A
tradução do ponto de vista do editor
[texto lido em 11 de agosto de 2008, no II Simpósio de Tradução de Ensaio - UFSC
sobre o tópico que me foi dado: a tradução do ensaio]
sobre o tópico que me foi dado: a tradução do ensaio]
“Como
ousar falar de tradução diante de vocês
que, na consciência
vigilante que
têm dos imensos desafios,
e não somente
do destino da literatura,
fazem dessa tarefa sublime
e impossível o seu
desejo, sua
inquietude, seu
trabalho, seu
saber e sua arte? Como ousarei me anunciar diante de vocês quando me
reconheço, ao mesmo tempo, selvagem e inexperiente nesse campo? Se ouso abordar esse tema diante de vocês
é porque esta própria
falta de coragem,
a renúncia precoce
da qual falo
e de onde parto,
esta confissão de falência
diante da tradução,
esta foi sempre em
mim a outra
face de um
amor ciumento
e admirativo: paixão
por aqueles
que, endividando-se infinitamente
com ela,
apelam, amam, provocam e desafiam a tradução;
admiração por
aqueles e aquelas que
considero os únicos a saber
ler e escrever: as
tradutoras e tradutores.”
Assim se expressava e
se desculpava Jacques Derrida, ao iniciar uma
conferência no Encontro de Tradutores em
Arles – França – em 15
de novembro de 1998. E se ele assim
fazia, que poderia
eu aqui
fazer, sem
nenhuma modéstia afetada,
tendo do assunto um
conhecimento pedestre
e uma experiência pífia?
Portanto, o que quero fazer, com as palavras dele, é me
desculpar da temeridade de ter aceitado este convite, sem ser um especialista
no assunto e sem ter uma vivência significativa de tradução que pudesse
justificar a minha presença aqui. De fato, não sou estudioso da tradução, e, embora
tenha já traduzido textos avulsos e um único volume de prosa, não me considero
com direito ao nome de tradutor.
Já agora, tendo aceitado e estando aqui,
tenho de falar como
um leigo
e de tentar fazer o melhor, de forma também a não ofender os que me convidaram, acreditando que
eu pudesse ter
algo a dizer.
E vou fazê-lo, então, a partir
dos dois únicos
pontos de vista
que me
cabem.
O primeiro é o de leitor de traduções de ensaios – um leitor
convicto, pois, diferentemente da poesia, que prefiro ler na língua em que foi
escrita, prefiro ler os ensaios (como os romances) em português.
O segundo é o viés do editor de livros de ensaios traduzidos
– com base na experiência de quase 7 anos na direção da Editora da Unicamp e
na presidência do seu conselho editorial.
Antes, porém, de começar, queria dizer que não pude deixar de lembrar e lamentar, quando recebi este
convite, que
a pessoa certa
para representar aqui a Unicamp já
não está entre
nós. E que
por isso
deveria ao menos vir,
e vim, trazendo, como abertura da minha
fala neste evento
de tradução, um
texto traduzido por
ele e que
eu estava justamente
lendo, como editor,
quando surgiu o convite.
Refiro-me, é claro, a Paulo Ottoni,
falecido há pouco tempo,
em plena
maturidade e produtividade intelectual, que
pouco antes
de morrer deixou na Editora
um volume
com a tradução
de três textos
de Derrida sobre ou
à volta da tradução.
De modo que, antes de tudo, queria deixar aqui estas
palavras de lembrança e dedicar à sua memória o que possa haver de êxito nesta
minha incursão pelo terreno que sempre foi o dele.
Dito isso, queria agora trazer a questão da tradução para um
nível que, embora talvez seja elementar demais para vocês, é o nível no qual
posso me mover com menos embaraço.
E, para dar início, queria lembrar agora um texto de Mário
de Andrade, publicado em 26 de março de 1939. Trata-se de “Feitos em França”.
Esse breve artigo
traz uma questão que
vale a pena considerar, quando se
fala de tradução.
