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terça-feira, 15 de novembro de 2022

Memórias (Perfis 2): Décio Pignatari

 Creio que foi em 2007 que fui tutor de Décio Pignatari. Nos divertimos com essa denominação, que provavelmente não era exata. Eu tinha apresentado o seu nome como artista residente na Unicamp, o projeto tinha sido aprovado e ele ficaria conosco, sob minha responsabilidade acadêmica, durante um ano.

Suas atividades previstas eram poucas: dirigir uma oficina de tradução, fazer uma conferência, desenvolver algum trabalho e ficar no campus, à disposição de pessoas que quisessem conviver com ele.
Foi um período fantástico, no qual tive a oportunidade de conviver com uma das mentes mais ágeis e brilhantes com que me deparei ao longo da vida. Mas também com uma das pessoas mais surpreendentes e idiossincráticas.
Por exemplo, num certo momento veio me dizer que precisar ir à Itália. Eu lhe disse que não seria possível, pois ele tinha o compromisso de aparecer semanalmente, ou no mínimo a cada 15 dias, à Unicamp. Mas ele tinha um argumento muito forte, e tive de ceder. É que ele precisava escrever uma peça de teatro, que seria, com as outras que escrevera, uma das cinco peças de teatro mais importantes da literatura brasileira. Quando lhe perguntei por que teria de ir à Itália escrevê-la, se teria alguma pesquisa a fazer, ele disse que não: era mais grave. Ele só poderia escrever essa peça num hotel em Ferrara. E tinha recebido a notícia de que o hotel estava para fechar. Então ele foi e me mandou algum tempo depois não a peça, mas um simpático postal, no qual se via a fachada do hotel. E tudo estava correndo bem. Quando voltou, acabei me esquecendo de perguntar sobre a peça, e ele não se lembrou de me dizer nada a respeito.
O outro momento memorável foi a sua conferência. Nela elogiou Olavo Bilac e analisou de modo instigante alguns versos (creio) do soneto a Ouro Preto. Sírio Possenti talvez se lembre, porque foi um dos que, surpresos, comentou comigo o desbragado elogio.
Por fim, o terceiro. Décio gostava de beber e tinha um bom companheiro no meu amigo Ricardo Lima, que trabalhava na produção da Editora. Mas num dia em que Ricardo teve folga, lá fui eu com o Décio para um copo de prosa. Eu tinha feito questão de publicar junto com a Ateliê Editorial, em 2004, pela Editora da Unicamp, sua obra poética reunida: Poesia pois é poesia. No vaivém da conversa e dos copos, ele queria saber o que eu achava. Fiz o sincero elogio da sua poesia, que me pareceu sempre a mais consistente e interessante, desde o primeiro livro antes do concretismo, até os poemas sem palavras, dos quais aquele em que junta pátria família tv e pelé me parece ainda hoje divertido e bom. E devia ter parado aí, por prudência. Mas como não tinha parado no copo, não parei também no discurso, e lhe disse que as últimas coisas não me impressionaram muito e concluí com uma frase de que me arrependi logo que ela voltou da minha boca para os meus ouvidos: que alguns (não me lembro bem se disse alguns ou vários) me pareciam interessantes, como o para Maiakóvski, mas que aquele que glosava um verso de Castro Alves e principalmente aquele sobre Chico Mendes me pareciam horrendos. Eu mesmo me arrepiei ao ouvir a palavra, pois já convivido bastante com o homem. E esperei. Décio me olhou, calado. Eu esperei mais. E ele então me disse, como quem não ligasse muito, que eu tinha razão, esses dois eram mesmo muito ruins. Eram boa ideia, mas má realização, concluiu. Eu, ainda arrependido da palavra, concordei logo e passamos ao próximo copo e ao assunto seguinte.

Perfis 1: Haquira Osakabe

 Outro dia, conversando com Alcir, disse-lhe que ia redigir alguns perfis. E convidei-o a colaborar na tarefa. Ele logo se animou e disse que sim, que íamos fazer. Redigi, então, o primeiro. A ele competirá fazer o segundo. Mas outros projetos comuns surgiram e soterraram, ao menos por algum tempo, os anteriores – entre eles, o dos perfis.

