sábado, 22 de fevereiro de 2025

O tio da caminhonete de Pablo Simpson

 Recebi por esses dias um livrinho interessante de uma coleção interessante de uma editora interessante. 


Trata-se de “O tio da caminhonete”, de Pablo Simpson, publicado na Coleção Caravelas, da Editacuja Editora. Para completar a informação: São Paulo, 2021. 


A arte visual é de Fernando Morato, desde a envolvente sobrecapa, até os desenhos ótimos, que batem papo com o texto ao longo das páginas. 


Na ficha técnica encontro mais amigos, ex-alunos da Unicamp. Lá estão Pedro Marques, na curadoria da coleção, e Marcelo Beso, na revisão. E entre os autores já publicados, mais alguns: além do Pedro, o Marco Catalão, de quem já falei aqui, numa dessas crônicas de leitura, e Francine Ricieri, cujo “Eppur si muove” propus a mim mesmo comentar um dia desses e terminei por não o fazer.


O livro de Pablo vale a leitura. E os desenhos de Fernando, idem.


O que me agradou mais foi a mistura. Na caçamba dessa mítica caminhonete cabe de tudo. Cabe Alberto Caeiro, que está na epígrafe e é glosado nas primeiras linhas: “Eu nunca guardei rebanhos / Mas é como se os guardasse” vira “Eu nunca dirigi uma caminhonete / Mas é como se dirigisse”. Cabem Ray Charles, Santa Teresa de Jesus e Raul Torres e Serrinha nas epígrafes, e cabe, no espírito, também o irmão – porque filho do mesmo pai – de Alberto Caeiro, Álvaro de Campos: “Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra”. Esse, na verdade, o inconfessado guiador, porque também aqui o poeta é o tio que guia a caminhonete e é a própria caminhonete. Além disso, ajeita-se nessa caçamba um rolo farpado de alusões e citações, confessas ou disfarçadas.


Pode ser verdade que o tio que nos fala nunca tenha guiado uma caminhonete, mas é quase certo que o poeta, sim. Porque a celebrada D-20 surge muito técnica e sensualmente descrita, do alto dos seus trinta anos, na página final. Sua biografia minuciosa, junto com a de Alberto Caeiro, revela conhecimento íntimo, atesta manipulação amorosa e constante de ambos.


Mas voltando à estrada de Sintra, aqui transmutada, ao que parece, na Washington Luís entre Araraquara e São José do Rio Preto: graças a um código QR, que remete ao Spotify, sabemos que esse hipotético tiozão vai ouvindo uma verdadeira salada musical que junta um pouco de tudo, em justaposições inesperadas:  Roberto Carlos, Jota Quest, Sérgio Reis, Johnny Cash, Mötley Crüe, forrozão...


Assim como a trilha sonora, a salada de gêneros e tonalidades afetivas é a tônica do poema. E nisso reside sua arte e interesse, porque nos meandros desse negaceio brotam trevos e carrapichos de lirismo. 


Enquanto lia me lembrei de um belo poema de William Carlos Williams, “The right of way”. José Paulo Paes o traduziu. Começa assim:


O DIREITO DE PASSAGEM 


Transitando com a ideia posta

em nada deste mundo

a não ser o direito de passagem

eu desfruto a estrada por

efeito de lei —


Direto de passagem não é boa tradução. É uma via preferencial, na qual o poeta pode dirigir sem se preocupar em parar nos cruzamentos e assim ir contando o que vê à margem da estrada.


No poema de Pablo não há direito de passagem, e o momento de autoestrada é breve: aqui não há narrativa de escopo realista, mas uma série de montagens paródicas e irônicas.


Talvez por isso mesmo me tenha lembrado também de um texto de Freud que me causou muita impressão quando o li na juventude. 


Se me lembro bem, Freud dizia que quando um eu se abre com outro, se aproxima muito, o movimento do outro é de fechamento, de erguer barreiras, de se afastar. Freud então se pergunta por que e como a exposição de algo muito íntimo num poema ou numa obra de arte nos atinge, passa as barreiras, nos causa empatia, pode nos comover profundamente.


Talvez eu não tenha resumido bem, mas a ideia era essa, a pergunta era essa. E a resposta dele foi que a arte nos distrai. A forma nos ocupa, nos atrai a atenção. E o conteúdo psíquico nos atinge. Mais ou menos como um truque, uma espécie de prestidigitação psíquica.


(Este é um resumo bem condizente com esta manhã preguiçosa e calorenta de sábado, que me impede de ir buscar o texto e de o reler.)


