrir que não estava talhado para o sacerdócio, largou o seminário e foi trabalhar de escrevente na fazenda Tamanduá, do conjunto inglês. Num final de tarde, reparou na turquinha, na venda. E muitos anos depois estavam casados: quando ele conseguiu, como parecia ser a praxe do tempo, estabelecer-se num bom emprego.

A casa onde cresci era típica da cidade: tinha duas janelas dando para a rua, de onde minha mãe atendia as vizinhas e clientes dos botões forrados com que ajudava nas despesas. Um portão de ripas dava acesso a um caramanchão, que era uma parreira de uvas que nunca deram fruto e que servia de garagem para o velho Ford 38. Seguindo adiante abria-se um quintal onde reinava uma jabuticabeira e havia um quartinho que mais parecia uma capela. E era, em certo sentido, pois ali o meu pai, como seus irmãos em seus quintais, instalou uma sagrada reprodução, em ponto menor, da oficina ancestral.

A rua era perpendicular ao rio. Da frente da casa via-se perfeitamente a baixada e a encosta da colina, sobre a qual ficava a estação de trem. Do lado oposto, duas casas acima ficava a Padaria Central, que era um dos centros culturais e políticos da cidade. Assim como a farmácia tinha sido em outros tempos.

Matão era conhecida por duas coisas e depois ficou sendo, em certos meios, por três. A primeira delas é uma valsa famosa, intitulada precisamente “Saudades de Matão”. Sempre me perguntei se esse “matão” do título se referia ao, na época, povoado de São Bom Jesus do Matão, ou se era simplesmente uma referência vaga a um mato grande, sinônimo de natureza agreste. A segunda é a tradição de enfeitar as ruas para a passagem do Corpo de Cristo. Parece ter começado com simples flores espalhadas no chão, mas logo evoluiu como a cidade, adquirindo um aspecto de grande artesanato, até chegar a um estágio quase industrial, com moldes metálicos que garantiam a precisão dos padrões. Por fim, a terceira é mais modesta e limitada, mas não menos notável: Matão foi um celeiro tão grande de enxadristas para os Jogos Regionais e Abertos, quanto de laranjas para as fábricas de suco.

E aqui voltamos à rua de casa, porque a porta do celeiro era justamente a Padaria Central, onde o padeiro, vendido o pão do dia, cantava árias de óperas italianas junto ao balcão deserto e acolhia os jovens interessados na arte do xadrez, discutindo com eles partidas e aberturas, sobre um grande tabuleiro de madeira que nunca deixava de estar pronto, mesmo entre uma fornada e a seguinte.

Foi nessa cidadezinha adorável, ensolarada e calorenta, e nessa rua que desde a madrugada era invadida pelo cheio de pão fresco, e também nos arredores rurais, em que os cafezais foram lentamente sendo substituídos por laranjais, pastos e finalmente canaviais, que cresci. Aí vivi, vi, ouvi ou imaginei a partir de indícios, as histórias que agora vou contar.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Poesia e inteligência artificial

 Acho interessantes algumas reações ao chat de Inteligência Artificial. As pessoas dizem: é um programa, não tem sentimentos, não tem emoções, não traduz nenhuma mensagem etc. Sim, é um programa. Sim, não tem emoções, nem sentimentos. Mas não estamos mais falando de programas como a Siri ou a Alexxa. Aqui se trata de  programas que permitem criar algo novo, a partir de parâmetros. Isso é mais ameaçador, mais instigante ou mais animador, conforme o ponto de vista. Porque nós também funcionamos assim. Quero dizer: somos seres de linguagem, temos os protocolos todos. E somos também regidos por eles. Mudar esses protocolos é para nós difícil. Temos apego emocional a eles. E como custaram esforço tendemos a querer mantê-los. Já a IA tem, nesse sentido especial, mais “liberdade”, por assim dizer.  Como provocação, podia referir textos como o Tradição e o talento individual, do Eliot, ou a Conferência sobre lírica e sociedade, do Adorno. Se ao poeta se pede, no lirismo, uma despersonalização ou um mergulho na língua, de modo que ele seja um lugar de atualização da tradição ou uma voz pela qual a linguagem fale, e não ele, então o que poderá acontecer quando programas como o ChatGPT tiverem aprendido o suficiente, tiverem internalizado vários “paideumas” (para usar o termo do Pound), e puderem responder a comandos humanos que lhes peçam um poema? Eu mesmo tive surpresas quando lhe pedi para fazer haikais. Num primeiro momento, veio tudo muito explícito. Então lhe fiz um pedido não muito simples. Que encontrasse uma situação que transmitisse o sentimento ou sensação designada por uma palavra, sem a utilizar. Pedi-lhe que encontrasse, nos termos do Eliot, um “correlato objetivo”. E a máquina fez. Ou seja, os protestos humanistas não atingem o alvo. Também porque quem pode garantir que um poeta, ao fazer um poema, não esteja agindo exatamente como o ChatGPT, ou seja, mobilizando algoritmos e jogos de linguagem e protocolos que definem justeza, expressividade, profundidade etc? Dizer que um poema feito pela IA não vale o mesmo que um feito por um humano é supor que sempre um humano será “autêntico” ou expressará sentimentos reais ou coisa semelhante... Já quanto a produzir conhecimento, veremos. O ChatGPT mal completou 3 meses de vida. E está aprendendo rapidamente. E ainda mais rapidamente ampliando seu repertório.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Machado na hemeroteca

 Não saberia como louvar com palavras justas o trabalho de digitalização dos jornais feito pela Biblioteca Nacional. Neste período difícil, enquanto não me posso permitir trabalhos de maior fôlego, percorro com prazer tanto o passado distante, quanto o passado imediato. Andei, por exemplo, pela revista A Estação, onde Machado publicou, entre outras obras, “O Alienista”. Está certo que aí o interesse foi utilitário: devo escrever algo sobre esse conto e por isso achei interessante ver onde e como foi publicado, onde foram os cortes, se eles coincidiram com as partes lógicas, se nos cortes há “ganchos” etc. Pode parecer uma tarefa sem sentido, mas talvez não seja nesse caso e em alguns outros. 

