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domingo, 10 de novembro de 2024

Haicai no Brasil*

 

“apenasmente discípulo fiel de Bashô”, Goga (1)

 


No canto número 12 da Odisseia, vemos Ulisses ter de tomar uma dura decisão. Ele precisa passar pelo estreito de Messina, que divide a Sicília da Península Italiana. Circe, a feiticeira que se apaixonou por ele, explica a situação. De um lado do estreito vive o monstro Cila. A história de Cila não vem ao caso aqui. Basta saber que ela foi uma bela ninfa, transformada em monstro por uma feiticeira furiosa. O que realmente importa é que Cila atacava os navios, devorando os marinheiros, quando eles passavam muito perto do rochedo onde ela vivia. Mas por que algum navio passaria junto a ela, se o perigo era tão grande? Porque do outro lado do estreito estava um monstro ainda pior: Caríbdis, que de tanto em tanto sugava para uma gruta profunda as águas do mar, para depois cuspi-las. Com isso destruía por completo as embarcações.

Ulisses foi aconselhado por Circe a evitar Caríbdis e ceder parte da tripulação a Cila, o que ele fez, perdendo 6 homens, devorados pelas 6 cabeças do monstro. Desde a Odisseia, “andar entre Cila e Caríbdis” é uma metáfora para os perigos de uma travessia na qual haverá necessariamente perdas e/ou desastres. 

Eu poderia ter escolhido uma fábula japonesa de mesmo sentido, se conhecesse uma. Como não conheço, vali-me da nossa própria tradição para falar de algo que me parece importante numa outra travessia: a do haicai japonês para o Brasil, passando pelo estreito do idioma, entre o rochedo da forma fixa e o sorvedouro do exotismo superficial.

Mas antes de prosseguir, gostaria de dizer o que me parece de fato importante nessa navegação, nessa odisseia do haicai, que saiu do Japão quando terminou o isolacionismo da era Tokugawa e veio até a grande floração dos grêmios espalhados pelo Brasil, passando pela orientalização da cultura pop na segunda metade do século passado.

As perguntas que sempre fiz a mim mesmo, desde quando tomei contato com o haicai japonês foram estas: O que há de novo no haicai? O que dele valeria a pena aproveitar e incorporar na nossa própria tradição? E daí a pergunta final: vale a pena fazer haicai em português ou em outra língua ocidental? Se valer, o que a experiência mostra? Quais os frutos?

Na aclimatação do haicai, a primeira questão que se apresentou foi a forma exterior do texto, a sua versificação. A convenção adotada foi que o haicai em português seria um terceto composto por um verso de cinco sílabas, um verso de sete sílabas e um último de cinco. Trata-se de uma convenção que não leva em conta que em japonês o haicai não é composto por 17 sílabas, mas por 17 moras, isto é, 17 unidades de tempo. Uma nasal, por exemplo, conta duas unidades. Em português, as unidades de medida são as sílabas, pronunciadas à maneira normal, com as contrações da oralização. E só se contam até a última sílaba forte, ou tônica. 

Para muitos, isso define o haicai: um terceto de 5-7-5 sílabas contadas à nossa maneira. Mas seria isso que ganharíamos com a importação e aclimatação do haicai? Um terceto sem rima nem títulos, com versos contados à maneira portuguesa e de extensão diversa? Não parece valer a pena...

Para um bom poeta como Guilherme de Almeida não valia. Tanto que ele criou dois procedimentos em todos os seus haicais: um esquema interessante de rimas obrigatórias (uma unindo os versos primeiro e terceiro, outra interna ao verso segundo) e um título.

Já para aqueles que se dedicam ao haicai de molde tradicional, o terceto continua sem rima nem título. Para a maior parte dos praticantes, o traço formal que o caracterizaria como haicai é a composição por justaposição ou por tópico-e-comentário. Usualmente, o primeiro ou o último verso constitui uma notação e os dois outros constituem uma frase só. Na maior parte dos casos, a contraposição é feita entre uma anotação genérica e uma que se refere a um dado momento ou sensação precisa. E o registro do momento preciso na sucessão das estações, por meio de uma palavra convencional, é outra determinação formal desse tipo de haicai.

Isso é o que temos, formalmente. Então eu pergunto, como sempre me perguntei: é só isso o que queremos importar, quando nos pomos a fazer haicai em português?

Não creio. Penso que há algo mais no haicai que nos chama a atenção e nos faz querer incorporá-lo.

Guilherme de Almeida apontou esse algo mais, quando definiu o haicai desta maneira: “o haikai é a anotação poética e sincera de um momento de elite”. (2) E frisou um ponto importante ao particularizar: “anotação breve e poética. E pela sua qualidade de ser poesia espiritual, sincera, não pode deixar de ser feita no momento: no verão não se faz um haikai da primavera. Além do mais, é de um momento de elite.”

Há aqui dois pontos a destacar. O primeiro é que o haicai é uma “anotação”. Guilherme de Almeida captou bem esse lado do haicai japonês: um registro, uma anotação, algo feito no momento. O segundo é que o que é anotado é um momento especial. Ele diz “de elite” como quem diz: um momento de melhor qualidade. E a questão da qualidade aparece logo ligada ao espiritual. Haicai é anotação de um momento especial, singular, e é anotação sincera, imediata.

Nisso, ele está de acordo com a mais importante atitude definida pela escola de Bashô, que é aquela que diz que quando se está embebido de haicai, o espírito seleciona da realidade externa aquilo que se casa com o momento, e a poesia flui. Se fosse na linguagem de T. S. Eliot, diríamos que o haicai é a composição que se faz pela anotação imediata dos correlatos objetivos.

Do meu ponto de vista, estamos agora já em plena travessia do Japão para o Brasil, pois já temos algo novo: anotação imediata de um momento espiritual, estrutura bipartida do poema composto por justaposição, e pertencimento a uma estação do ano (que Guilherme de Almeida muito corretamente vincula à sinceridade e imediatez da anotação)

Algumas décadas depois de Guilherme de Almeida, vimos a orientalização da cultura pop no mundo todo. Desde a Califórnia, o Budismo zen se espalhou pelo Ocidente. D. T. Suzuki e Alan Watts vincularam o haicai ao zen, no que foram precedidos pela figura maior na difusão do haicai no Ocidente. R. H. Blyth.

