domingo, 20 de maio de 2012

Lobato revisitado

Jornal (5)

Lobato revisitado

[Texto publicado na coluna Livros, do jornal Correio Popular, de Campinas, em 4 de novembro de 2000]

Com novos dados e documentos recém-descobertos, duas biografias ajudam a traçar
um retrato mais completo do criador do Sítio do Pica-pau Amarelo.


            Monteiro Lobato está em alta. Recentemente lançados, dois belos livros retraçam a vida e as idéias do escritor que foi também líder de campanhas nacionalistas, diplomata, divulgador do fordismo, fazendeiro e, sobretudo, empresário agressivo e inventivo do setor livreiro. São eles: Monteiro Lobato - furacão na Botocúndia (Editora Senac, R$ 15), de Carmen Lucia de Azevedo, Marcia Camargos e Vladimir Saccheta; e Monteiro Lobato - um brasileiro sob medida (Editora Moderna, R$ 18), de Marisa Lajolo.
            Furacão na Botocúndia é a reedição compactada de um livro de 97,  premiado com o Jabuti. O que agora foi suprimido e faz muita falta é a parte documental, principalmente as ilustrações que enriqueciam muito a edição anterior. A vantagem da acessibilidade justifica, porém, inteiramente esta nova publicação, que constitui ainda uma ótima fonte de documentação pictórica e bibliográfica, além de trazer informações apenas dadas a público de forma sistematizada quando da primeira edição. Estão neste caso, para mencionar somente dois aspectos, as atividades diplomáticas de Lobato, que foi adido comercial em Nova Iorque de 1927 a 1930, e os registros dos órgãos de censura e repressão política do Rio e de S. Paulo sobre as atividades do escritor. Para os que admiram o lado empreendedor de Lobato, o relato de suas gestões diplomáticas em Nova Iorque constituirá uma leitura muito interessante. E para os que amam o pitoresco dos lances biográficos há também aí muitos atrativos, como por exemplo a notícia de que Lobato manteve por algum tempo, na Greenwich Street um restaurante típico brasileiro, chamado Brazilian Garden Coffee House.
Pela sua extensão e pelo volume de dados, Furacão na Botocúndia é, por assim dizer, um retrato de Lobato em corpo inteiro e merece ser lido por qualquer leitor que tenha interesse pela vida e pela obra do autor. Já Um brasileiro é, para manter a imagem, um desenho de perfil, pois tanto a narrativa da vida de Lobato, quanto as ilustrações  privilegiam praticamente apenas dois pontos: a atividade empresarial e a recepção da obra. Todo o resto da vida do autor é posto em função do seu lugar no desenvolvimento de um novo modo de criação, produção física e distribuição da literatura. Por isso mesmo, os dois volumes, que se destinam a públicos diversos, funcionam bem juntos e a leitura de um pouco prejudica a do outro.
Uma característica comum a ambos os livros é a facilidade da leitura, obtida por meio da  assunção ostensiva do ponto de vista de Lobato (principalmente do que diz respeito à sua auto-representação) como verdade histórica e da incorporação da sua linguagem e referências pessoais no discurso biográfico. Isto é, a aproximação da sua linguagem à da narrativa ficcional.
Lajolo, por exemplo, se refere sempre a Lobato jovem como Juca. De tal forma, e tanto, que Juca e Lobato parecem dois estágios muito distintos, algo como uma larva rural e uma borboleta industrial, constituindo o ponto do livro a narrativa exatamente do processo de metamorfose. O mesmo tratamento é também recorrente no livro de Azevedo, mas o objetivo, como de hábito em biografias, é promover a ilusão de intimidade e estabelecer a singularidade inata do grande homem, propósito sintetizado, como pensamento e estilo, nesta frase do primeiro capítulo: "Uma lucidez quase desconcertante para alguém tão jovem".
Outro ponto que chama a atenção nos dois livros (que de resto são tão diferentes) é uma certa dificuldade de lidar com o lugar histórico de Lobato na literatura brasileira. O que é o mesmo que dizer: com a complicada posição de Lobato face aos cânones modernistas.
Marisa Lajolo não se detém muito no tópico, contentando-se em mostrar que, por volta de 45, terão sofrido “uma espécie de apaziguamento tardio as conturbadas relações entre os modernistas de 22 e Monteiro Lobato” (p. 54). Mas como o foco da sua narrativa é, a rigor, extraliterário, não causa grande desconforto que o problema seja apenas aflorado e analisado de um ponto de vista sincrônico.
            Já o Furacão parece animado de furor de justiça, e em vários pontos investe contra a má compreensão que tiveram os homens da Semana de Arte Moderna do lugar e do papel de Lobato na cultura brasileira, como nesta frase: “sacralizada como divisor de águas e espécie de marco zero na trajetória cultural brasileira, a Semana de 22 deu ensejo a um tipo de análise auto-referida e reducionista que, na prática, significou depreciar quase tudo o que a antecedeu" (p. 88).
O tiro é merecido, mas o alvo não parece bem focado. Porque o que importa de fato não é a auto-referência modernista, nem a incompreensão mútua entre os modernistas e Lobato. O problema está na posterior sacralização do Modernismo como padrão único para aferir a modernidade, a relevância e a propriedade, não só do que precedeu a Semana, mas principalmente de tudo o que veio depois dela e que não fazia parte do seu círculo de influência ou não compartilhava dos seus pressupostos. E importa porque, apesar de sempre mais anacrônico, é ainda dominante e, assim sendo, se constitui como oponente do objetivo do livro, que é recompor a real dimensão do escritor Monteiro Lobato.
Este é, porém, um assunto longo, que demanda muito espaço. Aqui, contento-me com a observação de que, de uma forma ou de outra, à medida que se enfraquece a hegemonia do gosto e dos ditames modernistas, muitos autores até agora esquecidos ou apenas parcialmente lembrados começam a comparecer com mais assiduidade nas vitrines das livrarias e no corpo de trabalhos acadêmicos ou produzidos para grande público. Lobato é um deles, e esses dois livros certamente constituem mais um passo para a melhor compreensão da figura singular desse excelente escritor, que foi também editor, negociante, especulador da bolsa, diplomata de ocasião e defensor de ideais nacionalistas.