Antes, porém, de especular sobre isso, devo dizer que me divertiu ver os trechos de Machado entre brocados, espartilhos e todas as  notícias de figurinos franceses. Aquilo era o mundanismo impresso, o sonho de consumo das endinheiradas da época. E mostra que, de fato, o “leitora” com que Machado interpela a pessoa que lê pode ser lido em clave dupla: uma pragmática, pois o lugar de publicação tinha majoritariamente esse sexo como destinatário; outra irônica, no sentido de que a expectativa de leitura do suposto leitor ou do lugar, por um lado, e o objetivo e expectativas do autor, por outro, podiam não coincidir.

Agora voltando ao ponto. Mesmo que não se justificasse no caso de “O Alienista”, não é desprovido de interesse esse tipo de excursão temporal na materialidade das letras, porque devo escrever também, se a tanto me ajudar saúde e arte, algo sobre “Casa Velha”. 

Creio ter lido em Lúcia Miguel Pereira que ela considerava que a composição da “Casa Velha” era bem anterior à data da sua publicação. E mais: ela acreditava que o texto tinha sido desenterrado para cumprir obrigações jornalísticas. Já John Gledson discorda e atribui a esse mesmo conto a responsabilidade de fechar um quadro de análise temporal da sociedade brasileira. Isso quereria dizer que teria lugar de relevo na sua obra. De fato, até certo ponto o machadiano inglês faz dela uma espécie de chave para a compreensão da relação da ficção com a história.

Ora, confesso que desde o princípio concordei com ela e não com ele, porque não vi nunca maior atrativo nesse texto. Nem logo que li, nem mesmo depois de ler o livro do Gledson, nem hoje. Parece-me uma pouco interessante retomada dos romances primeiros de Machado, algo portanto deslocado em relação ao que ele fez depois da “virada” das “Memórias Póstumas”.

Talvez por isso me interessasse ver como se recortou, para publicação em “A Estação”, o texto de “Casa Velha”. E o que vi foi que o corte é, por assim dizer, aleatório. Não se faz de acordo com as partes lógicas do enredo, nem segundo “ganchos” narrativos. Também a extensão das partes é muito variável. Isso poderia simplesmente significar que o texto não foi pensado como folhetim, ou melhor, como publicação seriada. Mas creio que não. Creio que essa constatação só reforça a minha concordância com Lúcia Miguel Pereira: o texto parece mesmo ter sido um tampão, por assim dizer. O que havia à mão para cumprir o compromisso.

Em seguida, abandonando o século XIX, de um salto mergulhei no suplemento literário do Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, onde fiquei zanzando pelos meados da década de 1950, com outras confirmações ou descobertas divertidas. 

Ah, as maravilhas da tecnologia! E pensar que quando fiz a dissertação sobre a poesia concreta tive de ficar quase 15 dias no Rio de Janeiro, porque a BN estava em crise e os andares funcionavam em dias alternados... Era então muito difícil obter microfilmes. E nem se imaginava que um dia houvesse celulares para fotografar o que interessasse! Quando mais que um dia, de um lugar qualquer, com um simples notebook, sem pedidos a bibliotecários bem ou mal humorados, arquivistas lentos ou rápidos, se pudesse ter acesso quase instantâneo à memória dos séculos...

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Perfis 6: Ivan Teixeira

 

Os fundos da sua casa davam para o Horto, mas disse-me a Maria Eugenia que ele nunca foi até lá. Acredito. Era totalmente citadino e cartesiano, de onde lhe vinha o cordial horror ao desalinho e irracionalidade da natura bruta. Entretanto, lembro-me de ele me dizer que apreciava deixar comida aos macaquinhos, do que concluo que, embora não se aventurasse na desordem natural, não se opunha a que ela viesse até ele, enquadrada em horários e locais combinados. Não obstante, mandou construir uma casa em Vinhedo, que visitei, num condomínio em formação, que me parecia mais selvagem do que o domesticado Horto. Talvez por isso tenha lá deixado em exílio alguns livros bons, e voltado para a primeira. Afinal, lá estava acondicionada a mina de ouro – uma vasta biblioteca, onde brilhavam as lombadas de obras raras – e a parte que mais me impressionou: uma edícula que crescia numa espécie de torre ou alpendre fechado, sem mobília alguma. A acústica! – exclamou ele, de dedo erguido, assim que entramos. E calou-se. Depois fez vocalizações, que comprovaram o anúncio. E abriu um sorriso indagador. Ivan tinha um dos olhos levemente mais caído. Nessas horas, ele se fechava um bocado mais do que o outro, o que simulava uma piscadela ansiosa por concordância ou cumplicidade. Junto com o olhar fixo atravessando as lentes, era quase uma intimação. Admirável acústica! – eu repeti baixinho, como que a esquivar-me dela. E creio que era mesmo. Contou-me então Ivan para que a utilizava. Ele não acreditava inteiramente na escrita, ou melhor, na leitura silenciosa que um autor fazia da própria produção. Para ele, um texto só podia ser considerado razoável quando lido em voz alta. Aí, sim, os cacófatos mostravam as fuças, as palavras gêmeas se ferroavam mutuamente, uma frase em forma de centopeia indicava onde devia cair o machado, e a língua bífida, sedutora, das conclusões acomodatícias, era logo desmascarada pela outra língua, a dele, enquanto fazia rolar na boca as frases e parágrafos, em escrutínio. Já se vê que não me disse nada dessa forma. Eu que traduzi assim em homenagem ao Horto ignorado do outro lado do quintal. Talvez porque ali eu visse que ele compusera, fronteiro ao outro, o seu verdadeiro jardim, o seu paraíso terrestre, a sua vinha inesgotável. Nas estantes da ampla sala, altas a perder de vista, e naquela saleta despida, onde executava os textos. Pedi-lhe que me demonstrasse. Foi um pedido que mal teve a chance de afirmar-se nas pernas. Ivan me dispôs num lugar um pouco alijado, junto à porta, apanhou um maço de papéis e começou a rodear, com passos pausados e medidos, o aposento. Era como aquela contagem que as bandas fazem, antes da música. E ela logo veio: a leitura. Quem quer que o tenha visto ler um texto recomporá facilmente a cena: segurava o papel com uma das mãos e com a outra regia o discurso. Nenhuma ideia vinha nua. Cada uma com vestimenta própria: roupa de guerra, traje de baile, mero terno azul e até um jeans bem composto. Mas nunca de pijamas ou de camiseta. Vestia-as a voz, com o tecido da entonação, as botas do volume e o chapéu do timbre. O ensaísta, o buscador de raridades, o pesquisador, toda essa coorte se subordinava ali, na leitura, ao professor – que, no entanto, pela solenidade garbosa, tinha um pouco de padre. Na sala de aula ou num auditório, ao padre se juntava o showman, e muitas vezes o sobrepujava. Da mesma forma como um arqueólogo desenterra um pedaço de osso e dali logo deduz um lagartão inteiro, com barriga, rabo e focinho cheio de dentes, assim eu vi o Ivan deduzir por uma aba anônima do livro o seu autor. Com tal arte perante a classe foi lendo e relendo e deduzindo, como um detetive, mostrando aqui o nariz, ali as bochechas, mais além o lombo, até que o homem – creio que o Rosa – saltasse inteirinho e pronto para fora da orelha, como Minerva das coxas de Júpiter. Era também dublê de editor. Idealizava e levava adiante projetos, tanto na ECA quanto na Ateliê. Aliás, foi por seu intermédio que conheci Plínio Martins. Nos tempos em que eu dirigia a Editora da Unicamp, fizemos muitos projetos e viagens juntos. Na última delas, para a Feira de Guadalajara, Ivan começou a se queixar da comida mexicana. Tudo lhe fazia mal. De volta ao Brasil, foi ao médico. Em poucos meses, a doença o levou. Está fazendo agora, em 2023, dez anos.