Blyth impregnou a contracultura americana e derivada. No icônico romance Vagabundos iluminados, de 1958, Jack Kerouac o menciona como leitura inspiradora. Entre nós, Paulo Leminski dizia que por mais de 10 anos o livro de Blyth tinha permanecido como seu livro de cabeceira.

Conhecendo profundamente o japonês, Blyth não se preocupou, nas traduções, com a métrica. Centrou sua atenção na atitude espiritual – que ele denominava Zen – e nos sentidos que derivavam da composição por justaposição.

No Brasil, depois de Guilherme de Almeida, dois poetas responderam pela divulgação do haicai. E tiveram o mérito de fazer do haicai um interesse geral. 

O primeiro foi Millôr Fernandes, que denominou haicai um terceto sem métrica, sem justaposição e sem palavra de estação. Seu haicai reside inteiramente na “sacada”, na anotação de um momento de elite, se nessa definição incluirmos a percepção humorística.

O segundo foi o já mencionado Paulo Leminski, que também praticou um haicai sem determinação formal, igualmente centrado na “sacada”, na esteira de Millôr. Mas nele a “sacada” não é mais anotação de momento de elite, como ainda é, em grande medida, para Millôr; mas anotação “esperta”, animada, que pode se sustentar apenas num trocadilho, num jogo de palavras, numa alusão política ou numa sonoridade interessante. Nos seus melhores haicais, entretanto, a “sacada” busca também um alcance existencial, almeja a algum tipo de iluminação.

Outras perspectivas também sopraram o barco do haicai entre nós. 

Uma delas foi a formalista, herdada da aproximação de Haroldo de Campos ao haicai. Para Haroldo, informado pelo trabalho de Fenollosa sobre o ideograma chinês, o haicai é basicamente ideogramático. Sua tradução busca trazer à superfície os sentidos insinuados ou entrevistos nos elementos que constituem os kanjis. Essa perspectiva me parece menos interessante, principalmente porque o uso de kanji ou hiragana na anotação do poema depende seja de quem anota o poema dito pelo poeta, seja da necessidade formal de composição do quadro em que o haicai surge, em diálogo com a imagem. Finalmente, em parte oriunda da mesma fonte, uma pressuposição que se tornou muito difundida. Se, para Pound, poesia é condensação, então o haicai seria o suprassumo da poesia, porque ele seria essencialmente síntese, no sentido de dizer o máximo com o mínimo – e nisso os kanjis desempenhariam um papel central. Mais ou menos como uma fórmula física como E = MCsintetiza toda uma dedução longa.

De minha parte, como disse, não é a mais interessante, pois perde a diferença, perde aquilo que vem de fora do nosso universo referencial, a essência do exotismo como percepção dos nossos limites, como experiência radical de alteridade. 

Com Leminski, Watts, Suzuki e Blyth, eu acredito que se destaca algo que o haicai de Bashô pressupõe e nos ensina, como prática coletiva ou individual: que a poesia pode ser um caminho de desenvolvimento espiritual. Ora, para isso, como vemos nos livros da escola de Bashô, é preciso um intenso treinamento, seja da forma, seja da atitude. A forma pode ter interesse, mas é a atitude que me encanta mais: o apagamento do “eu”, a simplicidade, a disposição generosa frente ao mundo. Desse ponto de vista, haicai (para repetir uma fórmula criada há tempos) não é a arte de dizer o máximo com o mínimo, mas sim a arte de, com o mínimo, produzir o suficiente para a integração do leitor no texto e na experiência que o originou.

E aqui voltamos a Guilherme de Almeida: anotação sincera de um momento de elite. E voltamos ao começo desta apresentação, à metáfora com que abri estas reflexões. Porque de fato eu entendo que o haicai brasileiro navega ainda hoje, como navegou desde sempre, entre Cila e Caríbdis. 

O monstro mais perigoso, do meu ponto de vista, é a obsessão da forma fixa. Digo isso porque muitas vezes a obsessão do 5-7-5 termina por descuidar ou mesmo por matar uma parte importantíssima da tripulação do navio: em nome da métrica às vezes se sacrifica a naturalidade de expressão, com supressão de artigos e formação de frases que parecem produzidas por um falante de outra língua; sacrifica-se também frequentemente a anotação plena, porque a descrição pode exigir mais sílabas, ou mesmo, em direção contrária, a economia da linguagem, porque se a descrição ou o registro é breve o poeta não deveria se ver obrigado a preencher a medida. 

O mesmo perigo de formalismo, eu creio, se encontra quando se tem exagerada obsessão pelo kigo. No Brasil não temos tradição generalizada de palavras de estação, porque o país é muito vasto em latitude e também em longitude. Por exemplo: o que é inverno no Amazonas e o que é inverno em Santa Catarina? Como é o registro das chuvas e dos ventos no Pantanal, no interior de São Paulo, na região de Pelotas ou no Nordeste? E as festas populares? Sem a preparação adequada – trabalho ainda em curso, cujo primeiro passo foi dado por Goga e Teruko Oda – e sem vincular decididamente o kigo a um clima espiritual ou sensação bem definida, o haicai brasileiro poder perder mais esse tripulante tão importante (o seu piloto, por assim dizer), que é a imediaticidade da notação, pois ninguém anota espontaneamente um nome científico ou pouco conhecido de uma árvore ou flor, e é difícil fazer do centro do poema um fenômeno sazonal desconhecido da maior parte dos leitores. Mas se essa é Cila, devemos notar que mesmo com tripulantes a menos, o barco do haicai tem navegado muitas milhas, de norte a sul, pois todos os anos são publicados muitos volumes. A quantidade, entretanto, não nos deve esquecer do destino que queremos para esse barco, e até onde gostaríamos de chegar.