Pois bem, esse texto de Freud me ocorreu porque nesse passeio com a velha caminhonete acontece algo semelhante: nessa bricolagem irônica, em que o poeta joga em todas as posições, de goleiro a centroavante, algo passa – ao gosto do freguês, podia talvez dizer, mas seria uma leitura simplista – algo passa de lirismo. Um lirismo que pede passagem, tropeça nos imaginados engradados de cerveja na caçamba, habita o lema machista do para-choque, às vezes surge numa frase, outra numa só palavra encaixada para o efeito, até que fecha o livro num haicai:


 Noite e eu só sempre só

 escovo os dentes ouço

 um grilo na calçada.


É verdade que o fecho do livro – como acontece com os fechos todos, dos romances e das vidas – redimensiona o que veio antes dele, percorre-o como uma fagulha, iluminando retrospectivamente a vida ou o romance, com uma luz nova que destaca cenas e palavras que tinham ficado embaçadas ou nas quais tínhamos atentado pouco.


Seja como for, a releitura fragmentária pareceu-me tão interessante quanto a leitura. O que, para mim, é um tipo de, como se dizia antigamente, prova dos nove.

sábado, 1 de fevereiro de 2025

IA e crítica literária

 Vi hoje uma entrevista de um famoso neurocirurgião, que dizia que a IA é balela, porque não é verdadeiramente nem inteligente nem artificial. Dizia ainda que ela é diferente do cérebro porque só trabalha com dados do passado. Fiquei me perguntando: ora, e nós?

Eu acho que o poder da IA é dialético, no sentido que ela “ouve” muitos e muitos textos sobre um assunto, processa o conjunto e extrai algo deles, como síntese. Ou seja, ela os faz dialogar entre si.
Pensar que não se pode criar uma hipótese a partir desse diálogo, uma hipótese nova, não parece fazer muito sentido para mim. Acho que é exatamente assim que eu funciono. Então é provável que eu também não seja verdadeiramente inteligente, embora ainda pareça claro que não sou - pelo menos do ponto de vista físico - artificial.
Mas a sério: o que uma máquina de IA nos mostra é que o processamento do conhecimento acumulado já é feito de forma muito mais eficiente pelas máquinas. Portanto, a novidade que há para extrair daí de modo lógico também será extraído por elas muito mais rápida e eficientemente.
Do ponto de vista da minha área, o que isso quererá dizer? Que texto crítico poderá ser produzido de modo mais eficiente por humanos, quando a IA estiver adulta (é atualmente uma criança, nem chegou à adolescência...).
Talvez o diferencial resida no de sempre: naquela fagulha que poderíamos chamar de intuição crítica e que consiste na projeção dos nossos problemas sobre um objeto do passado (ou do presente). Nesse sentido, a IA não parece ameaça, e sim ajuda, instrumento de apoio que permite economizar muito esforço, uma vez obtida a fagulha.
Na verdade, no que me diz respeito, será o de sempre (e pela idade, é quase certo que eu não veja a IA no esplendor da sua maturidade). E o de sempre é: quando me defronto com uma obra literária, anoto tudo que me ocorre, por mais despropositado que possa parecer no momento. Depois daquilo tudo peneirado e selecionadas as partes boas, vem o dolorido processo de revisão da bibliografia, para ver o que já foi dito e explorado e também o que posso modificar da percepção original.
Desse processo, o que sobra, no final das contas, é a pequena razão de originalidade. É sobre ela que tento, então, construir o argumento.
É provável que a máquina não tenha essa sensibilidade do tempo, essas angústias por resolver. Embora me pareça claro que em breve ela as possa emular...
Isso é que desafia e anima.

Pessanha e a história de Portugal, segundo a DeepSeek

 E aqui está o que a sensação do momento, a DeepSeek, escreveu sobre a relação entre a poesia de Camilo Pessanha e a história de Portugal;

