Jornal (5)
Lobato revisitado
[Texto publicado na coluna
Livros, do jornal Correio Popular, de
Campinas, em 4 de novembro de 2000]
Com novos dados e documentos
recém-descobertos, duas biografias ajudam a traçar
um retrato mais completo do
criador do Sítio do Pica-pau Amarelo.
Monteiro
Lobato está em alta. Recentemente lançados, dois belos livros retraçam a vida e
as idéias do escritor que foi também líder de campanhas nacionalistas,
diplomata, divulgador do fordismo, fazendeiro e, sobretudo, empresário
agressivo e inventivo do setor livreiro. São eles: Monteiro Lobato - furacão na Botocúndia (Editora Senac, R$ 15), de
Carmen Lucia de Azevedo, Marcia Camargos e Vladimir Saccheta; e Monteiro Lobato - um brasileiro sob medida
(Editora Moderna, R$ 18), de Marisa Lajolo.
Furacão na Botocúndia é a reedição
compactada de um livro de 97, premiado
com o Jabuti. O que agora foi suprimido e faz muita falta é a parte documental,
principalmente as ilustrações que enriqueciam muito a edição anterior. A
vantagem da acessibilidade justifica, porém, inteiramente esta nova publicação,
que constitui ainda uma ótima fonte de documentação pictórica e bibliográfica,
além de trazer informações apenas dadas a público de forma sistematizada quando
da primeira edição. Estão neste caso, para mencionar somente dois aspectos, as
atividades diplomáticas de Lobato, que foi adido comercial em Nova Iorque de
1927 a 1930, e os registros dos órgãos de censura e repressão política do Rio e
de S. Paulo sobre as atividades do escritor. Para os que admiram o lado
empreendedor de Lobato, o relato de suas gestões diplomáticas em Nova Iorque
constituirá uma leitura muito interessante. E para os que amam o pitoresco dos
lances biográficos há também aí muitos atrativos, como por exemplo a notícia de
que Lobato manteve por algum tempo, na Greenwich Street um restaurante típico
brasileiro, chamado Brazilian Garden Coffee House.
Pela sua extensão e pelo
volume de dados, Furacão na Botocúndia é, por assim dizer, um retrato de
Lobato em corpo inteiro e merece ser lido por qualquer leitor que tenha
interesse pela vida e pela obra do autor. Já Um brasileiro é, para
manter a imagem, um desenho de perfil, pois tanto a narrativa da vida de
Lobato, quanto as ilustrações
privilegiam praticamente apenas dois pontos: a atividade empresarial e a
recepção da obra. Todo o resto da vida do autor é posto em função do seu lugar
no desenvolvimento de um novo modo de criação, produção física e distribuição
da literatura. Por isso mesmo, os dois volumes, que se destinam a públicos
diversos, funcionam bem juntos e a leitura de um pouco prejudica a do outro.
Uma característica comum a
ambos os livros é a facilidade da leitura, obtida por meio da assunção ostensiva do ponto de vista de
Lobato (principalmente do que diz respeito à sua auto-representação) como
verdade histórica e da incorporação da sua linguagem e referências pessoais no
discurso biográfico. Isto é, a aproximação da sua linguagem à da narrativa
ficcional.
Lajolo, por exemplo, se
refere sempre a Lobato jovem como Juca. De tal forma, e tanto, que Juca e
Lobato parecem dois estágios muito distintos, algo como uma larva rural e uma
borboleta industrial, constituindo o ponto do livro a narrativa exatamente do
processo de metamorfose. O mesmo tratamento é também recorrente no livro de
Azevedo, mas o objetivo, como de hábito em biografias, é promover a ilusão de
intimidade e estabelecer a singularidade inata do grande homem, propósito
sintetizado, como pensamento e estilo, nesta frase do primeiro capítulo:
"Uma lucidez quase desconcertante para alguém tão jovem".
Outro ponto
que chama a atenção nos dois livros (que de resto são tão diferentes) é uma
certa dificuldade de lidar com o lugar histórico de Lobato na literatura
brasileira. O que é o mesmo que dizer: com a complicada posição de Lobato face
aos cânones modernistas.
Marisa
Lajolo não se detém muito no tópico, contentando-se em mostrar que, por volta
de 45, terão sofrido “uma espécie de apaziguamento tardio as conturbadas
relações entre os modernistas de 22 e Monteiro Lobato” (p. 54). Mas como o foco
da sua narrativa é, a rigor, extraliterário, não causa grande desconforto que o
problema seja apenas aflorado e analisado de um ponto de vista sincrônico.
Já o Furacão parece animado de furor de justiça, e
em vários pontos investe contra a má compreensão que tiveram os homens da
Semana de Arte Moderna do lugar e do papel de Lobato na cultura brasileira,
como nesta frase: “sacralizada como divisor de águas e espécie de marco zero na
trajetória cultural brasileira, a Semana de 22 deu ensejo a um tipo de análise
auto-referida e reducionista que, na prática, significou depreciar quase tudo o
que a antecedeu" (p. 88).
O tiro é
merecido, mas o alvo não parece bem focado. Porque o que importa de fato não é
a auto-referência modernista, nem a incompreensão mútua entre os modernistas e
Lobato. O problema está na posterior sacralização do Modernismo como padrão
único para aferir a modernidade, a relevância e a propriedade, não só do que
precedeu a Semana, mas principalmente de tudo o que veio depois dela e que não
fazia parte do seu círculo de influência ou não compartilhava dos seus
pressupostos. E importa porque, apesar de sempre mais anacrônico, é ainda
dominante e, assim sendo, se constitui como oponente do objetivo do livro, que
é recompor a real dimensão do escritor Monteiro Lobato.
Este é,
porém, um assunto longo, que demanda muito espaço. Aqui, contento-me com a
observação de que, de uma forma ou de outra, à medida que se enfraquece a
hegemonia do gosto e dos ditames modernistas, muitos autores até agora
esquecidos ou apenas parcialmente lembrados começam a comparecer com mais
assiduidade nas vitrines das livrarias e no corpo de trabalhos acadêmicos ou
produzidos para grande público. Lobato é um deles, e esses dois livros
certamente constituem mais um passo para a melhor compreensão da figura
singular desse excelente escritor, que foi também editor, negociante,
especulador da bolsa, diplomata de ocasião e defensor de ideais nacionalistas.