 

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

História literária - narratividade e cânone

 Tenho aproveitado estes dias de impedimento de um trabalho mais longo e aturado para pôr em ordem os papéis. Modo de dizer. São arquivos de computador. Por isso mesmo, voláteis, às vezes lacunares, ou longos desenvolvimentos argumentativos no meio de um fichamento, e de vez em quando anotações menos extensas e erráticas, nas quais um pensamento ensaia o voo para logo dar lugar a outro.

Na verdade, a desordem do material me faz ter de recorrer a buscas na internet, quando alguma coisa me parece de interesse: teria publicado isto em algum periódico? Em alguma revista eletrônica? No meu blog? Teria publicado apenas a ideia ou também a forma? Vale a pena um dia retomar e tentar desenvolver?

Todo cuidado é pouco, apesar de eu já estar aposentado: se eu republicasse o já publicado estaria incorrendo no moderno crime acadêmico denominado autoplágio. Crime derivado mais do sistema legal da universidade-empresa, do que dos contratos editoriais, e no qual devo ter incorrido várias vezes. É o que acredito, já que um crime involuntário nem por isso deixa de ser crime, e porque desde a época da faculdade retomo temas, problemas, conceitos. Se os retomo, por que não retomaria as mesmas palavras e frases com que os debati tanto tempo comigo mesmo? 

Pensando bem, estou convicto de que devo ter incorrido inúmeras vezes nesse delito, quem sabe até mesmo dentro de um único volume.

É que na verdade não vejo mal em que retomemos o nosso pensamento, inclusive com as formulações de que gostamos mais e nos esforçamos muito para obter, adequando-os ao novo auditório ou situação. Isso, creio, não deveria ser considerado um delito. Fosse, e no limite quem sabe até as aulas pudessem incorrer na prática condenável da autocópia.

É verdade que há situações e situações. A expressão de nosso pensamento numa dada sequência de palavras pode muitas vezes virar mercadoria. Nesse caso, se o produto é vendido, o vendedor (no caso, o editor) pode entender que foi fraudado, se encontrar o mesmo texto no produto posto na praça por outro fornecedor. E mesmo um comprador pode se sentir lesado, se tiver a infelicidade de comprar dois livros em que um mesmo autor ocupa parte do papel impresso em cada um com a mesma sequência de palavras. Mas para isso há a lei, representada por naquele símbolo do copyright. Mesmo assim, a lei permite exceções, e faz sentido que um autor reúna em livro textos já publicados em revistas, jornais e mesmo coletâneas e outros livros (com autorização do primeiro comprador do seu produto, se for o caso, é claro), porque além da coerência que lhes dá o conjunto, o caráter disperso dos primeiros aumenta o risco da perda da memória do conjunto e da construção do pensamento.

Mas estas divagações já se afastam muito do ponto ou do pretexto.

O ponto é que eu encontrei uns parágrafos datados ainda de 2004, que vinham precedidos da anotação de que eram sequência à crítica da historiografia literária herdada do século XIX, isto é, a história narrativa. E também à ideia, que eu dizia estar em outra anotação, sobre o caráter espectral da mesma historiografia oitocentista que ainda orientava, na surdina, os julgamentos críticos dos objetos do presente.

O trecho era este, e espero que ele não decepcione, pelo seu caráter lacunar, a expectativa criada por tão desarrazoada apresentação.

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Com a historicização do cânone e com a forma diferente de organização do campo intelectual, que privilegia a análise especializada em vez das sínteses grandiosas, diminui muito ou mesmo desaparece a confiança na autoridade do autor único que escreve sobre objetos variados, espalhados ao longo de uma vasta cronologia. Hoje, uma história da literatura nacional escrita por uma só pessoa não apenas nos parece pouco provável, como ainda nos pareceria desde logo suspeita de se tratar, em grande parte, de compilação de leituras de fontes secundárias ou de outras narrativas históricas que a precederam.

A forma privilegiada do conhecimento histórico da literatura já não é a síntese, mas a consideração minuciosa de objetos concretos, situados adequadamente no seu tempo e no seu espaço cultural. Ou seja, a forma mais valorizada hoje não é a história literária (tal como a entenderam o século XIX e a primeira metade do XX), mas o ensaio histórico, que o novo historicismo faz às vezes confinar com a filologia na tentativa de estabelecer o quadro de emergência e atuação de uma obra ou questão, ou ainda com a história quantitativa ou com a sociologia.

Disso, e também da valorização geral dos estudos especializados, decorreram as primeiras soluções de compromisso no gênero história literária, que foram as tentativas de elaborar trabalhos coletivos, em que cada estudioso tratava de apresentar – respeitando a cronologia e uma orientação geral vaga – do tipo contextualista ou formalista, por exemplo – os autores ou períodos ou questões de sua especialidade. Entre nós, o modelo é a série A literatura no Brasil, dirigida por Afrânio Coutinho. E sua consideração, ainda que rápida, permite ver suas vantagens e desvantagens. A vantagem é poder contar com estudos especializados, dispostos em ordem cronológica e pautados por uma visada de apresentação narrativa. A desvantagem é que o conjunto não forma uma história, pois faltam-lhe os mecanismos narrativos e a coerência das causalidades que definem o discurso histórico. Isso porque cada um dos autores aborda o seu objeto a partir de uma perspectiva diferente. Por exemplo, o capítulo sobre o Parnasianismo recebe um enfoque técnico e formal que um capítulo como o do Romantismo não recebe. A personagem coletiva “literatura”, assim, se desdobra em várias e a costura precisa ser feita fora do âmbito dos artigos especializados. Daí o caráter algo esquizofrênico desse livro, que se materializou na publicação separada da Introdução à literatura no Brasil, de cuja leitura emerge um objeto muito diferente daquele resultante da leitura do livro completo. Isso porque a síntese histórica de largo fôlego, empreendida pelo organizador, é contrariada em vária medida, ou simplesmente ignorada, nos capítulos escritos pelos especialistas.

