As origens da nação portuguesa [1]
(o romance histórico de A. Herculano)
Quando Alexandre Herculano
escrevia sua obra literária, Portugal passava por uma profunda convulsão
econômica e moral. A Independência do Brasil está na origem de um período de
tensões sociais e políticas que recrudesceriam com o Ultimatum inglês de
1890, quando o país seria obrigado a desistir formalmente do sonho de
substituir o Brasil por novos territórios no centro da África.
Perder o Brasil
significou um duplo golpe para a nação portuguesa. Por um lado, perdia-se a principal
fonte de sustento e de riqueza; por outro, no imaginário da época, essa perda
representava o fim da ilusão de que Lisboa poderia manter-se indefinidamente
como cabeça de um grande império transatlântico. Herculano, nascido em 1810,
forma-se sob a influência desse momento muito particular, em que se agudiza a
percepção de que o país estava em crise e que seriam necessárias medidas
enérgicas para revitalizar a nação.
Desde muito cedo, o futuro
escritor participa ativamente dos acontecimentos políticos de seu país,
engajando-se como soldado na guerra civil, contra os absolutistas partidários
de D. Miguel. Marcado por essa experiência, durante o resto da vida
permaneceria fiel aos valores liberais. O que não significa que tenha aprovado
os novos rumos tomados pela nação em meados do século passado: na verdade,
depois de uma fase de intensa participação intelectual e política, Herculano
acabou por retirar-se ostensivamente da vida pública, desiludido com a política e com a sociedade
dos novos tempos. Mas da sua chácara, onde passou a dedicar-se à agricultura,
não deixou nunca de estar atento a tudo o que se passava em seu país,
manifestando-se sobre assuntos que julgava importantes e correspondendo-se com
os novos escritores da chamada Geração de 70. Tendo-se transformado numa
espécie de mito para os contemporâneos e para esses jovens, Herculano acaba por
representar, cada vez mais, a pureza perdida dos ideais que marcaram os
primeiros tempos liberais. Da conjunção de seu magistério moral e da seriedade
intelectual que caracteriza toda sua vida resultou que, ao terminar os seus
dias, em 1877, Herculano não fosse apenas um escritor consagrado, mas a
realização de um projeto de inserção social que percorre toda a sua carreira
literária, iniciada com um texto que se intitulava justamente “A voz do Profeta”.
É contra esse quadro
situacional que se deve projetar a obra literária de Alexandre Herculano. E é
esta circunstância que não se deve perder de vista: homem profundamente
empenhado na transformação do mundo que o cercava, Herculano foi contemporâneo
de um grande esforço de modernização da sociedade portuguesa, necessário face
aos novos tempos, em que o império parecia destinado a reduzir-se a um pequeno
e pobre país ibérico, sem poder efetivo e quase sem peso na balança da Europa.
Foi nesse momento crucial, de transição, que se dedicou, como nunca
ninguém o fizera antes dele, à coleta de documentos do passado, à interpretação
histórica e à composição ficcional. E o fez com um intuito duplo e muito claro:
preservar a memória nacional e educar o público burguês que se formava na
esteira das reformas liberais. A educação desse público tem um lugar central na
obra de Herculano, pois se podem situar aí tanto as suas intervenções diretas
na vida social por meio de textos panfletários e polêmicos, até a sua longa
atividade à frente da revista Panorama, que era o órgão divulgador de
uma Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis. Foi no Panorama que,
ao lado de outros textos de caráter variado, foram publicadas as principais
obras literárias do autor. O Bobo, por exemplo, só saiu em volume
postumamente, em 1878, tendo circulado, durante toda a vida do autor, apenas
nas páginas da revista e numa edição-pirata brasileira, de 1866.
Para compreender melhor a
unidade da obra de Herculano, vale a pena observar como ele - que foi
simultaneamente o criador da ciência histórica e do romance moderno em Portugal
- entendia o papel do romance histórico e sua relação com a história
propriamente dita. Num texto de 1840, eis o que escreveu a respeito:
Novela ou História, qual destas duas cousas é a mais
verdadeira? Nenhuma, se o afirmarmos absolutamente de qualquer delas. Quando o
caráter dos indivíduos ou das nações é suficientemente conhecido, quando os
monumentos, as tradições e as crônicas desenharam esse caráter com pincel
firme, o noveleiro pode ser mais verídico do que o historiador; porque está
mais habituado a recompor o coração do que é morto pelo coração do que vive, o
gênio do povo que passou pelo do povo que passa. (...) Essa é a história íntima
dos homens que já não são; esta é a novela do passado. Quem sabe fazer isto
chama-se Scott, Hugo ou De Vigny, e vale mais e conta mais verdades que boa
meia dúzia de bons historiadores.
