TEXTOS DISPONÍVEIS

quarta-feira, 23 de abril de 2025

A arte do haicai


Haicai é um tipo de poesia que se aproxima das artes tradicionais japonesas num aspecto relevante: tem um caráter de exercício, aprendizado, conversa, construção coletiva.

Não é muito comum um poeta enviar poemas para outro e pedir palpites. E quando isso acontece, pouca gente tem a coragem de fazer o que Pound fez com “The Waste Land” – e menos gente ainda tem a humildade de fazer como Eliot, ao receber o seu poema todo cheio de rasuras e palpites.

Mas em haicai isso, por assim dizer, faz parte do jogo.

Por exemplo: um amigo me pediu um palpite sobre um seu haicai. Este:

mar de cana verde
- sob um céu azul sem manchas
outonal Mogiana.

Propus então duas versões, tentando alterar o mínimo e operando principalmente por supressão e inversão da ordem das palavras:

Sobre um mar de cana,
O céu sem manchas -
A Mogiana no outono.

Outono na Mogiana:
Sobre o mar de cana,
Um céu sem manchas.

E por que fiz isso?

Bom, eu achei que os adjetivos, embora acrescentando cores, diminuíam a carga sensória das imagens. Olhando o resultado, pareceu-me que em nenhuma das versões eles de fato fizeram falta.

Mantive a metáfora do mar, porque não me pareceu excessiva. Ou seja: é quase um lugar comum, não chama muito a atenção sobre si mesma.

Mas inverti a direção do olhar. Em vez da descrição estática (isto sob aquilo), preferi um pouco de dinamismo (sobre isto, aquilo). Porque quando digo “isto – sob aquilo”, a segunda parte termina por ter um valor quase adjetivo (não sei explicar melhor essa sensação); já quando digo “sobre isto, aquilo”, há um mínimo suspense e nenhuma parte da frase parece qualificar a outra.

Do ponto de vista da construção da imagem, da apresentação dos elementos, a diferença entre as duas propostas é basicamente a ordem. Na primeira, a cana e o céu são apresentados ao leitor e depois vem a região e a estação. Na segunda, vem primeiro a estação e depois a cana e o céu.

Na primeira, então, o poeta organizaria a percepção, enquadrando-a no último verso; na segunda, os elementos naturais apareceriam como “provas” ou tradução sensível do que se diz no verso inicial.

Ou seja, na primeira o poeta perceberia a cena, registraria os elementos sensíveis, e depois a explicaria, situando esses elementos no quadro sazonal, como quem diz: “Vejam essas coisas, isso mostra que estamos no outono nesta região”. Nesse sentido, talvez fosse melhor suprimir a palavra Mogiana, deixando como último verso isto apenas: O outono chegou!

Já no segundo caso, o poeta “definiria” o outono na região da Mogiana por meio de algo observado objetivamente, como quem diz “Isto é o outono nesta região: uma grande plantação de cana e um céu sem nuvens ou sem poluição”.

As outras modificações, isto é, a comutação de artigos indefinidos e definidos, se explicam pela mudança da perspectiva.

Meu amigo achou boas as sugestões, mas disse que tinha feito um esforço para manter a métrica. Já eu, embora nada tenha contra a métrica, não me importo muito com ela e estou sempre disposto a sacrificá-la em benefício da economia, da naturalidade da expressão e do sabor de haicai.

Numa oficina de haicai, esse tipo extenso de comentário não cabe. É muito teórico. Diz respeito só aos parâmetros de ação de quem conduz a oficina.

Na prática, a conversa seria mais simples: uma pessoa apresentaria um haicai; a outra pessoa – se achasse que poderia “tornar o haicai mais haicai” – proporia uma ou mais versões alternativas, até que a primeira pessoa dissesse “era isso mesmo que eu queria dizer!”, ou então: “entendi!”, ou, mais raramente: “prefiro ficar com a minha versão” por este ou aquele motivo. E em qualquer dos casos, a segunda pessoa diria: “ótimo, tudo bem!”.

E pode mesmo ocorrer que toda a ação da segunda pessoa esteja equivocada. Nem por isso deixa de haver aprendizado de ambas, e principalmente das demais pessoas que assistem à conversa ou participam dela, se se tratar de uma oficina nos moldes tradicionais.

E aqui está: para quem me perguntou como será a oficina do segundo semestre, essa longa postagem deve ser útil, pois pode ajudar a imaginar a forma de operar e de conduzir a atividade.