 Seus últimos desenvolvimentos constituem aquilo que David Perkins denominou enciclopédia pós-moderna, na qual as aporias percebidas no livro de Coutinho são levadas ao extremo.

Considere-se, por exemplo, um livro como O Século de Oiro, organizado por Osvaldo Silvestre e Pedro Serra, que se compõe de estudos isolados de poemas, cuja única fronteira temporal é o século XX. A concepção do livro traz para o centro da atenção a crise da história literária como gênero. Não apenas o volume abdica de qualquer texto que dê sentido sequencial ao conjunto de ensaios, mas ainda abdica de qualquer desejo de representatividade, pois os autores não são incluídos pela repercussão que tiveram em seu tempo, nem como representantes de alguma região ou tendência literária, nem mesmo pela importância que adquiriram em algum momento que não o da elaboração do livro. Cada um dos 73 autores indicou 3 poemas de sua preferência, sobre os quais gostaria de falar. Os organizadores selecionaram, dessas três indicações, usando critérios vários e combinados, o autor e o poema que cada autor teria de tratar. A partir daí fez-se o livro, que constitui um exemplo radical de história sincrônica: traz apenas aqueles poetas que 73 críticos e professores de diversos países consideravam interessantes naquele momento de produção do livro.


O caráter lacunar do livro causou escândalo, pois autores canônicos, representados em todas as histórias da literatura ou da poesia portuguesa do século XX, simplesmente desapareceram. Enquanto autores muito contemporâneos, como Daniel Faria, por exemplo, compareciam com destaque. Reside aqui, porém, independente do valor das análises que comporta, o principal interesse do livro, que constitui um exemplo radical do que seria uma história sincrônica, centrada na eleição e na apresentação de um paideuma.

Outro tipo de texto situado na mesma linha é a apresentação remissiva de um período histórico, por meio de verbetes redigidos por especialistas. É o caso, por exemplo, do Dicionário do Romantismo Literário Português, coordenado por Helena Carvalhão Buescu. Neste modelo, a escolha dos verbetes constitui a operação decisiva e é nela que se mantém a base histórica da organização, pois os ensaios monográficos são de caráter muito variado, têm premissas e métodos de reflexão muito distintos e abordam seu objeto segundo modos de compreender sua inserção na história muito diferentes entre si. O que um livro como esse recusa, pela sua própria forma de apresentação, é a distribuição cronológica, a narratividade, bem como o peso e a coerência da explicação causal da mudança histórica, agora múltipla (ou mesmo ausente), segundo o perfil dos autores dos verbetes.

Um modo de manter o recorte histórico é o que encontramos na História crítica da literatura portuguesa, dirigida por Carlos Reis, na qual a matéria histórica se organiza cronologicamente, de acordo com as grandes divisões tradicionais, mas se apresenta por meio da seleção de textos críticos e históricos que o organizador de cada volume considera relevantes para a abordagem do problema em questão. O interessante desse projeto é que os excertos de estudos que compõem o livro não estão delimitados pelo presente do organizador. Pelo contrário, o que ali encontramos são cortes verticais apresentando a história da recepção dos textos e temas, embora esse escopo (de apresentar a recepção dos textos ao longo do tempo) não seja sistemático e a escolha dos textos penda decididamente para a fortuna crítica da modernidade. A história crítica é, na verdade, uma antologia de textos organizados segundo linhas cronológicas, mas desprovidos de nexo narrativo. Um leitor que dela se aproximasse em busca de uma narrativa típica da história literária sairia certamente decepcionado.

O que me parece digno de nota, nestes três modelos, e especialmente nos dois primeiros, não é a reação à forma narrativa e causal da história literária, à síntese histórica. O que me chama a atenção é que o abandono da forma narrativa como organização do livro não consegue (e talvez nem tente) abolir a permanência subjacente dos grandes discursos narrativos ordenadores, produzidos ao longo dos séculos XIX e XX. Pelo contrário, eles estão todo o tempo presentes, seja na constituição do exemplário inicial, seja na articulação interna dos textos – ou ainda na forma de atribuição de valor literário ou representativo, bem como na distribuição hierárquica das obras dentro de cada texto ou verbete. 

Na contramão da dissolução das formas narrativas nas obras dedicadas ao âmago do cânone, as tentativas de afirmação paracanônicas ou de construção de outros cânones investem na apresentação narrativa, retomando o velho modelo do romance de formação em que um personagem suprapessoal se vai desenvolvendo e amadurecendo ao longo de um eixo temporal. É o que sucede no domínio do estudo de minorias. De modo que, enquanto a história dos campos canônicos tenta fugir à narratividade, tenta escapar à condenação teórica e crítica da história literária como gênero, à contestação de parcialidade das construções históricas, bem como de reais ou supostos pressupostos classistas, falocêntricos, eurocêntricos ou esteticistas embutidos nas avaliações, os campos para- ou não-canônicos se empenham na direção contrária, em construir genealogias. 

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Referência bibliográfica:

As demais obras mencionadas são bem conhecidas no Brasil. Indico apenas as duas que talvez ainda não sejam:

Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra (coord.). Século de ouro – antologia crítica da poesia portuguesa do século XX. Coimbra; Lisboa: Angelus Novus & Cotovia, 2002.

Helena Carvalhão Buescu (coord.). Dicionário do Romantismo Literário Português. Lisboa: Caminho, 1997.