Mário aí nos
conta a sua reação ao ler uma
“Anthologie de quelques conteurs brésiliens”, que
o impressionou por lhe
parecer um volume uniformemente
bom. Ora,
sucede que ele
conhecia boa parte daqueles textos na língua
em que
foram escritos, isto
é, na nossa. Daí o seu
espanto, que
ele registra
assim: “Me
surpreendi encontrando certas páginas, minhas
velhas conhecidas, que eu sempre
tivera por medíocres
ou mesmo
integralmente ruins.
Pois não é que essas páginas,
vindas agora
refeitas de França, me agradavam
lerdamente, algumas chegaram a ser francamente boas!”.
Na sequência, Mário
aborda uma questão que
interessa a nós todos
ainda hoje:
de seu ponto
de vista – e essa é a sua explicação para o desnível entre os contos
na língua de origem
e no francês –, a língua
francesa, diferentemente da portuguesa, seria
uma língua culta
– ou seja, uma língua
organizada, ao longo do tempo, de modo a
ter um padrão culto,
uma forma linguística literária bem definida.
A consequência seria que,
na França, segundo Mário, “toda a gente que escreve [...] escreve bem,
e um principiante
pouco se distingue ou
nada, lá,
dos veteranos, quanto
à felicidade do bem
dizer”. Já os
escritores brasileiros,
segundo Mário, têm de ser
“estilistas”, ou
melhor, estão condenados a ser estilistas, isto é, “criadores
de uma expressão linguística
que lhes
é peculiar”.[1]
Retenhamos, por enquanto, desse texto,
a ideia de que
a tradução acompanha o desnível entre
as línguas – ou
talvez fosse melhor
dizer: a qualidade
da tradução também
se determina pelo que
ele chama
de “cultura da língua”.
Ou ainda,
que a tradução
de um texto
de uma língua menos
padronizada para
uma mais padronizada
(e vice-versa, poderíamos supor)
produz uma alteração qualitativa do texto traduzido, independentemente
daquilo que possa ser
a vontade ou
a competência do tradutor.
Mário de Andrade voltou a tratar
do problema do padrão linguístico num texto
de 1940, intitulado “A língua viva”, no qual
sai em defesa
da “língua culta”.
O argumento começa
pela comparação do papel
da língua culta
com o do latim,
nas eras clássicas: uma “língua morta
estratificada”, instrumento de comunicação transregional e transnacional.
A estratificação da língua culta, desse ponto de vista, é uma necessidade
e uma grande vantagem
para a circulação
do conhecimento. A seguir,
Mário opera uma divisão na língua
culta: a artística
e a científica. A primeira
submeteria a estratificação às necessidades
da expressão; a segunda mantê-la-ia em nome da finalidade universalista
da comunicação.
Ou seja, para Mário de Andrade o desafio
ao escritor brasileiro
era duplo: por um lado, ele não possuía à sua
disposição um
corpo de linguagem
culta padronizada
e eficaz enquanto
meio de comunicação
científica; uma das suas
missões era
construir esse
instrumento; mas,
ao mesmo tempo,
o imperativo estético
permitia ou mesmo
exigia o seu afrontamento, em nome da expressão individual
do artista.
No nível da convenção
da norma, temos de lembrar,
neste momento do comentário,
que houve um
intenso e bem-sucedido trabalho
de sistematização da língua culta, no Brasil, no final
do século XIX. O resultado
foi o que hoje
chamamos pejorativamente de estilo bacharelesco ou,
muitas vezes, também
pejorativamente, de estilo
parnasiano. Embora
esse resultado
esteja longe de poder
ser reduzido a isso,
como mostra
a leitura da obra
de Machado de Assis – que se empenhou pelo academicismo e pela
construção de uma norma linguística equilibrada e, do ponto
de vista da evolução
do português do Brasil (e não
só), de viés claramente
conservador.