 

domingo, 13 de abril de 2025

Antologia de haicais clássicos

 Passei a tarde lendo, com alegria e prazer, o livro “Antologia de haicais clássicos”, de Edson Iura.

Conheci Edson Iura em algum momento de 1990 ou 1991. Foi em 90 que participei do V Encontro de Haicai, e nele apresentei o livro “Haikai – antologia e história”, recém-lançado. Na sequência, fui convidado a participar das reuniões do Grêmio Haicai Ipê.
Alguns anos depois, Edson e eu decidimos criar um fórum de discussão sobre haicai em português. A Unicamp cedeu espaço no seu computador central e lá abrimos a Haikai-l, em 28 de março de 1996. Nesse mesmo ano, Edson criou o site Kakinet, o primeiro em língua portuguesa exclusivamente centrado no haicai – e que hoje é uma referência imprescindível a quem quer saber mais sobre essa poesia.
Acompanhei depois o trabalho e a dedicação incansável do autor, que recentemente frutificou em livros. Primeiro, com o lançamento, em 2021, de “Cesto de caquis”, notável trabalho que ganhou o prêmio da Biblioteca Nacional em 2022. Nesse mesmo ano, com “O Mendigo Sonha” – uma coletânea de seus haicais, escritos ao longo de décadas. Agora, por fim, em 2025, com a reunião em volume de algumas das muitas traduções de haicais clássicos que foi publicando, de 1999 a 2003, na coluna “Um mestre japonês” do “Jornal Nippo-Brasil”.
O que mais apreciei na Antologia foi a escolha do tom e da forma. Minimalismo é a palavra-chave. Sua tradução poderia ser modéstia, adequação de registro ao original, recusa ao brilho fácil, ausência de ego, delicadeza.
Edson não se deixou engessar pela forma. Em vez de buscar manter alguma semelhança com a métrica do haiku, optou por buscar a naturalidade da expressão. Isso, porém, não significa dar forma sintática completa, analítica, à frase. Edson consegue o mais difícil e, do meu ponto de vista, o essencial na tradução do haiku para o português: manter ao mesmo tempo a naturalidade, o coloquialismo e o aspecto lacunar, que deriva principalmente da composição por justaposição. Além disso, é sensível uma preocupação extra; a de preservar, quando possível, a ordem de apresentação dos elementos que constituem o haicai.
O autor optou por não inserir notas, não situar os haicais, nem suprir informações contextuais ou literárias que poderiam ajudar no entendimento. E creio que fez bem, porque a forma livre que adotou lhe permite a flexibilidade necessária para que o próprio poema, graças a uma sábia escolha de palavras e forma de apresentação, se sustente. De mais a mais, a maior parte dos haicais que ele escolheu são clássicos, muito comentados em outras obras e em artigos da internet.
Com este livro, Edson completa o seu triátlon: um livro de estudos sobre o haicai, um livro com os haicais de lavra própria e um livro de traduções de haicais dos grandes mestres – estudo, tradução, composição. E o completa em grande estilo! Estou seguro de que a publicação desta antologia constitui um momento especial na história do haicai no Brasil.

domingo, 6 de abril de 2025

Haicai e zen

Li há pouco, na página do Haiku en español, um texto de Vicente Haya, intitulado “O haicai não é poesia zen”. Tendo a concordar com ele, quando diz que a atitude de buscar iluminação ou o incompreensível não é a mesma atitude, o mesmo modo de estar no mundo, do poeta de haicai, que busca sempre em primeiro lugar a concretude, o sensível – e a emoção ligada à percepção sensível. Mas discordo também da radicalidade dele, ao entender o zen como algo monolítico, que busca o satori como iluminação súbita. Na verdade, não entendo o zen. Apenas leio e penso...
Em certo ponto, ele refere um haicai de Bashô, como prova de que haicai não é zen. A passagem é esta:

Sin embargo, el propio Bashō -el haijin que se toma como prototipo de "poeta Zen"- en uno de sus haikus concede la beatitud precisamente al ser humano que "no comprende" (satoranu) ante una manifestación de la Naturaleza:

稲妻にさとらぬ人の貴さよ

inazuma ni satoranu hito no tōtosa yo

¡Qué santidad
la del hombre que ante un relámpago
no despierta a la realidad!