O Convite à Viagem - Notas sobre o exótico nas Flores do Mal




[Breve especulação sobre a estrutura 
da primeira edição das Flores do Mal
julho de 2012 - publicado na revista Texto Poético, 13]


I

            A primeira edição das Flores do Mal, de Baudelaire, datada de 1857, era composta por 101 poemas. 
            100 deles eram numerados. O primeiro vinha separado do conjunto principal, sem número, e era denominado “Ao leitor”[1]. Já os 100 poemas numerados distribuíam-se por 5 partes. 
            A primeira, denominada “Spleen e ideal”[2] continha 77; a segunda, que levava o mesmo título do livro, 12[3]; a terceira seção, “Revolta”[4], trazia 3 poemas; a quarta, intitulada “O vinho”[5], continha 5; e a última, denominada “A morte”[6], era composta por 3 peças.
            O número redondo dos poemas numerados, a presença de um prólogo em versos, bem como a divisão clara das partes sob nomes fortes, terminando pela morte, demandam um percurso de leitura, estimulam o leitor a perseguir o que, segundo Barbey d’Aurevilly seria a “arquitetura secreta”, o “plano calculado pelo poeta, meditativo e voluntário” de um livro que seria menos uma coletânea de “poesias do que uma obra poética da mais forte unidade”, que demandava leitura na ordem em que os poemas aparecem no seu interior, sem o que muito perderia o livro, inclusive “do ponto de vista do efeito moral”.[7]
            Quando a obra é condenada pela censura, que exige a retirada de 6 poemas, Baudelaire recorre afirmando o “perfeito conjunto”, que desde logo ficaria comprometido pela supressão dos poemas censurados. Assim também na carta à imperatriz, de 6 de novembro de 1857, afirma que tinha sido condenado a “refazer o livro” – ou seja, a retirada dos 6 poemas não lhe parecia possível sem que o desenho todo do volume fosse refeito, alterado.[8]
            E de fato é o que faz, na segunda edição, de 1861: retira os poemas condenados e acrescenta 35 outros. Tal inclusão (o acrescentamento foi da ordem de 1/3 do número anterior) se acompanha não apenas da criação de uma nova seção (“Quadros parisienses”[9]), mas ainda da alteração na ordem das que existiam em 57 – agora, “O vinho” – que antes estava entre “Revolta” e “A morte” – recua para antes de “Flores do Mal”, vindo logo após os “Quadros parisienses”.
            A nova seção – que, a partir de Benjamin, concentraria boa parte da atenção crítica, como se fosse a epítome do livro – se organiza, por sua vez, por meio do remanejamento de 8 poemas anteriormente integrados a “Spleen e ideal” e do acréscimo de 10 outros, que estavam ausentes da edição de 1857.
             Muito haveria que comentar sobre as diferenças entre ambas as edições, se este fosse o objetivo desta comunicação. Não sendo, queria apenas registrar uma das principais intervenções na seção “Spleen e ideal”: a substituição do poema “O sol”[10]  – deslocado para os “Quadros Parisienses”  – pelo soneto “O Albatroz”[11]. Aqui está um dos sentidos da reformulação do livro: após a intervenção da censura, o lugar anunciado para o poeta deixa de ser o do sol, que ilumina igualmente as coisas belas e as imundas, e passa a ser o da ave hostilizada e metida em ridículo, quando em terra. Em ambos, o símile mostra que o lugar do poeta são as alturas. Mas enquanto na primeira edição a ênfase estava no brilho e na altaneria, na segunda o que vem para primeiro plano é a humilhação e a vingança do inferior.
            Por fim, queria observar que, até 1966, todas as edições disponíveis parecem ter se originado da edição de 1861. Algumas tentando reintroduzir nela os seis poemas condenados, outras deixando-os fora do corpo do livro.
            Pessoalmente, prefiro ler as Flores do Mal na ordem da edição – muito criticada, do ponto de vista filológico, mas inovadora – que Yves Florenne publicou em 1966: primeiro As Flores do Mal, tal como publicadas antes da censura; e, em seguida, os conjuntos acrescentados nas edições posteriores.
            Nesta comunicação, por meio da leitura do motivo exótico nas Flores do Mal, o que vou tentar fazer é uma demonstração, no que diz respeito aos poemas em que esse tema tem lugar central, da cerrada estrutura do livro de 1857. 
II


            Do ponto de vista da cronologia, a evolução do tema do lugar exótico se desdobra entre 1841 e 1855: o primeiro momento está representado por “A uma dama creoula”,[12] e o segundo pelo núcleo de poemas compostos em 1855, entre os quais se inclui “Moesta et errabunda” e “O convite à viagem”[13]
            Em ambas as edições de As flores do Mal, “A uma dama creoula” vem imediatamente antes de “Moesta et errabunda”. Mas apenas na de 1857 estão esses dois poemas colocados imediatamente antes de "Os gatos"[14] e "Os mochos”[15], compondo com eles um conjunto que dá conta não apenas da evolução e resolução da temática exotista nas Flores do Mal, mas ainda do fracasso da evasão exótica, com a confissão da impotência do apelo à viagem para combater o spleen vitorioso. 
            De fato, "Os gatos" e "Os mochos" são elogios à vida sedentária, impassível. Este último termina, inclusive, por um terceto irônico: "o homem ... carrega sempre o castigo de ter pretendido mudar de lugar" – no qual ecoam lugubremente os versos de “Moesta et errabunda”.  E, no fecho desse desenvolvimento, a “Os mochos” se segue "O sino rachado"[16], no qual a imobilidade fornece um dos símiles mais fortes da angústia, quando a alma do poeta é comparada a um soldado ferido que agoniza, sem poder fazer qualquer movimento, sob um grande monte de companheiros mortos.
            Vejamos agora a estrutura do livro [de 1857], no que diz respeito ao tratamento do exótico. A primeira constatação da leitura sequencial é que o espaço exótico, isto é, o espaço do outro, o espaço-outro, aparece nas Flores do mal sob duas rubricas: o jadis e o là-bas. Num, temos o sonho exotista que se faz por meio do deslocamento no tempo; noutro, por meio do deslocamento no espaço. Um é o domínio da reminiscência ou da reconstrução "arqueológica". Outro, o da viagem. Em ambos os casos, temos mundos que se contrapõem com vantagem àquele a que o poeta está confinado.
            Na sequência das Flores do Mal (1857), a primeira aparição do exótico se dá em estreita associação com o tema platônico do mundo superior, tal como descrito no Fédon. De fato, logo depois da apresentação do poeta e de uma alegoria sobre a sua missão no mundo (“O sol”[17]), o terceiro poema do livro, “Elevação”[18], põe subitamente em cena o tema da terra degradada em que habitamos, a que se opõem as regiões puras a que o espírito se pode elevar. A forma de aceder a esse lugar de unidade é o exercício das “Correspondências”[19] (poema IV), que, na sequência do livro, surge como a forma de recuperar a "obscura e profunda unidade" do mundo a partir da "analogia recíproca" entre os dados dos sentidos.[20]
            É nesse momento, anunciado o propósito de recuperar a unidade, que surge o primeiro poema exotista das Flores do Mal, o que começa "Amo a recordação..."(V)[21], em que se evoca um mundo paradisíaco explicitamente contraposto aos horrores do mundo moderno, concretizados na deformidade dos corpos contemporâneos moldados pela imbecilidade, pelo erro, pelo pecado e pela mesquinhez. 
            O mundo anterior ao pecado, idealizado nessas épocas nuas, é o mundo em que a carne é magnífica e o homem reina pela beleza física – o mundo pagão, a que o espírito, transcendendo os limites do presente, consegue erguer-se em contemplação. 
            Logo no início do livro, o exótico comparece, então, sob a forma do deslocamento temporal, como tentativa de remontar, pela evocação e pelo exercício das correspondências, à Idade de Ouro, na qual o homem teria conhecido a plenitude física e sensória – agora perdida. 
            Não temos, porém, aqui, uma solução pacífica, mas sim uma tensão ambígua. Por um lado, trata-se de um desejo e uma proposta de elevação espiritual: na medida em que o poeta se valeria dos sentidos para recompor a unidade básica do mundo, os dados sensuais deixariam de importar em si mesmos, passariam a valer como índices de algo que os transcende e que lhes dá significado. Por outro lado, fica patente já neste quinto poema do livro que o ideal é a fruição da sensualidade em um espaço outro, que permita a suspensão da culpa e do remorso – ou seja, que o sensual é objetivo em si, pois, como os frutos, a carne do homem da idade de ouro não só é saudável e elástica, mas também convida à mordida erótica.
            Veem-se bem, portanto, os suportes desse exotismo: o horror ao ambiente mesquinho que cerceia o poeta e o desejo de livre exercício dos sentidos e dos instintos. 
             