O curioso e importante a notar é que foi o Modernismo
– não obstante
Mário sofresse a angústia da falta
de norma linguística
de cultura –, ao triunfar
de modo amplo
pelos anos
de 1950, que promoveu o descrédito ou a
destruição daquele padrão
oitocentista, que se espraiou pelas
primeiras décadas do século XX e até
além do próprio
Modernismo. As necessidades
da universalização do ensino e a má formação dos professores,
aliada a um
fator que
logo exporei, fizeram o resto.
A questão é complexa
e não cabe aqui.
Mas o resultado
geral, em
minha opinião,
é que não
temos ainda hoje
um padrão
eficiente e bem
descrito de língua culta.
Ou, ao menos,
o nosso padrão
são vários
padrões, e a forma
escrita ainda
tem variações muito grandes
conforme o gênero
do discurso, a região
ou o público
a que se destina.
Nem fomos tampouco capazes de criar instrumentais
interessantes e competentes para estabelecer, manter e difundir um novo padrão.
De fato, os livros de orientação gramatical e estilística
correntes hoje são os manuais de redação de grandes jornais.
São eles os que vejo não só com alunos e colegas de
faculdade – ou seja, com produtores de textos ensaísticos – mas também com
preparadores e revisores de texto.
E a conjugação da necessidade ampla de orientação linguística com a omissão dos acadêmicos no debate e no atendimento a essa
necessidade dá origem a fenômenos curiosos como o conhecido Professor Pasquale
– espécie de autoajuda ou fastfood do
padrão culto.
Como editor, tentei já
montar uma equipe de acadêmicos para compor um volume ou coleção de livros
que fosse útil
no sentido de criar,
sem facilitações, um
conceito e um
modelo do que
seja a linguagem culta
padrão brasileira,
ou, para simplificar, do que seja
ou deva
ser a linguagem
adequada ao livro acadêmico.
Não consegui. É certo
que trabalho
numa universidade que
não tem cursos
de língua portuguesa, nem de estilística
da língua portuguesa, nem de filologia.
Uma universidade na qual
a norma é tratada
quase exclusivamente,
de uma perspectiva que
me parece simplista, como emanação ou exercício do
preconceito lingüístico.
Uma universidade, enfim,
na qual a tradição
normativa é um objeto
de ataque mais
do que de estudo.
E que tem ilustres
professores que
julgam que o padrão
do português culto
pode ser descrito a partir
da linguagem dos grandes
jornais de circulação
diária.
Mesmo tendo corrido o risco da dispersão, chego agora ao ponto
que interessa, no que diz respeito à tradução do ensaio. Do meu ponto de vista
pedestre, pelo qual já me desculpei acima, ouso dizer que uma das grandes
dificuldades do tradutor é encontrar um nível de formalização linguística que
lhe permita combinar a atualidade que se espera de um texto produzido hoje com
a exigência de padrão linguístico que permita a comunicabilidade do texto ao
longo do tempo e do espaço.
O que é o mesmo que dizer que o tradutor,
como qualquer
outro escritor
brasileiro, se não
tem à sua disposição
um padrão
de prosa culta,
muito menos
tem à sua disposição
um padrão
de prosa culta
reflexiva. E é dizer ainda que, por conta dessa ausência de padrão
definido, o tradutor precisa ser também, de alguma maneira,
nos termos
de Mário, “um estilista”.
E, no entanto, basta uma leitura rápida dos Sermões do Padre António Vieira para
ter uma boa ideia das possibilidades pouco exploradas da língua. E, em registro
mais moderno, poderia referir aqui a prosa reflexiva de Fernando Pessoa, onde um
tradutor ou um ensaísta pode encontrar muitas sugestões para a construção de um
texto de prosa sofisticada, do ponto de vista argumentativo.
Mas deixemos ainda um momento a questão da tradução em
suspenso (ela que aqui
está sempre em
suspenso ou entre
parênteses, mas
não só
porque seja a questão
que domino menos),
e pensemos ainda um
segundo na da língua
culta ou
literária em
geral.