Por diversão, submeti o haicai ao ChatGPT e conversei um pouco com a máquina sobre ele. Vou transcrever a conversa toda. Vale a pena ver como a máquina interpreta o haicai, dentro do universo zen. Mais ou menos como se ele fosse uma declaração de adesão ao Soto Zen. Vale também a pena ver as traduções modernas que ela propõe. Uma delas poderia integrar a tradição leminskiana, eu creio.
Eis aqui:

-x-x-x-x-x

Claro! A frase japonesa 稲妻にさとらぬ人の貴さよ pode ser traduzida como:

"Quão nobre é a pessoa que não busca iluminação no relâmpago."

Ou, de forma um pouco mais interpretativa:

"A nobreza daquele que não se deixa iluminar por um relâmpago."

Essa é uma expressão poética e provavelmente faz parte de um haicai ou waka. Ela sugere que há valor ou dignidade em quem não busca uma compreensão súbita e chamativa (como o clarão de um relâmpago), mas talvez trilhe um caminho mais silencioso ou contemplativo.

Se quiser, posso ajudar a analisar o contexto poético ou filosófico também.

Claro! Vamos fazer uma análise mais profunda da frase 稲妻にさとらぬ人の貴さよ:

Tradução literal:
• 稲妻 (いなずま / inazuma): relâmpago
• に: partícula indicando direção ou causa
• さとらぬ (悟らぬ): forma negativa de 悟る (satoru), que significa "atingir a iluminação", "compreender profundamente", "despertar espiritual"
• 人 (ひと / hito): pessoa
• の: partícula possessiva ou de qualificação
• 貴さ (とうとさ / toutosa): nobreza, preciosidade, dignidade
• よ: partícula exclamativa, que adiciona ênfase emocional

Tradução poética sugerida:
“Quão nobre é a pessoa que não se ilumina com o relâmpago.”

Análise filosófico-poética:
1. Simbolismo do relâmpago (稲妻):
O relâmpago costuma simbolizar revelação súbita, uma iluminação repentina — como o satori no Zen, uma forma de despertar espiritual que pode vir de uma percepção abrupta. Algo momentâneo, poderoso, mas também fugaz.
2. A recusa da iluminação súbita:
A pessoa descrita não se ilumina pelo relâmpago — ou seja, não busca (ou não se deixa levar por) uma compreensão imediata, espetacular, repentina. Isso pode indicar alguém que prefere o caminho da paciência, da introspecção, do crescimento lento.
3. A nobreza dessa escolha (貴さ):
A frase destaca a "nobreza" ou "valor" dessa pessoa. Em vez de criticar, ela exalta aquele que não busca as respostas fáceis ou as revelações rápidas. O poeta parece valorizar quem não se apressa para entender o mundo em um clarão, mas que talvez escolha o caminho gradual, silencioso e constante do autoconhecimento.

Possível interpretação Zen:
Em algumas escolas do Zen, especialmente o Rinzai, o satori súbito é valorizado. Mas em outras tradições (como Soto Zen), a prática contínua é vista como mais importante do que qualquer momento de iluminação repentina. Essa frase parece dialogar com essa segunda abordagem: a sabedoria silenciosa, humilde, que floresce sem espetáculo.

Se você quiser, posso criar uma versão poética em português inspirada nessa ideia.

Com prazer! Aqui vai uma versão poética em português, inspirada no espírito e na cadência do original:

Quanta nobreza há
em quem não busca o clarão
para se entender.

Ou, numa versão mais livre e contemplativa:

Nobre é aquele
que não se apressa a despertar
com o brilho de um relâmpago.

Beleza! Aqui vão algumas versões mais modernas, mantendo a ideia original mas com um toque contemporâneo e direto:

1.Tem algo de bonito
em quem não precisa de um choque
pra se encontrar.

2.Nem todo mundo vê a luz no raio —
e tudo bem.
Tem força nisso também.

3.Admiro quem não corre
atrás de epifanias.
Só vive. E entende.

Curte esse estilo ou quer algo ainda mais urbano ou despojado? Posso ajustar fácil.

Fechou! Aqui vão algumas versões com uma pegada mais urbana, meio spoken word, com aquele clima de rua, cotidiano e introspecção sutil:

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1.
Respeito quem não brilha no raio.
Que aprende no escuro, no tempo, no trampo.

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2.
Nem todo mundo precisa de luz na cara.
Tem gente que acorda devagar,
no silêncio da quebrada.

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3.
Enquanto uns esperam trovão,
outros crescem quieto,
tipo semente no asfalto.

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4.
Tem quem não se liga no flash.
Prefere a brisa da noite,
descobrindo as coisas no passo.

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A conversa poderia continuar, pois a máquina pergunta se quer mais isto ou aquilo, neste ou naquele estilo. Mas já é suficiente...