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quinta-feira, 6 de junho de 2013

Tradução do ponto de vista de um editor



A tradução do ponto de vista do editor


 [texto lido em 11 de agosto de 2008, no II Simpósio de Tradução de Ensaio - UFSC
sobre o tópico que me foi dado: a tradução do ensaio]





“Como ousar falar de tradução diante de vocês que, na consciência vigilante que têm dos imensos desafios, e não somente do destino da literatura, fazem dessa tarefa sublime e impossível o seu desejo, sua inquietude, seu trabalho, seu saber e sua arte? Como ousarei me anunciar diante de vocês quando me reconheço, ao mesmo tempo, selvagem e inexperiente nesse campo? Se ouso abordar esse tema diante de vocês é porque esta própria falta de coragem, a renúncia precoce da qual falo e de onde parto, esta confissão de falência diante da tradução, esta foi sempre em mim a outra face de um amor ciumento e admirativo: paixão por aqueles que, endividando-se infinitamente com ela, apelam, amam, provocam e desafiam a tradução; admiração por aqueles e aquelas que considero os únicos a saber ler e escrever: as tradutoras e tradutores.”

Assim se expressava e se desculpava Jacques Derrida, ao iniciar uma conferência no Encontro de Tradutores em Arles – França – em 15 de novembro de 1998. E se ele assim fazia, que poderia eu aqui fazer, sem nenhuma modéstia afetada, tendo do assunto um conhecimento pedestre e uma experiência pífia?

Portanto, o que quero fazer, com as palavras dele, é me desculpar da temeridade de ter aceitado este convite, sem ser um especialista no assunto e sem ter uma vivência significativa de tradução que pudesse justificar a minha presença aqui. De fato, não sou estudioso da tradução, e, embora tenha já traduzido textos avulsos e um único volume de prosa, não me considero com direito ao nome de tradutor.

Já agora, tendo aceitado e estando aqui, tenho de falar como um leigo e de tentar fazer o melhor, de forma também a não ofender os que me convidaram, acreditando que eu pudesse ter algo a dizer. E vou fazê-lo, então, a partir dos dois únicos pontos de vista que me cabem.

O primeiro é o de leitor de traduções de ensaios – um leitor convicto, pois, diferentemente da poesia, que prefiro ler na língua em que foi escrita, prefiro ler os ensaios (como os romances) em português.

O segundo é o viés do editor de livros de ensaios traduzidos – com base na experiência de quase 7 anos na direção da Editora da Unicamp e na presidência do seu conselho editorial.

Antes, porém, de começar, queria dizer que não pude deixar de lembrar e lamentar, quando recebi este convite, que a pessoa certa para representar aqui a Unicamp já não está entre nós. E que por isso deveria ao menos vir, e vim, trazendo, como abertura da minha fala neste evento de tradução, um texto traduzido por ele e que eu estava justamente lendo, como editor, quando surgiu o convite. Refiro-me, é claro, a Paulo Ottoni, falecido há pouco tempo, em plena maturidade e produtividade intelectual, que pouco antes de morrer deixou na Editora um volume com a tradução de três textos de Derrida sobre ou à volta da tradução.

De modo que, antes de tudo, queria deixar aqui estas palavras de lembrança e dedicar à sua memória o que possa haver de êxito nesta minha incursão pelo terreno que sempre foi o dele.

Dito isso, queria agora trazer a questão da tradução para um nível que, embora talvez seja elementar demais para vocês, é o nível no qual posso me mover com menos embaraço.


E, para dar início, queria lembrar agora um texto de Mário de Andrade, publicado em 26 de março de 1939. Trata-se de “Feitos em França”.

Esse breve artigo traz uma questão que vale a pena considerar, quando se fala de tradução. Mário aí nos conta a sua reação ao ler uma “Anthologie de quelques conteurs brésiliens”, que o impressionou por lhe parecer um volume uniformemente bom. Ora, sucede que ele conhecia boa parte daqueles textos na língua em que foram escritos, isto é, na nossa. Daí o seu espanto, que ele registra assim: “Me surpreendi encontrando certas páginas, minhas velhas conhecidas, que eu sempre tivera por medíocres ou mesmo integralmente ruins. Pois não é que essas páginas, vindas agora refeitas de França, me agradavam lerdamente, algumas chegaram a ser francamente boas!”.