O que escrevi então era mais ou menos o que segue. Mais ou menos porque retornei ao esboço há pouco e o refiz em grande parte (acrescentando todo o testemunho), depois de ouvir o quarto podcast do colóquio de Coimbra sobre ensino de literatura, no qual as questões relativas à imitação produtiva e ao momento da aula foram discutidas.
*
Haquira Osakabe
Era um nissei muito alto. Na verdade, quando deixou crescer a pera e o bigode, mais parecia chinês. De qualquer modo tinha um ar aristocrático e seu olhar sempre meio vago lhe dava um ar meditativo, mesmo quando argumentava ou falava para uma classe lotada.
Seu discurso acompanhava o olhar, no sentido que parecia às vezes igualmente vago, fazendo círculos em volta de algo que não era dito. Os silêncios entre frases ou mesmo entre palavras de uma frase, quando o olhar se tornava ainda mais vago, como se fixado num ponto no horizonte, geravam expectativa, energizavam o ambiente. E nunca sabíamos se o que ficava por dizer, no centro daquelas voltas, ainda não estava devidamente formulado, ou se era algo que não podia ser expresso com o vocabulário usual da academia.
Meu amigo Alcir o conheceu ainda antes da graduação. Eu apenas no mestrado. Mas ambos trabalhamos com ele ao longo dos anos, nas disciplinas denominadas Literatura Portuguesa, que eram nosso respiro para a literatura europeia. Isso porque o curso de Letras no IEL tinha sido criado por Antonio Candido, e sempre ali houve um tipo de exacerbação nacionalista. Não havia literaturas de língua estrangeira no programa: o curso era articulado sobre duas séries principais, os estudos de literatura brasileira e os estudos de Teoria Literária. Nosso próprio departamento levava este nome.
A estreiteza do ambiente e do programa terminou por fazer da Literatura Portuguesa um espaço de respiração fora do aquário onde circulavam os discípulos à volta das questões nacionais. A situação era de tal modo peculiar que uma disciplina oferecida no quarto ano, denominada Teoria Literária, chegou a ser ministrada com um programa que assim se resumia: “De Platão a Antonio Candido”.
Haquira foi, para nós, um guia para escapar dessas armadilhas. Em sua casa nos reunimos muitas vezes para discutir textos, pegar livros emprestados e, principalmente, programar os cursos de Literatura Portuguesa, que incluíam sempre uma situação dos autores e obras no quadro maior da literatura europeia.
A compreensão desse enquadramento era central para Haquira, assim como a necessidade de estudarmos todos os principais momentos da Literatura Portuguesa. Para isso, insistia na ideia de que os professores da disciplina percorrêssemos todo o arco temporal. Assim, cada um de nós teve de, pelo menos uma vez, ensinar literatura medieval, renascentista, oitocentista e moderna. E como havia pré-requisitos entre as disciplinas, elaborávamos em conjunto os programas e buscávamos linhas de continuidade de um semestre para outro, assim como otimizávamos a bibliografia de cada um.
Com tanta dedicação aos novos professores e aos alunos de graduação e de pós, com quem organizava seguidas sessões de orientação em grupo ou individual, Haquira pouco escreveu. Quase nada no seu campo de dedicação apaixonada, que era a literatura portuguesa.
Entretanto, sua atuação e a sua presença foram para mim (assim como para muitos outros) inspiração e desafio. Inclusive num assunto que terminou por ocupar grande espaço na minha vida pessoal e acadêmica: o haikai. De fato, foi ele que me emprestou, entre outros, os livros (então quase inacessíveis) de R. H. Blyth; foi ele quem me apresentou à minha parceira de trabalhos nesse campo, Elza Doi; e foi ele ainda quem me estimulou a estudar seriamente o haikai, a traduzi-lo com Elza e, por fim, a escrever um estudo de longo fôlego, do qual foi o primeiro leitor. Também foi ele quem me apresentou a Teresa Sobral Cunha (em breve, outra decisiva referência afetiva e intelectual), com quem se concertou para me convencer e estimular a fazer o trabalho de edição de Camilo Pessanha.
Houve ainda outro momento no qual sua presença foi marcante. É que, durante certo tempo, tentei imitá-lo no que fosse possível. Tanto na dedicação às aulas, quanto aos estudantes. E apliquei-me com mais afinco ainda ao estudo, sentindo-me como Eça disse que ficou, sob a inspiração de Antero: compelido a pôr os pés no capacho e a mergulhar silenciosamente nos livros, noite após noite. Nisso e nas aulas e convívio com estudantes consumi vários meses felizes, que prometiam nunca acabar. Foi então que, certa noite, naqueles anos de final dos 80 ou início dos 90, Haquira me apareceu em sonho. Só me lembro da parte principal: escreva, publique! Era uma admoestação dura – um tanto amargurada até, eu diria –, que referia a si mesmo como exemplo a não seguir nesse particular. Durante bom tempo, por semanas ou mesmo meses, fiquei sob o impacto do que ele ali me disse e confessou. E isso também me orientou e gerou decisões relevantes.
De modo que, de um jeito ou de outro, pela orientação explícita, pelo exemplo e ainda pelo sonho (no sentido figurado ou literal) não creio ter havido eventos decisivos no começo da minha carreira universitária sem que Haquira estivesse muito presente.
E é disso que venho aqui dar este singelo testemunho.