            Essa tensão entre o que o poeta denominou em outro texto o esforço de subir e a alegria de descer se cristaliza nos seis poemas seguintes, que têm marcada unidade temática, e tratam das artes (do ideal artístico e luciferino em seu desejo de totalidade [“Os faróis”[22]]), e dos obstáculos à concretização desse ideal.[23] Em outras palavras, nos termos baudelairianos, tratam da busca da unidade básica do mundo por meio da análise das correspondências e dos obstáculos que se apresentam ao indivíduo concreto que se dedica a esse objetivo: a doença, a venalidade, a preguiça, a velhice e o acaso [“A musa doente”, “A musa venal”, “O mau monge”, “O inimigo” e “O azar”[24]].
            E então, como que emoldurando esse núcleo coeso, eis que vem o poema “A vida anterior” [XII],[25] assinalando os limites do exotismo do jadis, pois aí o passado reconstruído pela imaginação ou pela reminiscência não é a plenitude da aurea aetas, mas um tempo espelho do presente, em que se equilibram a volúpia e a melancolia, sob a qual perpassa, numa mise-en-abîme, outra e saudosa lembrança de um tempo ainda anterior.
            Na sequência dessa espécie de confissão do malogro do exotismo temporal, surge o tema da viagem, do deslocamento espacial, com os poemas "Ciganos em viagem" [XIII][26] e "O homem e o mar" [XIV][27]. Em ambos, não são os limites temporais, mas os físicos, que aparecem como obstáculos a vencer para a conquista da liberdade e do futuro. Ambos referem a ação de forçar os limites espaciais como uma ação repetida desde o começo dos tempos. Em "O homem e o mar", explicitamente. Em "Ciganos em viagem”, de modo implícito, porque só percebemos que sob a roupagem antiga dos comediantes se figura o homem da idade de ouro quando novamente comparece Cibele, cuidando maternalmente deles com a mesma solicitude com que alimentara o homem e a mulher perfeitos do poema número V.
            No entanto, há poucos poemas em que a viagem, o deslocamento espacial surge como realidade. Nos mais importantes, trata-se de uma viagem mental, de transporte imaginário ou de vaga possibilidade de deslocamento. Em "Perfume exótico" [XXI][28], o primeiro a nomear a natureza exótica, o que temos é a construção de uma paisagem a partir de um dado sensual concreto: o odor do corpo da mulher amada. Trata-se, ainda, portanto, de exercício de descoberta da analogia entre os dados dos sentidos. Mas aqui não mais dirigido para a elevação do espírito à contemplação das regiões serenas acima das estrelas. Seduzido pelo prazer sensual, o poeta constrói outro lugar, acolhedor, tropical e paradisíaco, em que a promessa do prazer se realizaria sem o costumeiro séquito de culpa e de remorso. 
            De um ponto de vista religioso, o procedimento é condenável, pois o que se tenta é a recuperação do estado de inocência, a eliminação do pecado original, a recuperação do paraíso terrestre (“o verde paraíso dos amores infantis”, “o inocente paraíso, cheio de prazeres furtivos”[29] – dirá o poeta em “Moesta et errabunda”) pela via do comprazimento na carne. 
            Uma vez mais o movimento é, em si mesmo, ambíguo. Se, por um lado, é de fato comprazimento nos sentidos e, por isso, pecaminoso, por outro é uma forma de revestir o impulso sexual de uma abrangência sensual que o transcende e quase neutraliza. A ambiguidade do movimento de “Perfume exótico” se torna mais clara quando o lemos na ordem do livro de 57, pois ali ele sucede imediatamente "As joias"[30], este sim expressão direta e erótica do desejo sexual – e, por isso, um dos poemas censurados. 
            O que parece bastante fortalecido pela ordenação dos textos nas Flores do mal  é esse duplo movimento que podemos perceber na utilização do motivo do deslocamento (temporal ou espacial), em que a construção imaginária de um mundo favorável ao desfrute do sensual, do erótico, corresponde a um movimento de recusa momentânea, ou afetação de recusa, da pura sexualidade.
            Esse movimento duplo é perceptível também no poema mais famoso dedicado ao tema do deslocamento, "O convite à viagem", que ganha quando lido em relação com o que o precede e o que o segue imediatamente. O que o precede é "A bela nau"[31]. O que vem após ele é "O irreparável”. Em "A bela nau" temos uma mulher sedutora, comparada a um navio que deixa o porto "seguindo um ritmo doce, e preguiçoso, e lento". Toda ela é um símile da viagem e em partes de seu corpo se representam, inclusive, alguns dos perigos míticos da navegação –as pernas são feiticeiras que preparam negro filtro em um vaso profundo; os braços, grandes cobras das regiões tropicais. "O convite à viagem" é, assim, simultaneamente o convite ao embarque na "bela nau" e uma reação à carnalidade chocante daquele poema. 
            A construção mental e o convite à conquista do espaço adequado à vivência da plenitude sensual têm aqui também dupla função: por um lado, é um discurso sedutor dirigido a uma mulher; por outro lado, é um efetivo adiamento da vivência concreta da sexualidade. 
            Là-bas é, assim, também e sempre outro momento, e não só porque seria preciso ir até lá para que se pudesse viver plenamente a sexualidade, mas porque esse là-bas não é lugar algum, é mera intenção de não ser aqui, vaga possibilidade e sonho.
            Da mesma forma, o jadis das Flores não tem realidade histórica. Esfinges, tigres, montanhas de cristal, suas caravanas, oásis e tamarineiros são basicamente índices de outro lugar e de outro tempo e valem sempre como oposições ao presente parisiense, que é a única e determinante realidade dos poemas.
            É isso que mostra "O irreparável"[32], poema que se segue a "O convite à viagem", e localizado exatamente no meio das Flores do Mal (poema L): que é impossível transcender espacial ou temporalmente os limites do universo dos valores cristãos, em que o gozo dos sentidos acarreta culpa e perdição. Não é possível iludir o "velho Remorso". Contra ele não há filtros elaborados por feiticeiras, nem possibilidade de transpor os limites físicos da nossa própria situação histórica. Por isso, a estrofe mais dolorosa do poema é a que nega a transformação, pelo desejo e pela interpretação das correspondências, da paisagem hibernal européia em clara cena tropical.
            Temos aí um amargo contraponto ao gracioso quadro dos "Ciganos em viagem". Se lá uma divindade pagã se encarregava de proteger e alimentar os viajantes, aqui é o Diabo que preside à lúgubre cena noturna.
            Depois de "O irreparável” [L], o sonho exotista das Flores do Mal praticamente termina enquanto possibilidade ou esperança de transcendência. As paisagens idealizadas que se associavam à sublimação e ao encanto amoroso reduzem-se agora a uma simples "Conversa"[33] [LI]. Ou se transfiguram no horror de “Uma viagem a Citera”[34].