Nesse caso, queria ainda considerar as consequências menores,
mas nem
por isso
menos terríveis, da ausência
de um padrão
culto e da desatenção
com esse
padrão na escola
fundamental, média
e universitária. E então,
como poderia
não falar
das dificuldades cotidianas que se podem constatar nas construções sintáticas elementares
em textos
acadêmicos? Nas deficiências
da pontuação ou
no falso terror
da ainda famigerada
colocação de pronomes?
Também não
preciso referir
aqui a dificuldade,
presente em teses e dissertações,
de concatenar sintática
e logicamente as proposições, de modo que
exponham com clareza
oposições, modalizem agudamente os enunciados,
encadeiem de forma convincente
os argumentos. E tampouco
precisaria talvez registrar
que se tornou tão
pouco comum
encontrar um
aluno de mestrado
ou mesmo
doutorado em
Letras que
escreva com elegância
e correção, que
já se ouvem frequentemente
elogios, na arguição
do trabalho, à eventual
correção da escrita
do candidato – como
se isso, nesse nível
de estudos, fosse um
mérito singular
e não um
pré-requisito comum!
(E já agora
aproveito este momento
para homenagear um profissional
relativamente obscuro,
mas cada
dia mais
fundamental e difícil
de encontrar – o herói
da resistência da norma:
o preparador e revisor
de textos – um
profissional que
é também, de certa
forma, um
tradutor, operando a delicada conversão e ajuste
da língua informal
para o indefinido e até agora problemático padrão
da língua ou
das línguas do livro).
Voltando uma última vez ao tema
desta mesa, o que
quero dizer é que
as dificuldades que
temos de encontrar bons
tradutores de ensaios – ou, ao menos, um bom nível médio entre os prestadores de serviço
com curriculum
testado – têm uma relação direta com um problema geral da escrita
acadêmica no Brasil.
E que os tradutores – quase sempre, para glosar as palavras
de Derrida, melhores leitores e melhores escritores do que os demais
profissionais das letras, como mostrariam vários exemplos que me eximo de
nomear – sofrem das mesmas carências, em termos linguísticos, que afetam os
demais escritores acadêmicos.
Portanto, creio que a formação
do tradutor, como a formação
do crítico, do historiador e do teórico da literatura,
deveria ter três
núcleos principais
(além do estudo
de línguas estrangeiras, claro): o estudo
da tradição da norma linguística culta,
que deveria conduzir
não à crítica
apenas, mas
ao pleno domínio
dessa tradição; o exercício
da prosa demonstrativa,
isto é, da construção
e da articulação de argumentos,
em aulas
de redação especializada; e a escrita criativa,
na qual o profissional
se familiarizasse com os problemas linguísticos
implicados na criação de um texto que almeja não
à comunicação de conteúdos,
mas à realização
estética.
Ou seja, naquilo que o tradutor de ensaios tem de ter em
comum com o escritor de ensaios ou com o professor de língua e literatura –
isto é, na formação da sua capacidade linguística –, penso que o equilíbrio
entre o conhecimento das normas do passado, a prática orientada da escrita
argumentativa e a prática igualmente orientada da escrita criativa pode ser o
caminho para minorar os problemas atualmente encontrados na prática editorial.
Sei que isto é pouco como conclusão
de um texto
que lida
com um
problema grave,
ainda mais
na dimensão em
que o coloquei. Mas
termino aqui este
começo de reflexão,
que espero continue nas conversas que
se seguirão às falas, não só porque não
posso falar mais,
mas também
porque, embora
a conclusão seja simples
e localizada num nível baixo,
ela pode, se quem
a ouvir dispuser de muita
boa vontade e pouco
preconceito invertido, abrir
o caminho para
uma discussão mais
ampla e de impacto
muito maior
sobre a configuração
da cultura linguística
atual no Brasil.
[1]
Mário de Andrade, Aspectos da literatura brasileira. São
Paulo: Martins, 1972. As citações provêm
das páginas 34 e 35 desse volume.