Ou seja, para Herculano, a
novela histórica transmite verdades, até em maior grau do que a própria
história, mas desde que apoiada por uma atividade prévia de pesquisa e
conhecimento objetivo. E é exatamente isso o que ele vai tentar fazer na sua
obra: ao lado de uma intensa atividade propriamente historiográfica, de que
resultou a sua História de Portugal, vai dedicar-se a uma espécie de
outra história, dirigida ao público em geral, a que atribuirá uma função
educativa e um sentido social muito claro. Como se lê no primeiro capítulo de O
Bobo, para Herculano os portugueses do século XIX, “pobres, fracos, humilhados, depois dos tão formosos
dias de poderio e de renome@ nada tinham de seu senão o passado. Era nele, portanto, na sua
evocação, que deviam buscar a energia necessária para restaurar a nação. Ao
romancista cabia, nesse quadro, a função de educador dos contemporâneos, por
meio da evocação e da ressurreição sensível das épocas gloriosas. Era esta a
sua missão, o seu dever, dizia ele: Ano meio de uma nação decadente, mas rica de tradições,
o mister de recordar o passado é uma espécie de magistratura moral, é uma
espécie de sacerdócio.”
Imbuído dessa idéia,
Herculano vai publicar na revista Panorama suas três grandes novelas: O
Monge de Cister (1841), Eurico, o Presbítero (1843) e O Bobo (1843). Eurico trata do
mundo visigótico, da origem mais remota do que um dia seria a civilização
hispânica. Os dois outros textos, de momentos decisivos na história de
Portugal: a ação de O Bobo situa-se na época de nascimento da nação,
quando Afonso Henriques se prepara para formar o novo reino; e O Monge de
Cister, que tem por subtítulo “a época de D. João I”, é
ambientado na corte desse rei, que liderou, em aliança com a burguesia de
Lisboa, no final do século XIV, a chamada Revolução de Avis.
Do ponto de vista literário, O
Bobo é uma típica novela histórica: um primeiro plano de intriga romanesca
se constrói sobre uma evocação do passado distante, na qual o pitoresco dos
costumes e ambientes vem, muito freqüentemente ao primeiro plano do texto. A
trama de O Bobo, em que correm imbricadas uma história de amor
cavaleiresco e uma intriga política palaciana, encontra seu ponto focal na
figura que dá nome ao texto. D. Bibas, perfeita atualização do gosto romântico
pelo grotesco, é o ponto de vista pelo qual se julgam as paixões e se desvendam
os interesses em jogo naquele momento central da história portuguesa. É também,
como já se notou, uma representação do povo oprimido pelo despotismo feudal,
que o autor apresenta exercendo a vingança por anos e anos de opressão,
vingança essa repleta de conseqüências políticas para a nação portuguesa. No
mesmo plano alegórico, a ajuda que D. Bibas presta a Afonso Henriques poderia
sugerir que a aliança entre o povo e o rei contra os senhores da nobreza
territorial - que é própria da idade moderna -, também presidiria de alguma
forma, naquelas eras recuadas, à formação de Portugal.
Na leitura desta obra, como
na de O Monge de Cister, encontramos o que há de mais acabado em termos
de romance histórico em Portugal. E se hoje as suas personagens nos podem
parecer excessivamente hieráticas, inteiramente possuídas por uma idéia ou por
uma paixão - e por isso pouco verossímeis, nos nossos termos -, é justamente
nessas cores carregadas que, sabendo ler, encontraremos o que de melhor e mais
curioso o livro nos pode oferecer: a sua singular mistura de gosto gótico e
vontade de ensinar, de busca do pitoresco e exacerbação sentimental, de
evocação da realidade histórica e de tratamento idealizado e extremado da
paixão amorosa. Enfim, em outras palavras, o que encontramos aqui é uma das
melhores obras do ultrarromantismo em versão portuguesa.