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quinta-feira, 7 de junho de 2012

Guilherme de Almeida e a história do haicai no Brasil


Guilherme de Almeida e a história do haicai no Brasil

[publicado como prefácio a: Guilherme de Almeida, Haicais completos. São Paulo: Aliança Cultural Brasil-Japão, 1996 - republicado no livro Estudos de literatura brasileira e portuguesa]

Entre os patronos do haicai no Brasil, Afrânio Peixoto divide com Guilherme de Almeida as honras maiores de introdutor da forma no país. De fato, se foi Peixoto um dos primeiros cultores dos tercetos mais ou menos aproximados do haiku japonês, foi apenas com Guilherme de Almeida que um determinado tipo de poema chamado de haicai atingiu um público mais amplo, levado na esteira do grande prestígio popular de que desfrutava o poeta campineiro nas décadas de 30 e 40.
Nesse sentido, de vulgarizador de um nome exótico e de praticante de poesia em tercetos de dezessete sílabas, Guilherme de Almeida – como diz H. Masuda Goga – "estimulou o abrasileiramento da mais concisa poesia de origem japonesa". Mas será verdade que, num nível mais profundo, a sua prática de poesia em tercetos teria estimulado o abrasileiramento do haicai? A resposta a essa pergunta dependerá, é claro, do que entendermos por abrasileiramento, pois é verdade que o haicai guilhermino fez escola e que mesmo hoje em dia ainda encontramos vários cultores da forma poética que ele denominou haicai. Entretanto, de meu ponto de vista, antes de podermos responder claramente a essas questões essenciais, é preciso determinar o que, de fato, Guilherme de Almeida entendia por haicai, e quais eram as características que atribuía a esse tipo de poesia quando falava dela e quando a escrevia.
Para compreender o papel de Guilherme de Almeida na história do haicai no Brasil, devemos ter em mente a forma pela qual esse tipo de poesia japonesa chegou ao nosso país e aos nossos meios literários. Contrariamente ao que se poderia pensar, não foi devido ao fato de termos aqui a maior colônia japonesa do mundo que o haicai se tornou uma forma literária da poesia em português. De fato, o haicai aportou no Brasil vindo da França, num primeiro momento, e dos países de língua inglesa, num segundo. A princípio, o haicai comparecia apenas em livros de viagens, como exemplo do miniaturismo japonês. Depois, em traduções livres, como ilustração da sensibilidade delicada e exótica do Extremo-Oriente. Só por volta do segundo e terceiro decênios do nosso século o haicai passou a ser objeto do interesse de um maior número de poetas e de um público mais significativo. Foi nesse momento que Guilherme de Almeida, tendo tomado conhecimento do haicai por via francesa e, depois, por intermédio de um grupo praticante de haiku em São Paulo, desenvolveu uma ação que visava, como ele mesmo diz num dos textos deste livro, transplantar o haicai e dotá-lo de uma "disciplina rígida". Vejamos em que consistiu a sua ação.
Do ponto de vista da composição física do haicai, Guilherme de Almeida propôs-se a resolver um problema que se vinha arrastando desde os primeiros momentos de registro e de tradução do haicai: a questão da forma métrica e do uso ou não das rimas.
Desde as primeiras tentativas de tradução para o português – que parecem ter sido as de Wenceslau de Moraes, na virada do século –, o haicai apresentava um problema de métrica. No original japonês, o poema tinha 17 sons (mais exatamente, 17 durações). Traduzir o haicai em 17 sílabas poéticas, distribuídas em três versos de medida diferente (5, 7 e 5 sílabas) e sem rima, não parecia um bom caminho. Quer dizer, do ponto de vista musical o haicai não tinha, a rigor, uma estrutura reconhecível e assimilável à nossa tradição. Era difícil perceber qualquer ritmo nessa distribuição de versos sem rima e com número diferente de sílabas e foi por isso que Wenceslau de Moraes tratou de traduzir os tercetos japoneses em forma de quadra popular portuguesa: para conseguir um equivalente, na nossa tradição, do metro mais corrente em língua japonesa. A solução, entretanto, não parecia completamente adequada, uma vez que o ritmo ternário da composição – isto é, a exposição dos conceitos em três segmentos poéticos –, tem, muitas vezes, bastante importância no haicai japonês.
Guilherme de Almeida, que era um bom ritimista do verso português, ao defrontar-se com esses problemas tratou logo de adaptar o haicai às necessidades formais da nossa tradição poética, mantendo de certa forma o ritmo estrófico ternário.
Começou por atribuir um título ao terceto, o que lhe permitia aumentar um pouco o tamanho do mesmo e torná-lo mais palatável por essa espécie de orientação de leitura que um título muitas vezes proporciona. Também tratou de dar ao poemeto uma estrutura rímica muito cerrada, de modo a tornar musical – em nossos termos – o que de outro modo poderia parecer um tanto desarticulado. Na estrutura de versos de cinco/sete/cinco sílabas métricas dispôs duas rimas: uma unindo o primeiro com o terceiro verso, e outra interna ao segundo verso, ocupando a segunda e a última sílaba. Eis um exemplo, com as rimas sublinhadas e seguidas de um esquema simplificado:

           Por que estás assim,               – – – – a
   violeta? Que borboleta           – b – – – – b
   morreu no jardim?                  – – – – a
 
Com esse recurso, Guilherme de Almeida conseguiu ampliar a regularidade métrica, pois, marcados pela rima, temos agora as seguintes seqüências métricas: cinco sílabas, duas sílabas, cinco sílabas e, de novo, cinco sílabas. Isso dá, tanto quanto possível, um andamento marcado e reconhecível ao poemeto, com três segmentos isossilábicos e um quebrado perfeitamente assimilável à acentuação do pentassílabo.
Quando lemos ao acaso alguns dos poemas que estão neste livro, é muito sensível o ritmo que a distribuição das rimas concede aos tercetos, bem como a maestria com que o poeta trata a alternância das seqüências de duas e de cinco, ora deixando a rima interna sem destaque, ora fazendo-a coincidir com uma pausa sintática, e por fim, como no seguinte poema, sobrepondo à distribuição das sílabas em segmentos de duas e de cinco sílabas pela rima, uma distribuição sintática inversa, em segmentos de cinco e de duas sílabas:

Noite. Um silvo no ar.
Ninguém na estação. E o trem
passa sem parar.
Muitas vezes tem havido debates, nos círculos haicaísticos, sobre se o modelo de Guilherme de Almeida é ou não é uma boa forma de verter o haicai em português. A discussão, quase sempre, gira à volta do uso das rimas, e, mais do que isso, do uso de rimas fixas e algo virtuosas. De fato, ao fazer incidir a noção de disciplina sobre um aspecto tão exterior quanto a métrica e a rima, Guilherme de Almeida propõe um haicai que é uma espécie de micro-soneto parnasiano, um lugar de exibição de perícia técnica. Em princípio, essa espécie de disciplina nada tem a ver com o haiku japonês, mas tampouco impede que se produzam haicais interessantes. A questão, de fato, situa-se em outro nível: ao propor o haicai como terceto cheio de prescrições métricas e rímicas, Guilherme de Almeida nos mostra que está pensando em aclimatar basicamente a forma do haicai. Ora, se essa forma é aclimatada com inovações tão relevantes quanto a rima fixa e a contagem silábica ocidental, o que é que se está, de fato, aclimatando? Entretanto, mesmo a questão das rimas e da métrica é secundária, comparada à outra invenção guilhermina, que é o título atribuído a cada haicai. De fato, lidos sem o título, alguns dos seus poemas, como os que acabo de citar, deixam-se ler como haiku. Com o título, que é uma prática totalmente estranha à tradição do haiku, praticamente nenhum.
De meu ponto de vista, os tercetos de Guilherme de Almeida fracassam como haicais não pela rima e pela métrica preciosas e afetadas, mas pela atitude que se explicita quando os lemos com os títulos que têm. Num dos textos aqui recolhidos – Os meus haicais –, o leitor poderá encontrar uma espécie de análise do poema pelo próprio autor. Lendo a explicação do poeta e observando-se o poema, percebe-se claramente qual a função do título que o poeta atribui aos seus tercetos. Percebe-se mais: qual é a orientação do seu discurso, que é metafórico do ponto de vista da concepção, e sentimental do ponto de vista da disposição de espírito.
Vejamos aqui só um exemplo elucidativo. Este poema:

Desfolha-se a rosa.
Parece até que floresce
O chão cor-de-rosa.
Lido assim, sem título, é um haiku. Não, é claro, por causa das rimas e da métrica. Talvez mesmo apesar delas. É um haiku porque é objetivo. Mais exatamente, é haiku porque nele se contrapõe a uma observação predominante muito objetiva uma percepção fugaz e pessoal. E também porque é visual, até mesmo num sentido icônico: o desfolhamento da rosa se representa, de alguma forma, pela posição das palavras – no primeiro verso está a rosa que se desfolha, no último o chão onde caem as pétalas; no central, aquilo que une os dois planos num todo significativo, a observação pessoal do poeta, a sua ilusão de que a flor transitou do galho para o solo. Não há sentimentalismo, nem qualquer intenção simbólica ostensiva.
Leiamos agora o comentário do poeta: "A flor, que se desfolha, é bem uma lição de alta caridade: dir-se-ia que ela se despe do que é seu, que ela toda se dá à terra humilde, para que o pobre chão, a seus pés, pense que também é capaz de florir". Há um abismo entre os versos e este comentário piegas e banal. O poema, porém, poderia conservar-se bom poema e com sabor de haiku, apesar do comentário, não fosse o gesto decisivo do poeta em franquear a sua intenção moralizante por intermédio de um título. Eis como se lê o poema, na sua forma completa:

CARIDADE
Desfolha-se a rosa
parece até que floresce
o chão cor-de-rosa.
É muito sensível, não só neste caso extremado, mas em todos os outros, que o título empobrece os textos, pois determina a direção da leitura ou força uma decifração metafórica do terceto que nomeia. Apresentados com o título que têm, os tercetos de Guilherme de Almeida quase nunca provocam aquele tipo especial de emoção que nos é transmitida por um bom haicai de Issa ou Buson, mesmo em tradução para outra língua. Definida uma tal orientação da leitura, os haicais, dotados ou não de estrutura métrica e rímica compatível com a tradição da língua portuguesa, perdem aquele modo específico que aprendemos a identificar com o haicai. O que não os impede de ser, às vezes, bons poemas, em outra clave de leitura.
O ponto que queria sublinhar com esse exemplo é que não reside na estrutura métrica ou na utilização de rimas o sabor ou a ausência de sabor de haicai num dado poema, mas na disposição interna do discurso que se apresenta nesse texto. Por isso, fracassou sempre tão redondamente a tentativa de aclimatar o haiku a partir de um trabalho de pesquisa formal, de virtuosismo rímico e métrico. E por isso também a simples inclusão de um título pode contribuir tão decisivamente para alterar por completo a percepção que temos a respeito da classificação genérica de um poema apresentado a nós como haicai. Repetindo de outra forma: o que permite caracterizar um poema breve como haicai não é a forma externa adotada pelo poeta, mas sim uma determinada atitude discursiva que o poema deve fazer supor ou manifestar. Menos do que uma aclimatação, portanto, o trabalho de Guilherme de Almeida consistiu apenas em encarar o haicai como uma forma relativamente neutra, a que se conforma um discurso poético orientado quase sempre de acordo com a nossa própria tradição.
Num outro texto recolhido neste volume, o poeta nos dá a sua definição de haicai: "anotação poética e sincera de um momento de elite". A definição é interessante, pois apela para a sinceridade e para o caráter imediato do haicai. "Anotação sincera de um momento" – dificilmente se conseguirá juntar três palavras mais significativas para a arte da poesia de haicai. Porém, partindo de um conhecimento muito limitado do que fosse o haiku japonês – como se vê nos textos aqui recolhidos, o poeta acreditava mesmo que os haiku tivessem títulos e que o furuike ya (o velho tanque...) se chamava Solidão! –, Guilherme de Almeida acabou por não perceber que essa poesia que tanto o fascinava nascia de uma radical recusa ao sentimental e ao emotivo e de um apego igualmente radical à percepção mais imediata, à sensação concreta, visual, auditiva, tátil ou outra. Por não ter percebido isso é que também não percebeu completamente a função da palavra de estação (kigo) no haiku japonês.
Mas na composição, na prática dos seus versos, se deles eliminarmos os títulos que os destroem enquanto haicais, podemos ver que várias vezes Guilherme de Almeida captou a essencialidade do haicai, fazendo com que a fugacidade de uma sensação ecoasse nas diversas cordas da sensibilidade e da memória, num terceto vibrante. Como neste caso:

Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se: "Agora."

De novo, como no caso de "Caridade", sem título o poema se deixa ler como haicai: o gosto da amora (que é o kigo, pois representa uma determinada estação do ano) está no presente do poema, é sentido pelo poeta enquanto poeta. Essa sensação lembra outra, o que a intensifica e abre espaço para a evocação (algo sentimental para haicai, é verdade) de um momento passado de plenitude. Já com o título de "Infância", o gosto de amora faz parte do passado, é lembrança de um gosto, evocação mental e não sensação imediata. Com o título, a amora não é mais um kigo no sentido funcional de disparar uma determinada emoção. Agora, é o sentimento que recria a sensação como símbolo do bem perdido. Sem o título, podemos ler o poema num registro de -haicai, numa atitude de haicai. Com o título, reencontramos os limites da nossa própria tradição e temos já um outro texto, que faz parte de outro registro genérico.
Numa entrevista publicada em 1941, Guilherme de Almeida dizia, sobre a questão do título no haicai: "o título, no haicai é como o verbete num dicionário: o texto definirá o título". Infelizmente não é assim, e, no seu caso, o título é que define o texto. Tivessem sido publicados sem ele, um bom número dos tercetos que o leitor encontrará a seguir seriam bons haicais e o poeta teria, apesar da ostentação de virtuosismo, um lugar ainda mais relevante na história desse tipo de poesia no Brasil.