Na sequência, Mário aborda uma questão que interessa a nós todos ainda hoje: de seu ponto de vista – e essa é a sua explicação para o desnível entre os contos na língua de origem e no francês –, a língua francesa, diferentemente da portuguesa, seria uma língua culta – ou seja, uma língua organizada, ao longo do tempo, de modo a ter um padrão culto, uma forma linguística literária bem definida.

A consequência seria que, na França, segundo Mário, “toda a gente que escreve [...] escreve bem, e um principiante pouco se distingue ou nada, lá, dos veteranos, quanto à felicidade do bem dizer”. Já os escritores brasileiros, segundo Mário, têm de ser “estilistas”, ou melhor, estão condenados a ser estilistas, isto é, “criadores de uma expressão linguística que lhes é peculiar”.[1]

Retenhamos, por enquanto, desse texto, a ideia de que a tradução acompanha o desnível entre as línguas – ou talvez fosse melhor dizer: a qualidade da tradução também se determina pelo que ele chama de “cultura da língua”. Ou ainda, que a tradução de um texto de uma língua menos padronizada para uma mais padronizada (e vice-versa, poderíamos supor) produz uma alteração qualitativa do texto traduzido, independentemente daquilo que possa ser a vontade ou a competência do tradutor.

Mário de Andrade voltou a tratar do problema do padrão linguístico num texto de 1940, intitulado “A língua viva”, no qual sai em defesa da “língua culta”. O argumento começa pela comparação do papel da língua culta com o do latim, nas eras clássicas: uma “língua morta estratificada”, instrumento de comunicação transregional e transnacional. A estratificação da língua culta, desse ponto de vista, é uma necessidade e uma grande vantagem para a circulação do conhecimento. A seguir, Mário opera uma divisão na língua culta: a artística e a científica. A primeira submeteria a estratificação às necessidades da expressão; a segunda mantê-la-ia em nome da finalidade universalista da comunicação.


Ou seja, para Mário de Andrade o desafio ao escritor brasileiro era duplo: por um lado, ele não possuía à sua disposição um corpo de linguagem culta padronizada e eficaz enquanto meio de comunicação científica; uma das suas missões era construir esse instrumento; mas, ao mesmo tempo, o imperativo estético permitia ou mesmo exigia o seu afrontamento, em nome da expressão individual do artista.


No nível da convenção da norma, temos de lembrar, neste momento do comentário, que houve um intenso e bem-sucedido trabalho de sistematização da língua culta, no Brasil, no final do século XIX. O resultado foi o que hoje chamamos pejorativamente de estilo bacharelesco ou, muitas vezes, também pejorativamente, de estilo parnasiano. Embora esse resultado esteja longe de poder ser reduzido a isso, como mostra a leitura da obra de Machado de Assis – que se empenhou pelo academicismo e pela construção de uma norma linguística equilibrada e, do ponto de vista da evolução do português do Brasil (e não só), de viés claramente conservador.
  
O curioso e importante a notar é que foi o Modernismo – não obstante Mário sofresse a angústia da falta de norma linguística de cultura –, ao triunfar de modo amplo pelos anos de 1950, que promoveu o descrédito ou a destruição daquele padrão oitocentista, que se espraiou pelas primeiras décadas do século XX e até além do próprio Modernismo. As necessidades da universalização do ensino e a má formação dos professores, aliada a um fator que logo exporei, fizeram o resto.

A questão é complexa e não cabe aqui. Mas o resultado geral, em minha opinião, é que não temos ainda hoje um padrão eficiente e bem descrito de língua culta. Ou, ao menos, o nosso padrão são vários padrões, e a forma escrita ainda tem variações muito grandes conforme o gênero do discurso, a região ou o público a que se destina.

Nem fomos tampouco capazes de criar instrumentais interessantes e competentes para estabelecer, manter e difundir um novo padrão.

De fato, os livros de orientação gramatical e estilística correntes hoje são os manuais de redação de grandes jornais.

São eles os que vejo não só com alunos e colegas de faculdade – ou seja, com produtores de textos ensaísticos – mas também com preparadores e revisores de texto.

E a conjugação da necessidade ampla de orientação linguística com a omissão dos acadêmicos no debate e no atendimento a essa necessidade dá origem a fenômenos curiosos como o conhecido Professor Pasquale – espécie de autoajuda ou fastfood do padrão culto.