III

            Retornemos agora a "Moesta et errabunda" [LXII] e sua posição no livro. Neste último poema de tema exotista, estrategicamente colocado – como vimos – antes da série dos spleens, se dá a recolha da temática. Fica aí patente que o desejado movimento no espaço é apenas sucedâneo do único movimento desejado, mas impossível, o movimento no tempo, em direção a um passado em que não existia nem o crime, nem a dor; conseqüentemente, um passado sem culpa e sem remorso. 
            Esse tempo anterior, como vimos, comparece aqui com o seu próprio nome: "o verde paraíso dos amores infantis". 
            Mas não há caminho de volta, no tempo como na consciência, e a distância espacial é a mesma distância temporal, pois o almejado paraíso está "mais longe do que a Índia e que a China”. E, já agora, anunciando o spleen e a revolta, fica claro que, se por meio da decifração das correspondências, parecia possível recompor a unidade perdida do mundo, esse tempo quase isento de culpa é irrecuperável. A busca das correspondências – a desesperada tentativa de atribuir dignidade à fruição e livre exercício dos sentidos – fracassa como projeto de abolição da culpa e do remorso. Os poemas de número LVIII a LXIII[35] tratam do spleen, o estado de desagregação moral que decorre desse fracasso.
            E aqui deparamos o último desenvolvimento da temática exotista, já não como possibilidade de fuga e transcendência, mas, por assim dizer, em negativo, como fixidez e morte. O poema LX, que começa “Eu tenho mais recordações do que há em mil anos”, com a sua esfinge fixada no fundo do deserto, ecoa o que começa “Amo a recordação daqueles tempos nus”, assim como o LXI, “Spleen”, ecoa “A vida anterior”, e as “Brumas e chuvas” [LXIII] (título do soneto depois deslocado para os “Quadros parisienses”) se contrapõem aos céus amplos e abertos dos convites à viagem.
            Com o triunfo do spleen, afirma-se a situação irremediável: o confinamento ao presente e ao ambiente da cidade, isto é, à decadência. Por isso, encerrando a glosa do exotismo, o poema LXIV, "O irremediável"[36], põe em cena sucessivos símbolos do fracasso da viagem exploratória impossível e interrompida – a confirmação da queda, enfim: e eis o poeta refletido nesse "anjo, imprudente viajante" que se debate no fundo de um pesadelo, nesse condenado descendo às escuras um abismo cheio de répteis, e, por fim, na bela nau, agora aprisionada no gelo polar. 


[1] Para maior comodidade e fluidez da leitura, refiro os poemas pelos títulos traduzidos, conforme Charles Baudelaire. Poesia e prosa. Edição organizada por Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995, dispondo em nota de rodapé o título original. Neste caso: Au lecteur
[2] Spleen et idéal
[3] Fleurs du Mal
[4] Révolte
[5] Le vin
[6] La mort
[7] Cf. “Les fleurs du mal par M. Charles Baudelaire”. Repr. em Baudelaire, Charles. Oeuvres complètes.Texte établi, presente et annoté par Claude Pichois. Paris, Gallimar, 1975. As notas e variantes das Flores do Mal, nesse volume são de autoria de Jean Ziegler. É certo que sempre se pode argumentar, como Ziegler, que o artigo de Aurevilly não era inocente, no sentido que teria sido escrito para facilitar a defesa de Baudelaire perante a censura, conforme a carta que o acompanha: “l’article que vous m’avez demandé”.  
[8] Reproduzida em Baudelaire, Charles. Les fleurs du mal. Édition établie selon un ordre nouveau, présentée et annotée para Yves Florenne. Paris : Le Livre de Poche, 1972, p. 324.
[9] Tableaux parisiens
[10] Le soleil
[11] L’albatros
[12] À une dame créole
[13] L’invitation au voyage
[14] Les chats
[15] Les Hiboux
[16] La cloche fêlée
[17] Le soleil
[18] Élévation
[19] Correspondances
[20] « Richard Wagner e Tannhäuser em Paris ». Baudelaire. Poesia e Prosa, cit., p. 917.
[21] J’aime le souvenir de ces époques nues
[22] Les phares
[23] Na edição da Aguilar, há uma inversão na ordem, vindo “Os faróis” antes de “Amo a recordação...”.
[24] La muse malade; La muse vénale; Le mauvais moine; L’ennemi
[25] La vie antérieure
[26] Bohémiens en voyage
[27] L’homme et la mer
[28] Parfum éxotique
[29] V. 25 : “mais le vert paradis des amours enfantines”; v. 30 : “l’innocent paradis plein de plaisirs furtifs”
[30] Les bijoux
[31] Le beau navire
[32] L’irréparable
[33] Causerie
[34] Un voyage à Cythère
[35] La cloche fêlée, Spleen (Pluviose irrité), Spleen (J’ai plus de souvenirs), Spleen (Je suis como le roi), Spleen (Quand le ciel bas et lourd), Brumes et pluies.
[36] L’irremédiable

