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terça-feira, 15 de novembro de 2022

Mais um pouco de haikai (2) - ideogramas, haiga etc

 Acabo de postar duas figuras. São dois haiga, isto é, haikais acompanhados de desenhos. Por conta de textos como o de Fenollosa, muitos de nós estamos acostumados a pensar que a caligrafia de alguma forma revela o lado pictórico do ideograma. Ou que, para dizer de uma forma familiar, ela revele os harmônicos, ou seja, os componentes ideogramáticos comuns que integram várias palavras.

Entretanto, a arte de caligrafar me parece muito mais sutil e complexa. Especialmente em haikai.
É que em japonês o calígrafo pode escolher entre a grafia "chinesa", isto é, "ideogramática" (kanji) e grafia silábica. E a escolha pode ser ditada ou por conveniência e equilíbrio da página, ou por alguma outra razão, como a seguir tento mostrar.
Ao mesmo tempo, o caráter "desmanchado" da grafia é uma arte. Não é o desenho, a consecução de cada traço que importa, mas o ritmo, o movimento que a gente faz com o pincel, a direção de cada um dos traços que constituem o kanji.
Além disso, o tamanho de cada letra, a força com que é traçada, a quantidade de tinta, tudo isso produz efeitos de sentido muito além da representação pictórica que nos acostumamos a imaginar na escrita japonesa.
Nas figuras que postei temos, num caso, um haiga de Bashô. É o que tem o desenho de flores.
Seu texto diz:
asagao ni ware wa meshi kû oto kana
junto aos bons-dias eu sou um homem que toma refeição – ah!
É um poema que se entende facilmente, pois alude ao lado errante e frugal da vida do poeta, que dorme ao relento ou sai para a caminhada muito cedo. O ponto mais sugestivo da caligrafia, em minha opinião, é a forma como o poeta grafou meshi (comida). Ele poderia ter escolhido um caractere chinês, um kanji, mas escolheu grafia silábica. Poderia ter escrito de modo "normal" a palavra, mas juntou as duas sílabas e as grafou desmanchando a segunda, que mal termina em gancho, como na forma impressa.
Já no outro, da libélula, de Kempû, diz assim:
tonbô ya mizu wo nabaeru yúgeshiki
a libélula inclina-se sobre a água – cena do anoitecer
Aqui, o interessante, do meu ponto de vista, é a grafia da palavra água, em kanji (ideograma). É a representação de três fios de água correndo, como aprendemos em Fenollosa. Mas neste caaso está desenhada de tal forma que, com pouco esforço, vê-se nela algo como o reflexo do inseto sobre a lâmina de água.





Haiga - poesia + imagem

Enquanto escrevia o último post, lembrei-me deste haiga (combinação de desenho e haikai). Creio que todo admirador da arte conhece este haikai de Bashô: kare eda ni karasu tomarikeri no aki no kure.
Já o comentei várias vezes, inclusive por conta do fato de que se trata de um poema que excede o número padrão de durações por segmento (durações, moras, que aqui denominaremos, por comodidade, sílabas): kare eda ni – 5 sílabas; karasu no tomarikeri – 9 sílabas; aki no kure – 5 sílabas.
A tradução ao pé da letra seria: no ramo seco o corvo acabou de pousar – entardecer (ou: final) de outono.
Ao longo dos anos, quando apresentei esse haikai em cursos e palestras, percebi que o corvo, essa ave sombria que muitos de nós só conhecemos a partir do poema de Poe, o ramo seco, o entardecer – tudo isso terminava por exaltar a imaginação romântica e carregar o quadro de tintas dramáticas.
Para muitos, o haiga, que traz caligrafia de Bashô e desenho de um seu discípulo chamado Morikawa Kyoriku, tinha o efeito de anticlímax. Era chocante o contraste entre o que imaginaram e o desenho discreto, com aquele passarinho amuado e ainda por cima retratado de perfil, quase de costas. Mas não há como fugir: Bashô deve ter aprovado, ou não escreveria o haikai no desenho de Kyoriku.
Mas há outro haiga, desta vez com desenho e caligrafia do próprio Bashô, que só conheci depois e no qual os efeitos de anticlímax que acabo de descrever são ainda mais intensos. É o que está em qualidade pior de imagem e em preto e branco, abaixo.