Como editor, tentei já montar uma equipe de acadêmicos para compor um volume ou coleção de livros que fosse útil no sentido de criar, sem facilitações, um conceito e um modelo do que seja a linguagem culta padrão brasileira, ou, para simplificar, do que seja ou deva ser a linguagem adequada ao livro acadêmico. Não consegui. É certo que trabalho numa universidade que não tem cursos de língua portuguesa, nem de estilística da língua portuguesa, nem de filologia. Uma universidade na qual a norma é tratada quase exclusivamente, de uma perspectiva que me parece simplista, como emanação ou exercício do preconceito lingüístico. Uma universidade, enfim, na qual a tradição normativa é um objeto de ataque mais do que de estudo. E que tem ilustres professores que julgam que o padrão do português culto pode ser descrito a partir da linguagem dos grandes jornais de circulação diária.


Mesmo tendo corrido o risco da dispersão, chego agora ao ponto que interessa, no que diz respeito à tradução do ensaio. Do meu ponto de vista pedestre, pelo qual já me desculpei acima, ouso dizer que uma das grandes dificuldades do tradutor é encontrar um nível de formalização linguística que lhe permita combinar a atualidade que se espera de um texto produzido hoje com a exigência de padrão linguístico que permita a comunicabilidade do texto ao longo do tempo e do espaço.

O que é o mesmo que dizer que o tradutor, como qualquer outro escritor brasileiro, se não tem à sua disposição um padrão de prosa culta, muito menos tem à sua disposição um padrão de prosa culta reflexiva. E é dizer ainda que, por conta dessa ausência de padrão definido, o tradutor precisa ser também, de alguma maneira, nos termos de Mário, “um estilista”.

E, no entanto, basta uma leitura rápida dos Sermões do Padre António Vieira para ter uma boa ideia das possibilidades pouco exploradas da língua. E, em registro mais moderno, poderia referir aqui a prosa reflexiva de Fernando Pessoa, onde um tradutor ou um ensaísta pode encontrar muitas sugestões para a construção de um texto de prosa sofisticada, do ponto de vista argumentativo.


Mas deixemos ainda um momento a questão da tradução em suspenso (ela que aqui está sempre em suspenso ou entre parênteses, mas não só porque seja a questão que domino menos), e pensemos ainda um segundo na da língua culta ou literária em geral.

Nesse caso, queria ainda considerar as consequências menores, mas nem por isso menos terríveis, da ausência de um padrão culto e da desatenção com esse padrão na escola fundamental, média e universitária. E então, como poderia não falar das dificuldades cotidianas que se podem constatar nas construções sintáticas elementares em textos acadêmicos?  Nas deficiências da pontuação ou no falso terror da ainda famigerada colocação de pronomes? Também não preciso referir aqui a dificuldade, presente em teses e dissertações, de concatenar sintática e logicamente as proposições, de modo que exponham com clareza oposições, modalizem agudamente os enunciados, encadeiem de forma convincente os argumentos. E tampouco precisaria talvez registrar que se tornou tão pouco comum encontrar um aluno de mestrado ou mesmo doutorado em Letras que escreva com elegância e correção, que já se ouvem frequentemente elogios, na arguição do trabalho, à eventual correção da escrita do candidato – como se isso, nesse nível de estudos, fosse um mérito singular e não um pré-requisito comum! (E já agora aproveito este momento para homenagear um profissional relativamente obscuro, mas cada dia mais fundamental e difícil de encontrar – o herói da resistência da norma: o preparador e revisor de textos – um profissional que é também, de certa forma, um tradutor, operando a delicada conversão e ajuste da língua informal para o indefinido e até agora problemático padrão da língua ou das línguas do livro).


Voltando uma última vez ao tema desta mesa, o que quero dizer é que as dificuldades que temos de encontrar bons tradutores de ensaios – ou, ao menos, um bom nível médio entre os prestadores de serviço com curriculum testado – têm uma relação direta com um problema geral da escrita acadêmica no Brasil.

E que os tradutores – quase sempre, para glosar as palavras de Derrida, melhores leitores e melhores escritores do que os demais profissionais das letras, como mostrariam vários exemplos que me eximo de nomear – sofrem das mesmas carências, em termos linguísticos, que afetam os demais escritores acadêmicos.

Portanto, creio que a formação do tradutor, como a formação do crítico, do historiador e do teórico da literatura, deveria ter três núcleos principais (além do estudo de línguas estrangeiras, claro): o estudo da tradição da norma linguística culta, que deveria conduzir não à crítica apenas, mas ao pleno domínio dessa tradição; o exercício da prosa demonstrativa, isto é, da construção e da articulação de argumentos, em aulas de redação especializada; e a escrita criativa, na qual o profissional se familiarizasse com os problemas linguísticos implicados na criação de um texto que almeja não à comunicação de conteúdos, mas à realização estética.