Do outro lado do estreito está Caríbdis, que identifiquei com o exotismo superficial. Ali reside, por exemplo, a arrogância de tantos iniciantes que se arvoram o direito de chamar de haicai o que nada tem a ver com o haicai japonês. “Haicai é o que eu chamo de haicai” – dirá essa Caríbdis, ansiosa por auferir os lucros do nome sem o ônus do esforço espiritual. Mas há também outra, que é a que reduz o haicai a pura “sacada”, a puro “lance zen”. Suas vítimas, aqui também, são a naturalidade da expressão, e principalmente a modéstia, a contenção que caracterizam o haicai da escola de Bashô. 

Mas chega de metáforas, de Cila e de Caríbdis. O barco do haicai não afundou no redemoinho, nem sua tripulação foi dizimada. Continuou a travessia desde o Japão para a língua portuguesa e a cultura do Brasil. Somos a prova, e somos a tripulação atual. Algumas partes de nós foram, em algum momento – e digo isso tomando a mim mesmo como exemplo –, ameaçadas por um daqueles monstros. Nossa espontaneidade e nosso treinamento espiritual foram às vezes ameaçados pela vaidade de ser “autor” ou pela vaidade de acreditar que só nós temos a chave para o cofre do haicai. Mas o esforço prevalece e nos reunimos em busca de apoio mútuo e ensinamento, em muitos grêmios, concursos e reuniões como esta.

Quanto a mim, o destino e a carga preciosa que o barco do haicai nos traz são claros. Seu destino é a nossa consciência, nossa forma de usar a linguagem, de estar no mundo e mesmo de estar na linguagem. Sua carga valiosa é o exercício da modéstia, a postulação da arte como caminho de vida, a radicação da poesia na experiência sensória e o ideal de produzir um poderoso efeito estético e emocional pelo agenciamento dos correlatos objetivos, pela seleção daquilo que o espírito, embebido de haicai, recorta da realidade exterior e faz confluir para a forma do verso.

Se eu fosse ousado o suficiente, comporia um haicai para encerrar esta fala com um elogio do registro objetivo do aqui-e-agora como razão suficiente para essa poesia que nos fascina. 

Como não sou, faço falar por mim um conhecido haicai de Issa:

 

 

Apenas estando aqui,

Estou aqui – 

E a neve cai.

 

 

 

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* texto lido na Bunkyo, no dia 09/11/2024 

Referências:


(1)   Goga. Frase final no documentário “Goga, discípulo fiel de Bashô”

Disponível em: https://www.kakinet.com/caqui/gogav.shtml#parte2


(2)    Guilherme de Almeida. “Haicai – poesia de estação”. Entrevista concedida a Genésio Pereira Filho em 29 de setembro de 1941.

Reproduzida em: https://www.kakinet.com/caqui/gaen.htm


quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

A voz dos patos

 Lendo um diário de Bashô, deparo com um haikai bem conhecido entre nós, principalmente depois da tradução que dele fez Octavio Paz.

É este:


umi kurete

kamo no koe

honoka ni shiroshi


Valeria a pena, talvez, para os fixados na métrica, dizer que nesse haikai a forma usual não é respeitada, pois em vez de 5-7-5 moras (ou sílabas, para facilitar a referência), temos 5-5-7. E assegurar-lhes que não há como dividi-lo de outra forma. Mas o ponto interessante é que esses versos têm sido lidos entre nós como exemplo de sinestesia. Assim: o mar está escurecendo - a voz do(s) pato(s) é fracamente branca.

É uma leitura possível, mas não é a única.

Os defensores modernos argumentam que é da genialidade do poeta que deriva a sinestesia, que identificam como o ponto mais relevante do poema.

Já os comentadores mais sisudos e tradicionais não abdicam do caráter denotativo, objetivo, como um efeito preferível a esse.

No caso, a leitura seria: o mar está escurecendo – a voz do(s) pato(s) enfraquece na brancura. A brancura seria o aspecto pálido ou enevoado da cena, que é um frio entardecer.

terça-feira, 15 de novembro de 2022

Mais um pouco de haikai (2) - ideogramas, haiga etc

 Acabo de postar duas figuras. São dois haiga, isto é, haikais acompanhados de desenhos. Por conta de textos como o de Fenollosa, muitos de nós estamos acostumados a pensar que a caligrafia de alguma forma revela o lado pictórico do ideograma. Ou que, para dizer de uma forma familiar, ela revele os harmônicos, ou seja, os componentes ideogramáticos comuns que integram várias palavras.

Entretanto, a arte de caligrafar me parece muito mais sutil e complexa. Especialmente em haikai.
É que em japonês o calígrafo pode escolher entre a grafia "chinesa", isto é, "ideogramática" (kanji) e grafia silábica. E a escolha pode ser ditada ou por conveniência e equilíbrio da página, ou por alguma outra razão, como a seguir tento mostrar.
Ao mesmo tempo, o caráter "desmanchado" da grafia é uma arte. Não é o desenho, a consecução de cada traço que importa, mas o ritmo, o movimento que a gente faz com o pincel, a direção de cada um dos traços que constituem o kanji.
Além disso, o tamanho de cada letra, a força com que é traçada, a quantidade de tinta, tudo isso produz efeitos de sentido muito além da representação pictórica que nos acostumamos a imaginar na escrita japonesa.
Nas figuras que postei temos, num caso, um haiga de Bashô. É o que tem o desenho de flores.
Seu texto diz:
asagao ni ware wa meshi kû oto kana
junto aos bons-dias eu sou um homem que toma refeição – ah!
É um poema que se entende facilmente, pois alude ao lado errante e frugal da vida do poeta, que dorme ao relento ou sai para a caminhada muito cedo. O ponto mais sugestivo da caligrafia, em minha opinião, é a forma como o poeta grafou meshi (comida). Ele poderia ter escolhido um caractere chinês, um kanji, mas escolheu grafia silábica. Poderia ter escrito de modo "normal" a palavra, mas juntou as duas sílabas e as grafou desmanchando a segunda, que mal termina em gancho, como na forma impressa.
Já no outro, da libélula, de Kempû, diz assim:
tonbô ya mizu wo nabaeru yúgeshiki
a libélula inclina-se sobre a água – cena do anoitecer
Aqui, o interessante, do meu ponto de vista, é a grafia da palavra água, em kanji (ideograma). É a representação de três fios de água correndo, como aprendemos em Fenollosa. Mas neste caaso está desenhada de tal forma que, com pouco esforço, vê-se nela algo como o reflexo do inseto sobre a lâmina de água.