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Oriente, de Thomaz Albornoz Neves

 Passei os últimos dias navegando erraticamente pelo volume "Oriente", de Thomaz Albornoz Neves. São 771 páginas, encadernadas em capa dura, em edição rigorosamente do autor. Quero dizer: o trabalho de seleção dos textos, a tradução, as anotações, a chancela editorial, o projeto gráfico e a diagramação, tudo.

Não vou longe nestes comentários. Esse mar de poesia é amplo, a gente tem de passar entre Cila e Caríbdis várias vezes, tem de interpretar, sem ouvir, as reações desse Ulisses ao contínuo canto das sereias orientais e, por fim, não poucas vezes, na companhia imaginária dos leitores presentes e futuros, regalar-se no banquete, nos termos em que Carlos Alberto Nunes traduziu o momento da confraternização sagrada: “todos as mãos estendiam tentando alcançar as viandas”.
Não li de enfiada, confesso. Um livro como esse é um companheiro de muitos anos. A gente mergulha, sai, respira, sente saudade e volta para nova imersão, exercício ou banho rápido. Outras vezes apenas para buscar frescor de alívio. Ou ainda sal que conserve, pela revisita, a divagação, e que tempere, tornando menos angustiante o engolir diário de palavras toscas.
Li um pedaço aqui, outro ali, conhecendo o que ignorava e reconhecendo o já visto. Às vezes, ainda, não reconhecendo ou mesmo desconhecendo o que já conhecia.
São muitos os efeitos especulares nesse caso, as miragens, as refrações.
A gente se afeiçoa a uma versão e depois, mesmo que se depare com outra, que pode até ser melhor, a primeira não se apaga. Foi assim com o Tao Te King. Li pela primeira vez esse texto ainda na primeira juventude, num dos dois volumes de “A sabedoria da China e da Índia”, de Lin Yu Tang. Ele o traduziu do chinês para o inglês. E dessa língua foi traduzido para o português. Mas não foi essa a versão que se imprimiu no meu espírito, mas uma que li num período em que visava não diretamente a poesia, mas buscava um caminho correto, ou um caminho de libertação. A versão do Thomaz é mais fluida, mais bonita. Mas a cada passo, como um véu que distorce, o que eu tinha fixado na memória impedia a completa fruição do novo.
Outra coisa sucedeu com os haikais. Conheço vários que estão reunidos no volume. Thomaz não os recolheu da fonte mais generosa, que são os livros do Blyth. Como confessa, propositalmente manteve-se fora do alcance desse autor, cujas traduções e interpretações moldaram em grande parte o que foi o haikai no mundo de língua inglesa. Recorreu a outras fontes.
Confesso que em vários momentos suspeitei de que um dado haikai era outro, digamos assim. Por exemplo: um haikai que eu mesmo traduzi me aparecia sob uma vestimenta que exigia que o despisse para ver-lhe a matéria íntima e o reconhecesse. Noutros casos, devo ter passado rente a algum velho conhecido sem sequer o cumprimentar. Por outro lado, havia vários convivas nessa festa que eu nunca tinha encontrado (eu creio) e me foram ali apresentados.
Esse efeito deriva do princípio esposado pelo tradutor. E de alguma coisa mais, que logo direi.
Quanto ao princípio, vejamos o que ele escreve no posfácio:

“O autor desconhece os originais, nunca esteve nos lugares em que foram escritos nem manteve contato com especialistas para aprofundar seu entendimento. Preferiu conservar suas dúvidas e seguir a intuição, selo de seu diletantismo, no lugar de maquiar um domínio da matéria que não possui. Por serem baseadas em traduções, as versões não possuem valor filológico. São ecos do eco anterior distantes da voz que os causou.”

Não seria talvez despropositado aproximar essa última frase de um bem conhecido verso das correspondências de Baudelaire. Porque na floresta de ideogramas em que o poeta gaúcho se move, são os ecos que importam. E não necessariamente ou não apenas os ecos da voz original, digo, do chinês ou do japonês que escreveu o texto a traduzir. Mas os ecos de uma voz anterior, que ressoa sob a forma de intuição. O diletantismo se configura, eu penso, como estratégia de preservação dessa busca. 
Logo adiante, seu trabalho de tradutor é descrito como “prática de falsário”, o que não é uma boa definição. Com essa modéstia irônica, o que se aponta é o conjunto de atividades que permite a refratada aproximação (e ao mesmo tempo reafirma o distanciamento) do tradutor em relação ao original intangível e, ainda mais, talvez, ao original daquele original – por assim dizer. 
O posfácio, aliás, se intitula “A tradução no escuro”, o que não é um título exato, uma vez que essas traduções se fazem a uma luz particular, difícil, mas intensa. É, porém, no escuro, no sentido em que a iluminação oferecida pela filologia (e mesmo pelo estudo básico da língua) é cuidadosamente desprezada. 
É que seu interesse está mais além, como se vê por aqui: “de tudo, em cada caso, ao tradutor resta o contato direto com o que é intraduzível”. Estaria em erro, entretanto, quem lesse a frase como resignação ao fracasso da tradução. Pelo contrário, o que aí está é uma celebração, o desvelamento do fim da atividade e da origem desse livro, como dos outros do autor. Também da poesia se poderia dizer isso, com modalizações; mas seria arriscado e não viria aqui ao caso. A menos que eu enveredasse pelos demais livros do Thomaz. Da tradução, sim, como ele mesmo disse: o contato direto com o que não pode ser vertido em palavras. No universo abarcado pelo título do livro não é também isso o que se denomina iluminação?