Ou seja, naquilo que o tradutor de ensaios tem de ter em comum com o escritor de ensaios ou com o professor de língua e literatura – isto é, na formação da sua capacidade linguística –, penso que o equilíbrio entre o conhecimento das normas do passado, a prática orientada da escrita argumentativa e a prática igualmente orientada da escrita criativa pode ser o caminho para minorar os problemas atualmente encontrados na prática editorial.

Sei que isto é pouco como conclusão de um texto que lida com um problema grave, ainda mais na dimensão em que o coloquei. Mas termino aqui este começo de reflexão, que espero continue nas conversas que se seguirão às falas, não só porque não posso falar mais, mas também porque, embora a conclusão seja simples e localizada num nível baixo, ela pode, se quem a ouvir dispuser de muita boa vontade e pouco preconceito invertido, abrir o caminho para uma discussão mais ampla e de impacto muito maior sobre a configuração da cultura linguística atual no Brasil.


[1] Mário de Andrade, Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1972. As citações provêm das páginas 34 e 35 desse volume.




terça-feira, 16 de abril de 2013

BUKOWSKI EM PORTUGUÊS





Poesia de Bukowski em português

 [Jornal 13]



Os 25 melhores poemas de Charles Bukowski foi um dos últimos trabalhos de Jorge Wanderley. É um bom livro. Lendo-o, impressiona por manter em português o mais característico da obra de Bukowski: a informalidade, o aparente desleixo de linguagem, o registro baixo que emerge de súbito e salta à cara do leitor, bem como o imprevisto lirismo que surpreende com o sinal oposto. Principalmente, ressalta o difícil equilíbrio desses registros, a combinação própria, que dá o sabor específico da poesia e também da melhor prosa de Bukowski.
Há muitas maneiras de avaliar uma tradução. E há mesmo, sobre tradução, muito debate e acirradas divisões em vertentes teóricas. E, como muitas vezes acontece, essas discussões alimentam não apenas revistas especializadas, mas ainda podem ramificar-se em importantes divisões acadêmicas que, em casos extremos, fundam, fendem ou fundem departamentos inteiros.
Sem querer disputar com os especialistas nem o jargão, nem a base de fundamentos ou de crenças, muito particularmente julgo que uma boa tradução é aquela que mais prescinde do original. Aquela na qual o tradutor encontra uma forma de dizer que basta por si mesma.
É claro que um bom livro de poemas traduzidos deve trazer, lado a lado, o texto de base e o texto traduzido. Isso funciona mais ou menos como uma garantia, um gesto de confiança e de generosidade. O leitor pode comparar, pode ler verso a verso em uma e outra língua, pode ler aos blocos, poemas inteiros, em sucessão. Se gostar da tradução, fica com ela; se não gostar, sempre tem ao lado o texto na língua em que foi primeiramente escrito.
Mas o que me parece o triunfo do tradutor é aquele momento no qual, depois de conferir, meio desconfiado, alguns tantos versos e poemas, e percebendo a propriedade ou a coerência das escolhas, o leitor percorre apenas o texto na sua própria língua, para ver como soa aquele poeta na língua que não era dele, mas que é a do leitor. Para ler, afinal, uma interpretação.
Nesse sentido, é uma alegria, para os amantes do velho Hank, tê-lo assim tão carinhosamente vertido para o português (e charmosamente editado, da capa ao miolo).
É certo que um exame atento pode levar a concluir que o Bukowski-Wanderley é mais homogêneo em termos de linguagem. Os coloquialismos e a imitação de linguagem oral, presente em vários versos dos poemas escolhidos, acabam recebendo uma veste mais padronizada. Não há violência linguística, nos textos de Wanderley. E em alguns momentos, a impressão é a de que a linguagem de Bukowski sofre mesmo alguma elevação de tom.
No geral, porém, a operação de leitura é coerente e produz um texto harmônico. Dá-se algo parecido a uma canção, quando é transposta de tom. A mudança é sensível na modulação, mas o resultado conserva o desenho das frases, e o conjunto soa bem.