Haiga - poesia + imagem

Enquanto escrevia o último post, lembrei-me deste haiga (combinação de desenho e haikai). Creio que todo admirador da arte conhece este haikai de Bashô: kare eda ni karasu tomarikeri no aki no kure.
Já o comentei várias vezes, inclusive por conta do fato de que se trata de um poema que excede o número padrão de durações por segmento (durações, moras, que aqui denominaremos, por comodidade, sílabas): kare eda ni – 5 sílabas; karasu no tomarikeri – 9 sílabas; aki no kure – 5 sílabas.
A tradução ao pé da letra seria: no ramo seco o corvo acabou de pousar – entardecer (ou: final) de outono.
Ao longo dos anos, quando apresentei esse haikai em cursos e palestras, percebi que o corvo, essa ave sombria que muitos de nós só conhecemos a partir do poema de Poe, o ramo seco, o entardecer – tudo isso terminava por exaltar a imaginação romântica e carregar o quadro de tintas dramáticas.
Para muitos, o haiga, que traz caligrafia de Bashô e desenho de um seu discípulo chamado Morikawa Kyoriku, tinha o efeito de anticlímax. Era chocante o contraste entre o que imaginaram e o desenho discreto, com aquele passarinho amuado e ainda por cima retratado de perfil, quase de costas. Mas não há como fugir: Bashô deve ter aprovado, ou não escreveria o haikai no desenho de Kyoriku.
Mas há outro haiga, desta vez com desenho e caligrafia do próprio Bashô, que só conheci depois e no qual os efeitos de anticlímax que acabo de descrever são ainda mais intensos. É o que está em qualidade pior de imagem e em preto e branco, abaixo.

Não sei se a forma como conduzi a conversa naquelas ocasiões fez com que vissem a beleza que me impressionava, tanto no haikai, quanto no desenho. Para mim, a melancolia é mais intensa quanto mais minimalista o verso, afastado justamente qualquer aspecto dramático ou sentimental. Na verdade, talvez nem mesmo devesse falar em melancolia a propósito desse haikai. Ele apenas nos diz que as coisas são como são; o ritmo das estações é inapelável; o corvo que acaba de pousar num galho é apenas um corvo pousado num galho. E, no entanto, que belo retrato do clima próprio do final de outono, quando o estado geral da natureza sugere recolhimento, preparação para o inverno que se aproxima e começa por se indicar no galho seco. Já o corvo, sempre barulhento e agitado, surge no desenho bastante encolhido. E nada se diz sobre seu típico e contínuo crocitar. Apenas que ele acabou de pousar ali.
A propósito, há um outro haikai que vale a pena trazer à baila. Este, de Kishú:
Até mesmo o corvo
Passa em silêncio —
Entardecer de outono.

Comparando os dois haikais, o de Bashô me parece mais impressionante. À primeira leitura, o de Kishú pode até parecer melhor, porque a cena tem movimento e o sentido é óbvio. Já no de Bashô tudo está reduzido ao mínimo. Por isso, não é difícil ver na cena do corvo que acaba de pousar no galho seco uma figura do outono, ou mesmo do inverno que se anuncia. No caso do haikai de Kishú, o entardecer de outono é um enquadramento sazonal e uma explicação, por assim dizer. No de Bashô é também um enquadramento, claro, mas o haikai não tem nada de explicativo. A cena se torna um símbolo (ou mesmo, forçando um pouco a barra: uma metáfora) do outono que termina e por isso desperta em nós o mesmo tipo de sentimento ou disposição de espírito que aquele preciso momento do ciclo natural. 






Por que haikai?

 

Publiquei estes textos ao longo do mês de novembro (2022) na minha página do Facebook. Como lá a leitura sequencial termina por ser difícil, postei a sequência toda aqui.

 

 

Parte 1/5

 

Um amigo me sugere escrever aqui sobre a origem e o sentido do meu interesse persistente no haikai japonês. Creio que já escrevi sobre isso. Mas não faz mal. As horas de convalescença são longas. O esforço concentrado para um novo ensaio ainda é impossível. Mas expedição na memória é agradável, quando não é penosa. 

 

Os velhos devem ser exploradores / Aqui e ali não importa / Devemos estar parados e ainda em movimento / Em outra intensidade / Para uma nova união, uma comunhão mais profunda / Através da fria escuridão e da desolação vazia,/ A onda chora, o vento chora, as vastas águas/ Do petrel e do delfim./ No meu fim está o meu começo.

 

Assim escreveu Eliot num dos poemas de que mais gosto e que me ocorre agora, ao recordar os primeiros passos no caminho do haikai.

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No caldo contracultural dos anos de 1960, o haikai não era para mim haikai. Era algo que vinha em livrinhos como “A sabedoria do Oriente”, ou outros trabalhos do tipo. 

O Oriente, naquela época, atraía não só os jovens. Meu pai me deu, quando ainda menino, um livro em dois volumes, organizado por Lin Yutang: “A sabedoria da China e da Índia. Até hoje os tenho na estante, perfeitos nas suas capas duras que resistiram a leituras e mudanças, desde meados dos anos de 1960.

Ali pude ter o primeiro contato com o budismo e com aquilo que o título resume. Na sequência, fui descobrindo primeiro o lado “religioso”, em livros sobre taoísmo e budismo. Depois, o linguístico e o poético.