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"A poesia de Camilo Pessanha, embora frequentemente associada ao simbolismo e à influência oriental, também mantém uma relação subtil e profunda com a história de Portugal. Essa conexão não se manifesta de forma explícita ou direta, como em poetas épicos ou nacionalistas, mas surge de maneira mais discreta, através de temas, atmosferas e uma sensibilidade que refletem o contexto histórico e cultural português do final do século XIX e início do XX.
Pessanha viveu numa época de grandes transformações para Portugal. O país enfrentava uma crise política, económica e identitária, marcada pelo declínio do império colonial, a instabilidade da monarquia e o advento da República em 1910. Embora ele tenha passado a maior parte de sua vida em Macau, distante geograficamente de Portugal, sua poesia carrega ecos dessa crise e de uma certa melancolia histórica. A sensação de desencanto, decadência e fragilidade que percorre sua obra pode ser lida como um reflexo do sentimento de um país que via seu poder e influência diminuírem no cenário global.
Em *Clepsidra*, sua principal obra, Pessanha explora temas como a passagem do tempo, a efemeridade da vida e a busca por um sentido transcendente. Esses temas, embora universais, adquirem um significado particular quando contextualizados na história de Portugal. A imagem da clepsidra, ou ampulheta, pode ser interpretada como uma metáfora para o próprio país, que vê suas glórias passadas escoarem-se lentamente, enquanto enfrenta um presente incerto. A poesia de Pessanha, com seu tom introspectivo e melancólico, parece capturar o espírito de uma nação que luta para reconciliar-se com seu passado grandioso e um futuro desafiador.
Além disso, a relação de Pessanha com a história de Portugal também se manifesta em sua ligação com o simbolismo, um movimento literário que, em Portugal, estava intimamente conectado à busca por uma identidade cultural moderna. O simbolismo português, representado por figuras como Eugénio de Castro e António Nobre, buscava renovar a literatura nacional, distanciando-se do realismo e do naturalismo e abraçando uma estética mais subjectiva e espiritualizada. Pessanha, embora distante fisicamente, fazia parte desse movimento e contribuiu para essa renovação, trazendo para a poesia portuguesa uma sensibilidade única, influenciada tanto pela tradição europeia quanto pela cultura oriental.
Por fim, a própria vida de Pessanha, marcada pelo exílio voluntário em Macau, pode ser vista como um reflexo da diáspora portuguesa e da complexa relação do país com seu império colonial. Macau, como um território português na China, era um espaço de encontro entre culturas, mas também um símbolo da presença colonial de Portugal no Oriente. A poesia de Pessanha, ao mesmo tempo que celebra a beleza e a espiritualidade da cultura chinesa, também carrega consigo a sombra de um império em declínio.
Em suma, a relação entre a poesia de Camilo Pessanha e a história de Portugal é feita de nuances e subtilezas. Sua obra não fala directamente de eventos históricos ou de figuras nacionais, mas captura o espírito de uma época marcada pela decadência, pela busca de identidade e pela tensão entre o passado e o futuro. Através de sua linguagem simbólica e introspectiva, Pessanha oferece uma visão poética e profundamente humana de um país em transição, revelando como a história e a cultura de Portugal estão entrelaçadas com sua própria sensibilidade artística."

Pessanha a a história de Portugal, segundo Claude.ai

 Pedi a Claude.ai que escrevesse um texto sobre a relação entre a poesia de Camilo Pessanha e a história de Portugal. O resultado foi surpreendente, a não ser que a máquina tenha acesso ao que andei escrevendo, mas que está ainda por publicar...

Eis aqui:
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"Camilo Pessanha (1867-1926) é considerado um dos maiores poetas do simbolismo português, e sua obra reflete profundamente o momento histórico de Portugal no final do século XIX e início do XX. Sua poesia captou, de maneira única, o sentimento de decadência e melancolia que permeava a sociedade portuguesa daquele período.

O contexto histórico em que Pessanha produziu sua obra foi marcado por eventos significativos para Portugal: o Ultimato Inglês de 1890, que abalou profundamente o orgulho nacional português; a crise da monarquia; e as transformações sociais e políticas que culminariam na implantação da República em 1910.

A obra de Pessanha, especialmente sua "Clepsidra", publicada em 1920, reflete esse momento de transição e incerteza. Seus versos são permeados por temas como a fugacidade do tempo, a dissolução, e um profundo sentimento de perda - elementos que podem ser lidos como metáforas da própria situação portuguesa da época.

Sua experiência em Macau, onde viveu grande parte de sua vida adulta, também oferece uma perspectiva única sobre o império colonial português em seu período de declínio. O orientalismo presente em sua obra não é meramente decorativo, mas reflete a complexa relação de Portugal com suas colônias e sua identidade como nação imperial em declínio.

A musicalidade característica de seus versos, com suas repetições e variações, evoca uma sensação de circularidade que dialoga com a própria história portuguesa: os ciclos de grandeza e declínio, as tentativas de regeneração nacional, e a persistente nostalgia de um passado glorioso.

Sua poesia elabora, através de imagens como água corrente, espelhos quebrados e sons que se desvanecem, uma reflexão sobre a identidade portuguesa em um momento de profunda transformação histórica. O pessimismo e a melancolia de seus versos não são apenas expressões de angústias pessoais, mas ecoam o sentimento coletivo de uma nação que se via forçada a repensar seu lugar no mundo.

Em sua obra, a decadência não é apenas um tema literário, mas uma condição histórica que ele consegue transformar em matéria poética de excepcional qualidade. Sua poesia representa, assim, não apenas um momento da literatura portuguesa, mas um documento sensível das transformações históricas de seu tempo."