Recebi do autor este “piano B.”. Um livro paradoxal, ou melhor, que busca o paradoxo num nível leve, talvez pudesse dizer de modo mais preciso. A assinatura na capa é o nome do Tom. Logo abaixo, depois da ilustração, vem o título, seguido da classificação genérica “poemas”. Continuando, por ordem de chegada na leitura, já que a quarta-capa é branca, vem a orelha, que qualifica o gênero: são poemas homoeróticos. A precisão é extrema: alguns, alerta, são mais precisamente homopornográficos. A que se segue uma primeira estratégia que poderia denominar de barreira, ou mesmo defensiva: “na melhor tradição da poesia fescenina”. Logo adiante, o foco se fecha do tradicional para o pessoal, com a surpreendente afirmação de que “a acreditar nas várias notas que abrem o livro, é verídica a experiência relatada.” Por fim, declara-se que há, na profusão de notas prévias, alguma charada, que cumpre ao leitor decifrar. Prosseguindo, nos deparamos com a primeira, a do autor – que tudo indica seja mesmo o que assina o livro e que é descrito, na segunda orelha, como o Prof. Antonio Donizeti Pires, nascido em São Joaquim da Barra, e vinculado à cadeira de literatura brasileira na Unesp de Araraquara. A identidade se reforça porque o Autor data sua Nota justamente dessa cidade, em fevereiro de 2013. Mas o que nos diz o Autor? Garante que é um melancólico. E agora, sim: que o livro que tenho em mãos foi “milimetricamente concebido como catarse e exorcismo”, e que a sua origem é paixão doentia por um rapaz muito mais jovem. É o registro mais pessoal, mas ao mesmo tempo ecoa o tema muito tradicional da paixão do homem velho ou maduro pelo efebo. Portanto, qual seria a charada? Antes de tentar responder, o leitor verá que se estabelece a seguir um pequeno baile de máscaras: comparecem depois do Autor, um Editor e o Professor. Todos de Araraquara, pois assinam seus textos em fevereiro abril e maio do mesmo ano em que o Autor redigiu a primeira nota. Vêm a seguir uma série de epígrafes, e então começa o corpo livresco. Ah, mas não devo prosseguir sem dizer que o Professor censura no livro – com alguma razão, eu diria – o excesso de maiúsculas simbolizantes. Mas digo também que divergimos, o suposto professor e eu, na condenação do livro, porque ele poderia afrontar “a própria família [do autor] e seu status social”. Estamos no reino do desdobramento irônico, como se vê. Esse espelhamento de eus, com notas caricatas, logo reivindica a herança evidente, mas explicitada em rodapé, de Fernando Pessoa. Mas e depois? Quando lemos os poemas, o que vemos? Que o Autor de fato produz uma poesia erótica de alta voltagem, declaradamente pessoal, ou melhor, de tom confessional. Ou seja, que o jogo de espelhos, o calidoscópio das notas e epígrafes acaba por fazer parte daquele mecanismo de sentido que é convocar, como frágil barreira protetora, a tradição, as referências, as puxadas dos cordéis do mundo “alto”. E por fim em propor que essa barreira não resiste ao que vem de baixo, à explosão em palavras do desejo ou da amargura. Pelos vãos da frágil armadura que é também roupa de clown, expõe-se então a carne do tesão masculino em forma nua e crua. Uma estratégia de obter um efeito de sinceridade. Quando a mim, o que me agradou no livro foi exatamente esse negaceio todo para a expressão direta, dando nome aos bois – como se diz. O contraste entre o baixo, o mais baixo, e o mais alto, assim, funcionou melhor. A naturalidade sintática e vocabular desse desejo versejado espelha a pulsão erótica, esse ideal, esse desejado retorno ao estado de natureza. Isso foi o que mais me interessou e impressionou nesse livrinho que promete ser o primeiro de vários, a julgar pela orelha. O Editor afirmou que o livro é “lírico até à medula, até o talo” e nisso radicou a sua singularidade. Não sei se lírico é exatamente a palavra, nem saberia dizer se é até o talo. Mas a sua singularidade para mim, para a minha experiência de leitura, por certo, não repousa nem no talo nem no lirismo. Em que então? Qual a solução da charada? - poderia perguntar-me. Mas não me pergunto, pois não vejo charada alguma que valesse encontrar-lhe a chave. Mas vejo algo mais relevante e notável, nesta tarde chuvosa em que passei uma hora folheando: diferentemente do tédio que quase sempre me domina, quando leio poesia contemporânea – porque os salamaleques às modas e aos paredros cansam, e algumas perguntas fatais terminam por não ter resposta (“o que esta pessoa tem para me dizer?”, “por que pretendeu falar desta maneira?”, “era mesmo preciso me falar em verso?”) – este livro se foi desdobrando em duradouro interesse, satisfação e diversão. A dose de autoironia, aliás, não é pequena. “Suplico-te / [...] que de todo te entregues à voracidade / deste lobo de presépio”. E ela me agrada na medida em que também contribui para o efeito, resultado e conclusão da leitura, que para mim mesmo resumo nesta formulação singela: esse autor, esse ponto de convergência de todo o calidoscópio, sentia que tinha algo relevante a dizer, que havia algo que lhe era importante dizer, e usou de todos os artifícios ao seu alcance para o dizer de modo interessante. E assim, com esta nota arrevezada, que vem, desde fora, juntar-se às demais que integram o livro, e não almeja a ser mais do que um brinde, agradeço ao Tom o presente inesperado.
Nota: Antonio Donizeti Pires. piano B.. São Paulo: Terra Redonda, 2021.