Ora, desde antes de começar os estudos de graduação me interessava a poesia, que praticava. Mas no começo dos anos de 1970 a leitura de uma antologia de Ezra Pound, bem como do livro de Haroldo de Campos, “A arte no horizonte do provável”, pôs-me em contato com um desafio sedutor: entender o que, afinal, era a escrita ideogramática numa língua em que ela era utilizada de modo geral. O haikai não era ainda um objetivo. Vinha no bojo de algo mais amplo.

 

Passou a ser um interesse central apenas quando Haquira Osakabe, sabendo do meu interesse pelo assunto, emprestou-me um livro em dois volumes: “A history of haiku”, de R. H. Blyth. Ali eu pude ver, além das versões para o inglês e de vasta exposição, a grafia original, com os ideogramas entremeados ao silabário.

Decidi-me, então, a compreender melhor tanto a escrita, quanto a poética.

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Em Campinas havia um templo budista ou taoísta (já não me lembro). E foi para lá que me dirigi, na intenção de estudar chinês. 

Não resisti a duas semanas de aulas. Eu queria entender o ideograma, mas me vi envolvido na confusão dos tantos tons, que me pareciam indecifráveis, e abandonei o estudo mal tendo aprendido a dizer “eu sou brasileiro” na língua de Yutang.

Foi então que me ocorreu estudar uma língua que me parecia mais simples: o japonês, que eu conhecia bem da juventude passada em Guaíra, onde havia uma enorme comunidade japonesa, e onde eu tinha ensaiado os primeiros diálogos, quando visitava a família de alguma namorada ou quase namorada.

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O estudo do japonês não prosperou muito na Aliança, em Campinas. Marília Maruyama era um amor de paciência. Mas eu tinha aulas com um grupo de crianças que falavam japonês. E nem sempre era divertido ser o grandão meio estúpido, quando alguém me pedia um ovo e eu identificava o kanji de elefante ou outro animal que, positivamente, não se parecia com um ovo. Mas persisti por um bom tempo e guardo ótimas recordações. Principalmente das leituras que Marília fez de haikais que lhe levei, extraídos do Blyth, e que gravei para tentar apreender o ritmo da elocução. E também das aulas de caligrafia com seu pai, Maruyama-san, nas quais pude ver em ação o famoso pincel e tentar escrever sem borrar. Mas, sobretudo, pude aprender os traços básicos da escrita, sem os quais é impossível consultar um dicionário, já que em ideogramas não há, evidentemente, como dispor nada em ordem alfabética.

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Foi então que pedi a Elza Doi, minha colega de Instituto, que me ensinasse japonês. Mas não a língua que me permitiria ler jornais ou conversar. A língua do haikai, que naquela altura eu já sabia ser algo diferente do japonês usual, também porque o que mais me interessava ali eram os haikais do século XVII e XVIII.

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Gosto da expressão “abriu-se o olho do haikai”, que encontrei num dos tratados da escola de Bashô. Porque foi exatamente isso que ocorreu em certo momento: passei a ver a poesia e, digamos assim, o mundo – a partir ou com a presença do haikai.

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Parte 2/5

 

O haikai é uma arte ou prática tradicional. O poeta de haikai se move num universo determinado por convenções fortes: tal flor ou tal ação humana, tal animal ou tal dado atmosférico conotam imediatamente um momento preciso do ciclo sazonal. Mais que isso, conotam um estado de espírito tradicionalmente associado ao fenômeno observado. 

Isso não é tão estranho para nós. Basta ler, por exemplo, o livro do Curtius sobre os lugares-comuns, ou topoi. Essa expressão, “lugar-comum”, aliás, ajuda a compreender um seu elemento definidor do haikai: o “kigo”.

Kigo quer dizer palavra associada a uma estação. Ou seja, indica uma interpretação comunitária de um fenômeno humano ou natural. Isso permite ao haikai uma grande economia: basta enunciar um “lugar-comum” para dispor imediatamente de um pano de fundo coletivo, contra o qual se situará a percepção individual. 

O kigo é tão relevante no haikai japonês que muitas “palavras de estação” se cristalizaram, sozinhas ou com um expletivo, como sequências de 5 sílabas, o que faz com que aproximadamente um terço do haikai (nesses casos) seja ocupado pelo kigo: aki no kure, samidare ya, samusa kana etc.

O lugar-comum, porém, pode facilmente tornar-se um obstáculo ao bom haikai. Ou melhor, um obstáculo ao haikai tal como visto por Blyth, e tal como eu mesmo o pude valorizar a partir da leitura complementar dos livros canônicos da escola de Bashô. Isso porque seu peso convencional ameaça o que me parecem ser os traços mais marcantes do haikai, decorrentes do primado da objetividade: sua radicação na sensação e sua recusa à elaboração conceitual. 

O haikai, assim, se equilibra entre dois perigos: por um lado, esgotar-se na glosa do lugar-comum, fazendo com que o poema seja apenas a realização plana do convencional; por outro, perder o sentido amplo do lugar-comum, agredindo o entendimento tradicional do estado de espírito associado a um dado sazonal. Ou seja, num caso, afastando-se da experiência imediata, apagando-a no sentido coletivo associado ao kigo; no outro, não vinculando de alguma forma a experiência imediata ao saber tradicional, e assim desprezando a carga afetiva que a dinamizaria e lhe atribuiria relevância.

Ao lermos um haikai, portanto, temos de avaliar a sua objetividade, a sua verdade; e ver como essa observação objetiva se relaciona com o lugar-comum do kigo. Isso se dá positivamente de vários modos, que não vem ao caso expor aqui. Mas também pode se dar de modo extremado, negativo, pela renúncia a dizer o que é esperado (como no haikai de Bashô que louva quem não diz algo sobre como a vida passa, ao ver um relâmpago), ou simples recusa de dizer qualquer coisa, como naquele haikai em que alguém vai ver as cerejeiras mais louvadas do Japão e escreve um haikai que diz apenas “Isso! Isso!”. 