Os pontos que poderiam ser objeto de maior reparo são poucos. Há algumas rimas a mais, o que dá ao texto às vezes um caráter bastante diferente do que tem em inglês. O caso mais notável é o da tradução destes versos: “I cannot rhyme. / I am too tired to / steal”. Em português, ficou assim: “não sei rimar. / estou cansado demais para / roubar.” Se a assonância rhyme/tired encontrou equivalente adequado em rimar/demais, a inclusão da palavra “roubar” torna o terceto uma contradição em termos, pois em português o poeta diz, rimando, que não vai rimar... O que é o mesmo que dizer que na nossa língua temos um verso sarcástico, enquanto em inglês temos um verso apenas plano.
Há uma oscilação na hora de traduzir, ao longo do livro, algumas palavras repetidas. O caso mais flagrante é o de uma palavra cara ao poeta, whore. No poema “Entrevistado por um ganhador do Guggenheim”, lemos “esse sul-americano ganhador de um Gugg / entrou aqui com a prostituta dele”; logo abaixo, a mesma palavra já é traduzida por “puta”, da mesma forma que no poema “Muito”, onde lemos “é como uma cave, isso aqui: / cheia de morcegos e putas”. Nos três casos, em inglês temos a mesma palavra. E a mim me parece claro que, no primeiro caso, a palavra deveria ser a mais chula, inclusive porque o ritmo ficaria mais adequado, pois em inglês o segundo verso é sensivelmente mais breve do que o primeiro; e em português, além de próximo da extensão do primeiro, resultou um verso de medida clássica, um sáfico, cujo efeito aqui parece pouco adequado.
É preciso considerar, na hora de fazer reparos, que as traduções talvez não tenham tido uma revisão final do autor. Uma última leitura talvez eliminasse, por exemplo, no belo “The last generation”, o que me parece um problema na tradução do verso “many others broken in victory”. Em português, ficou: “muitos outros falidos na vitória”. Como o título foi traduzido por “A geração falida”, cria-se, a meu ver, um problema com a utilização do mesmo termo português para “last” e “broken”, porque quem lesse o texto apenas em nossa língua tenderia a ler o verso acima como o centro de força do poema. O que não é verdade. Ao menos, não como seria se a palavra do título, que é um trocadilho com a denominação “lost generation”, também aparecesse nesse verso, junto com a palavra “vitória”. E, sem dúvida, uma releitura cuidadosa eliminaria uns poucos tropeços maiores, como o do verso “and she has been looking for a job”, de “Conversa às três e meia da madrugada”, que resultou num insustentável “e ela tem estado procurando emprego”... 
Quanto à escolha dos poemas, dada a vastidão da obra poética de Bukowski, não posso dizer muito. Wanderley recolheu os poemas que traduziu de três livros: uma seleção dos melhores poemas, publicada pela primeira vez em 1960, uma coletânea da primeira parte da década de oitenta e o volume The Last Night of the Earth Poems, de 1992. Por certo, a apresentação de apenas 25 poemas sob esse título valorativo é uma aposta arriscada. Como todas as apostas das antologias, é certo. Mas aqui, dada a exígua dimensão do conjunto, o peso e o risco da seleção dos “melhores” parecem muito grandes.
Num prefácio comovido, que apresenta o sentido desse livro na vida de quem o traduziu, Márcia Cavendish Wanderley explicita o princípio e a opção: “Jorge Wanderley viu no bardo marginal uma reprodução de si próprio, dividido entre o permitido e o proibido, essa linha tênue que nos persegue em vida, condenando-nos ao banal ou elevando-nos ao epifânico”.
É certo que quase tudo que li de Bukowski ressalta a epifania que brota da banalidade, da sujeira e do rebaixamento. Mas não em toda parte encontramos o momento de revelação do desejo de ternura, ainda que impossível, e a cedência ao humor como redenção parcial e afetiva, numa síntese precária. No mais das vezes, o texto de Bukowski cristaliza um momento de frustração absoluta, da entrega ao destino sem futuro nem elevação.
Mas os termos da dicotomia formulada no prefácio são adequados para compreender o movimento desta antologia. E se existe um critério a orientar a seleção, sem dúvida ele consiste na busca de poemas que operam mais claramente essa elevação ao epifânico. E por poemas nos quais o tom sentimental tenha um lugar importante.
É uma escolha. E sendo uma escolha derradeira, esse conjunto de traduções que se publica, póstumo, se deixa ler como um testamento e como uma consolação.



O livro: Márcia Cavendish Wanderley (org). Os 25 Melhores Poemas de Charles Bukowski. Edição Bilíngüe com tradução de Jorge Wanderley. Rio de Janeiro, Editora Bertrand Brasil, 2003.

Resenha publicada em Germina Literatura, em maio de 2004.