Não sei se a forma como conduzi a conversa naquelas ocasiões fez com que vissem a beleza que me impressionava, tanto no haikai, quanto no desenho. Para mim, a melancolia é mais intensa quanto mais minimalista o verso, afastado justamente qualquer aspecto dramático ou sentimental. Na verdade, talvez nem mesmo devesse falar em melancolia a propósito desse haikai. Ele apenas nos diz que as coisas são como são; o ritmo das estações é inapelável; o corvo que acaba de pousar num galho é apenas um corvo pousado num galho. E, no entanto, que belo retrato do clima próprio do final de outono, quando o estado geral da natureza sugere recolhimento, preparação para o inverno que se aproxima e começa por se indicar no galho seco. Já o corvo, sempre barulhento e agitado, surge no desenho bastante encolhido. E nada se diz sobre seu típico e contínuo crocitar. Apenas que ele acabou de pousar ali.
A propósito, há um outro haikai que vale a pena trazer à baila. Este, de Kishú:
Até mesmo o corvo
Passa em silêncio —
Entardecer de outono.

Comparando os dois haikais, o de Bashô me parece mais impressionante. À primeira leitura, o de Kishú pode até parecer melhor, porque a cena tem movimento e o sentido é óbvio. Já no de Bashô tudo está reduzido ao mínimo. Por isso, não é difícil ver na cena do corvo que acaba de pousar no galho seco uma figura do outono, ou mesmo do inverno que se anuncia. No caso do haikai de Kishú, o entardecer de outono é um enquadramento sazonal e uma explicação, por assim dizer. No de Bashô é também um enquadramento, claro, mas o haikai não tem nada de explicativo. A cena se torna um símbolo (ou mesmo, forçando um pouco a barra: uma metáfora) do outono que termina e por isso desperta em nós o mesmo tipo de sentimento ou disposição de espírito que aquele preciso momento do ciclo natural. 






segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Um haiga de Bashô

 Ainda revisitando o mundo do haicai me deparo com o desenho que Bashô fez para ilustrar um seu haicai famoso. Aquele que diz: um corvo pousado num ramo seco – entardecer de outono. Ou: um corvo acabou de pousar num galho seco - entardecer de outono. E me lembro: quando li esse haicai pela primeira vez eu não conhecia esse desenho, nem tinha visto como nele vem o haicai grafado quase todo em silabário. Minha imaginação, ao ler, pintou a cena: uma árvore sobre uma paisagem desolada, na qual a ave aparecia em posição de destaque. Talvez na origem dessa fantasia estivesse o corvo do Poe, com sua figura funesta dominando o busto de mármore, e eu apenas o tivesse transposto para um lugar ermo, mas em primeiro plano. Fosse como fosse, a verdade é compus mentalmente uma cena carregada. Algum tempo depois, quando preparava o livro sobre a história do haicai, deparei com o desenho que Bashô fez para acompanhar o haicai e fiquei um pouco perplexo. Então era isso? Aquele passarinho pousado num arbusto que mais parecia um bonsai? E o haicai vinha lá em cima, em duas linhas bem compridas, por conta da forma de escrita escolhida? Não havia dramatismo ali. Pelo menos, não do tipo que eu imaginava na minha cena quase fantasmagórica. Acredito que essa experiência, a princípio um pouco deceptiva, trouxe uma lição e orientou, dali por diante, a minha maneira de imaginar e interpretar as cenas pintadas apenas com palavras nos haicais.

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Maria Lúcia Outeiro Fernandes, Sandra Mara Franchetti e outras 29 pessoas
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