De modo geral, podemos dizer que, por conta da necessidade de “verdade” da notação, há sempre alguma tensão entre o kigo e o restante do haikai. Por conta disso, na intepretação e valoração do haikai tem relevância o contexto, a situação em que foi composto. Por isso o poema não costumava vir sozinho, nos tempos clássicos. Ou era acompanhado de um desenho, ou rodeado de um texto em prosa ou de outros versos, numa sessão coletiva de poesia. Quando não, isto é, quando apresentado sozinho, a leitura tradicional japonesa consistia em criar um contexto, imaginar a partir de testemunhos ou do próprio kigo, a situação em que o haikai foi sentido ou escrito. Tomemos como exemplo um de Shiki, o reformador que buscou tornar o haikai um poema autônomo. O texto diz “depois de examinar três mil haikus, dois caquis”. Ora, isso é quase ininteligível, a menos que saibamos que Shiki adorava caquis, estava doente e que depois de um grande trabalho de avaliação de haikais para publicação, ele se daria o luxo de comer caquis. Ou podemos entender que ele, tendo de fazer um trabalho exaustivo, motivou-se com a promessa de ter como prêmio as duas frutas. De qualquer forma, temos de saber da paixão pela fruta e também que Shiki era o mentor da revista Hototogisu, para a qual selecionava os haikais enviados para publicação.

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Parte 3/5

 

 

No que diz respeito à importância do contexto, vejamos um exemplo. Este poema de Bashô:

 

Akebono ya shirauo shiroki koto issun” 

 

Alvorada — peixe[s] branco[s] coisa[s] branca[s] de uma polegada

 

Coloquei entre colchetes os “s” porque em japonês não temos marcação de plural nos substantivos ou verbos.

 

Haroldo de Campos propôs duas traduções desse poema:

 

“alvorada 

            peixe alvo

            uma

                   polegada de alvura

 

 

manhã branca

                        peixe branco

                                               uma

                                                           polegada branca”

 

Nos seus comentários, fica claro como ele entendeu o poema:

 

“É a primeira luz da manhã, transitando para o branco mínimo do peixe branco, divisado através da cristalinidade da água, elemento que não é mencionado mas está virtualmente presente neste haicai”

 

Ele o imaginou, portanto, como produto de uma contemplação, ou observação atenta, de um pequeno peixe entrevisto na água. 

Construiu assim uma cena delicada, na qual tem lugar o haikai. A ideia de cristalinidade da água atribui um caráter algo intimista à cena, como se a contemplação se desse em um aquário ou um tanque.

 

Entretanto, esse haicai comparece num diário de Bashô, o Nozarashi Kikô, nesta passagem:

 

“Cansado de dormir sobre um travesseiro de ervas, fui para a praia quando ainda escuro, antes do nascer do sol”

 

A expressão “travesseiro de ervas” pode ser lida num sentido literal, mas designa usualmente o ato de dormir em viagem, na estrada. 

 

Temos uma marinha, portanto.

 

Orientado não só por esse trecho do diário, mas também pelos comentários tradicionais, Blyth traduziu assim:

 

 

                    Akebono ya

shirauo shiroki

                    koto issun

 

                    In the morning twilight

The lancelets,

                    Inch-long white things.

 

 

Aqui temos plural e não singular. A sugestão é de movimento, de grupo. Temos agora um cardume ou um grupo de peixes e não mais um indivíduo solitário.

 

A explicação para a opção de Blyth pelo plural vem no seu comentário, que é este:

 

On the way to Nagoya, near Kuwana, Bashō went down to the sea-shore in the early morning, before it was still properly light. Fisherman were at work there, and he saw something white gleaming on the sand. Going closer, this mass of translucent whiteness, reflecting the eastern skies, resolved itself into small fishes, each of about an inch in length.

 

 

Temos agora o seguinte: o poeta vê algo na praia, uma mancha branca que espelha a alvorada. Quando se aproxima, vê que eram pequenos peixes brancos, que os pescadores tinham apanhado. A beleza do reflexo do céu iluminado ser resolve agora na agonia dos peixes, se debatendo na areia. O que ressalta o lado piedoso da poética de Bashô.

A interpretação destaca ainda, embora Blyth não o mencione, o possível intertexto que tantos apontam desse hokku com um poema de Du Fu, o de número 17-67. “Apenas um pouco de branco, mas aqui também está a vida –  um peixe de duas polegadas”.

 

Por outro lado, temos o relato de Bokuin sobre as condições em que foi escrito o hokku: ele teria acompanhado Bashô até a praia, onde mariscaram, e depois foram, em um bote, pescar shirauos (os peixes brancos).

 

A leitura do hokku fica agora bem diversa. Nem temos o pequeno peixe solitário nadando em água límpida ao nascer do dia, nem um cardume agonizando na rede ou na areia. Ou o poeta os vê desde o bote, ou os contempla já pescados.

 

Aprendemos também no Sanzôshi que na primeira versão do hokku o verso inicial era “Neve fina”. Um comentarista observa que a forma revisada sugere que o poema foi escrito logo cedo, mas que na realidade ele parece ter sido escrito depois do retorno da coleta dos pequenos peixes.

 

Blyth certamente conhecia o relato de Bokuin, mas preferiu uma das leituras tradicionais, que reconstrói o contexto da forma como ele o reproduziu. Por que o fez? 

 

A explicação mais convincente é que ele seguiu o que parece ter sido a intenção de Bashô, ao alterar o primeiro verso e ao narrar de modo tão sumário o contexto da produção. E confesso que nunca mais li esse hokku da mesma forma depois de o ter lido no Blyth, embora meu primeiro contato com ele fosse via Haroldo de Campos. Talvez porque aquele incômodo com a cena de japonnaiserie do poeta contemplando o peixinho translúcido sob a água clara se tenha rapidamente eclipsado quando li o diário pela primeira vez, o comentário do Blyth tenha parecido tão convincente. E talvez por ele ter parecido assim convincente, e por Bashô não ter inserido no diário nada que sugerisse uma atividade prática em busca de um petisco famoso e delicioso (ainda mais delicioso quando, no começo da primavera os alevinos ainda não tenham sequer chegado ao tamanho de duas polegadas), fiquei sempre com aquela cena na cabeça: o poeta acordando de madrugada e indo para a paria onde brilhavam, na luz da aurora, os pequenos peixes brancos.

 

Mas não deixa de ser interessante tentar pensar de outra forma, como nesta imagem que retirei da internet. Nesse caso, o pequeno peixe branco seria apenas o café da manhã de Bashô...




 

Enfim, creio que me distanciei do objetivo destas memórias, que era narrar as razões do meu interesse pelo haikai. Ou não: porque uma das características sedutoras no haikai é, como disse, a relação entre o texto e seu entorno, dado por uma situação, um diário ou um desenho. O vazio que constitui esse tipo de poema, usualmente composto pela justaposição de dois elementos, sendo que a relação entre eles deve ser “descoberta” ou proposta pelo leitor, se amplifica quando percebemos que o sentido do próprio haikai muitas vezes nos escapa, sem que o situemos num quadro mais amplo. Ou seja, quando nos damos conta de que o haikai clássico é quase sempre aquilo que já descrevi como “três linhas em busca de um contexto”.

Claro que aquilo que atraiu a atenção de Haroldo de Campos é outra coisa. Mas é algo que a mim interessa menos. Principalmente porque não vejo essa proeminência do ideograma na poesia de haikai. No renga, os versos são *ditos* pelos participantes, e a forma da grafia é decidida pelo encarregado do registro escrito. Já nos haicais escritos em desenhos, é o ritmo da escrita, nos caracteres “desmanchados”, que conta mais, bem como a decisão de usar letras chinesas ou silabário, de acordo com o objetivo e situação de cada palavra.

 

Enfim, não parece, afinal, que tenha me afastado tanto do objetivo...

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Parte 4/5

 

Vejo agora que eu poderia ficar escrevendo infinitamente, durante este período de recolhimento forçado, sobre o haikai, sobre as suas características mais marcantes, que o tornaram um assunto e uma atitude centrais na minha vida. Mas para não me alongar muito, já que no Facebook estes textos se perdem na linha do tempo, vou tentar terminar aqui.

 

E queria terminar com duas citações que me orientaram, desde que as li, pois resumem o que de mais interessante eu pude encontrar no haikai.

 

Mas antes uma observação que simplifica as coisas. Fazer haikai, colocar-se em “estado de haikai” me parece algo semelhante a sair com uma câmera fotográfica. É certo que o celular hoje em dia é uma boa câmera, mas é diferente sair com um celular no bolso e com uma câmera. Com a câmera, a disposição do espírito é diferente: você está ali para tirar fotos, ou seja, em busca de recortes interessantes. Seu olhar muda, sua forma de caminhar muda, assim como sua atenção ao entorno e, eu diria, a si mesmo. Da mesma forma, sair com uma caderneta e um lápis para um passeio no bairro ou uma expedição pelos arredores da cidade, ou ainda a um trecho de mata, cria uma dada disposição, um jeito de olhar e estar no mundo. Por isso mesmo não gosto de fazer haikai em gabinete, a não ser quando a memória de algum momento marcante é tão forte que o torna outra vez presente.

 

E agora as citações.

 

A primeira é esta, de Tôhô, que vale tanto para o haikai quanto para, mantendo-se o símile, o tipo de expedição fotográfica que busquei definir acima:

 

Quando o espírito está embebido de haikai, o sentimento interior se funde com as coisas exteriores para determinar a forma do verso, e tão bem que o objeto é apreendido tal qual ele se apresenta, sem que a visão própria crie a menor divergência.

 

Aqui está bem definida a atitude, a disposição. E o que sempre busquei no haikai, tanto ao escrevê-lo, quanto ao lê-lo e avaliá-lo. 

Há aqui, nessa formulação, algo que se aproxima do que T. S. Eliot propôs ao escrever que o  “correlato objetivo” é a única forma (creio que é assim mesmo que ele diz) de transmitir emoção em arte (ideia, aliás, que lhe pode ter vindo da poesia japonesa, como já se disse). 

Por esse termo, Eliot significava uma cena ou um conjunto de elementos  “objetivos” que pudessem despertar ou produzir no leitor um tipo de emoção. Ou melhor, a emoção que, naquele trecho, o poeta buscava produzir. 

Quando lemos The Waste Land, por exemplo, a impressão que nos ocorre é que o poeta modula, como numa composição musical, a nossa emoção por meio de fragmentos que vai juntando em sequência. Não há um enredo, nem mesmo uma voz lírica em que se apresente o poeta, como no lirismo de extração romântica. 

A forma de transmitir, ou melhor, produzir a emoção em arte, para simplificar muito os seus termos, não é expressando-a, confessando-a ou descrevendo-a. É buscando algo objetivo que seja capaz de despertá-la no leitor. 

Também poderíamos tentar aproximar o objetivo de evitar a visão própria à noção de despersonalização, tal como a encontramos em “Tradição e o talento individual”. Mas creio que aí há diferenças importantes, bem mais relevantes do que eventuais semelhanças. 

No caso do haikai, a “visão própria” é basicamente a intenção. Veja-se:

 

Os versos de alguns, porque eles querem atribuir-lhes brilho, carecem precisamente de brilho (en). O brilho não consiste em dizer as coisas de modo brilhante. Os versos de alguns outros carecem de delicadeza (shiori). É porque eles querem atribuir-lhes delicadeza que a delicadeza lhes falta. Nos versos de outros, ainda, à força de artifício, a espontaneidade se perde. As obras produzidas pelo espírito são boas, mas as produzidas apenas com artifícios de palavras não são dignas de respeito. [as referências dessas citações podem ser encontradas no livro Haikai – antologia e história]

 

 

Esta citação também permite ver algo muito interessante, relevante para o haikai conforme definido por Bashô e sua escola: a aversão aos “artifícios de palavras”, que vai junto com o elogio da espontaneidade. Mas uma espontaneidade especial, obtida com um rigoroso treinamento, que dela elimina justamente a “visão própria”. 

 

Outro ponto que me parece distintivo do haikai é que esse tipo de poesia, tal como proposto ali, é sempre feita “em situação”. Ou seja, o espírito seleciona – digamos assim – in loco os elementos da realidade objetiva, de acordo com a sua correspondência. E a segunda parte daquela primeira citação retorna ao ponto há pouco destacado, que é a apresentação do haikai como um caminho de aprimoramento espiritual:

 

Se o espírito, pelo contrário, não se depurou, a visão própria entra em ação e a pessoa tende a buscar a perfeição no arranjo das palavras. E isso constitui apenas a vulgaridade de um espírito que não se esforça para encontrar a verdade.

 

O tipo de despersonalização implicado pelo haikai é, portanto, muito particular, pois não se trata aqui apenas de uma arte. É certo que isso se poderia, com algum esforço, dizer de qualquer arte. Mas o que é distintivo do haikai é a insistência, a partir de Bashô, nesse caráter de exercício espiritual. De ser um a busca da verdade, assim como sucede com outras artes tradicionais, por exemplo, o Ikebana ou o chá. Por isso mesmo, o valor de um haikai produzido na escola de Bashô não se esgota na sua forma ou beleza abstrata, mas é relativizado (como vemos nos livros canônicos) em função do estágio do aprendiz no caminho.

 

Ia terminar aqui a exposição, mas acho que preciso ainda de um ou dois parágrafos.

 

Então seguirei com mais dois ou três parágrafos e depois, oportunamente, relei tudo isto e disporei estes textos no blog...

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Parte 5/5

 

 

Em certo ponto da minha vida, depois de muito lidar com poesia contemporânea, dei conta de que simpatizava bastante com algumas passagens do célebre texto de Gombrowicz, “Contra os poetas”. 

 

Por exemplo, com esta:

 

“Por mais que se diga que a arte é uma espécie de chave, que a arte da poesia consiste precisamente em alcançar uma infinidade de matizes com poucos elementos, tais e parecidos argumentos não ocultam o primordial fenômeno de que com a máquina do verbo poético ocorreu o mesmo que com todas as demais máquinas, pois em vez de servir a seu dono se converteu em um fim em si; e, francamente, uma reação contra esse estado de coisas parece ainda mais justificada aqui do que em outros campos porque aqui estamos no terreno do humanismo par excellence.” [Utilizo aqui a tradução disponível em https://chaodafeira.com/wp-content/uploads/2015/06/cad17.pdf]

 

Ou com esta:

 

“Mas a poesia pura, além de constituir um estilo hermético e unilateral, constitui também um mundo hermético. E suas debilidades aparecem ainda mais cruas quando se contempla o mundo dos poetas em seu aspecto social. Os poetas escrevem para os poetas. São os poetas que prestam homenagens ao seu próprio trabalho e todo esse mundo se parece bastante com qualquer outro dos tantos e tantos mundos especializados e herméticos que dividem a sociedade contemporânea. Os enxadristas consideram o xadrez como o ápice da criação humana, tem suas hierarquias, falam de Casablanca como os poetas falam de Mallarmé e, mutuamente, prestam-se todas as homenagens. Mas o xadrez é um jogo, enquanto que a poesia é algo mais sério, e aquilo que resulta simpático nos enxadristas, nos poetas é sinal de uma mesquinhez imperdoável. A primeira consequência desse isolamento social dos poetas é que o mundo poético todo se infla, e mesmo os criadores medíocres alcançam dimensões apocalípticas e, pelo mesmo motivo, problemas de pouca importância ganham uma transcendência que assusta.” 

É verdade que só li o ensaio depois deter estudado seriamente e praticado o melhor que pude o haikai. Mas creio que esse sentimento, que respondeu depois pela minha simpatia pelas formulações de Gombrowicz, deve ter sido um dos vetores de minha paixão pelo haikai e um dos motivos da busca que por ele empreendi. Afinal, não é de Bashô (segundo Kyorai) a afirmação de que um camponês iletrado ou uma criança poderiam eventualmente compor um bom poema à sua maneira, o que era impossível para os letrados de outras escolas?

 

Isso não quer dizer que eu tenha por um instante deixado de lado meus poetas modernos preferidos (Eliot, por exemplo). Nem que eu não tenha tido outros motivos, provavelmente até mais fortes, literários e pessoais, para me dedicar bastante ao estudo e à prática do haikai. Entretanto, não tenho dúvida de que também contou para esse interesse o fato de o haikai me parecer, em algum momento, um bom antídoto contra o tipo de atitude que Gombrowicz descreve no seu tempo e que me parece ainda muito presente, quase sufocante, na poesia brasileira do final do século XX e nestas primeiras décadas do XXI.

Por outro lado, é certo que o haikai que me atraiu e que procurei tornar acessível e atraente por meio da redação da longa apresentação do “Haikai – antologia e história”, da criação da lista Haikai-L e de tantos textos publicados em jornais ou no meu blog, não foi o que mais interessou, nem o que foi mais estudado ou praticado entre nós. Em vez disso, o haikai se tornou ou continuou a ser, em grande parte, o produto da aplicação de um conjunto de normas simples, dando origem em muitos casos a uma espécie de passatempo de salão. O que não é ruim em si mesmo, está claro, pois um dos aspectos relevantes do haikai, como tentei mostrar, é o seu caráter de atividade, de prática coletiva. O que quero dizer é que o lado que me pareceu e parece mais interessante e motivador no haikai, que é a sua concepção como caminho e exercício espiritual, tende entre nós a se apagar perante o apelo da prática mais fácil.

Provavelmente venha daí o afastamento regular e talvez salutar que eu mantenha em relação ao haikai, embora de tempos em tempos, como nestes, de novo se avive a paixão e a esperança.