Relações brasileiras de Eça de Queirós
[Este texto foi escrito para servir de introdução à publicação da correspondência de Eça com brasileiros, nas obras completas do autor, publicadas pela Editora Aguilar em 2000]
No conjunto de cartas apresentado a seguir, não
são muitos os nomes brasileiros. Deve-se isso, entretanto, mais ao acaso do que
à real dimensão das relações brasileiras de Eça de Queirós, que foram sempre,
principalmente depois que se instalou em Paris, muitas e variadas. Assim, não
há aqui nenhuma carta de Eça a Joaquim Nabuco, que ele conheceu e com quem
quase com certeza se correspondeu. Tampouco há aqui qualquer carta endereçada a
Olavo Bilac, apesar de sabermos que o poeta brasileiro freqüentou a casa do
romancista português e que ambos elaboraram, para diversão da família de Eça,
uma jocosa peça de teatro a quatro mãos.
Esses são os nomes mais conhecidos, mas temos
elementos para imaginar que não foi pequeno o volume da correspondência trocada
entre Eça de Queirós e vários dos muitos brasileiros que, pela mão de Eduardo
Prado ou de Domício da Gama, foram levados ao seu conhecimento. Perdidas ou
ainda por encontrar, muitas cartas de Eça devem ter cruzado o Atlântico, como
extensão e continuidade das sessões de cavaqueira que tornavam a sua casa um
centro obrigatório para os intelectuais do nosso país, quando em viagem pela
Europa. Das cartas de Eça, quase tudo se perdeu ou está ainda por achar em
arquivos espalhados pelo nosso país. Já a grande maioria das que daqui foram
enviadas para lá com certeza desapareceu, pois não tinha o autor de Os Maias
o hábito de conservar as cartas que ia recebendo. E para constatar que o
desaparecimento das cartas enviadas a Eça por amigos brasileiros não constitui
um caso particular, devido a alguma diferença de tratamento, basta lembrar que,
da correspondência mantida com “Santo” Antero ao longo de quase trinta anos,
só nos restaram duas cartas. Se Eça não conservou os papéis a ele enviados por
aquele de quem se confessou discípulo para toda a vida, que esperar do destino
de outra correspondência, certamente muito menos importante para ele tanto do
ponto de vista intelectual, quanto afetivo?
Assim, devemos ter muito claro que o material
hoje disponível, no que diz respeito ao Brasil, é apenas uma parte muito
pequena do que foi de fato enviado e recebido, e que a presença do mundo
intelectual brasileiro no quotidiano de Eça, principalmente no período parisiense,
foi muito maior e significativa do que a mera identificação dos nomes dos
destinatários das cartas e o teor dos textos aqui reunidos poderia sugerir.
Feita essa primeira observação, identifiquemos
agora os brasileiros que se incluem na lista dos destinatários desta
correspondência. Em primeiro lugar nessa lista vem Eduardo Prado. Amigo do
romancista, freqüentador de sua casa, Eduardo Prado foi, sem dúvida, uma
presença importante na vida do escritor e da família Queirós.
Eduardo Prado é hoje um autor quase esquecido.
No seu tempo, entretanto, ocupou um lugar de grande destaque na vida cultural
brasileira. Monarquista, propagandista anti-republicano, historiador empenhado
em mostrar o caráter positivo da ação da Companhia de Jesus no Brasil, viajante
insaciável desde a mocidade, deixou uma obra extensa, mas em grande parte
voltada para os problemas do momento. Seus livros hoje quase que só apresentam
interesse para os especialistas e estudiosos da história brasileira dos
primeiros anos da República. É certo que ainda oferece atrativos a leitura do
seu A ilusão americana, pela amplitude de visão que caracteriza a sua
análise das relações entre o nosso país e os Estados Unidos, no momento em que
começava a se definir o alinhamento norte-sul que duraria até hoje, e também é
certo que o estilo do polemista de Fastos da ditadura militar no Brasil ainda
causa impressão. Mas são textos que não oferecem atrativos para o público em
geral, e é uma real infelicidade que aquela parte de sua obra que talvez
pudesse manter vivo o seu nome na literatura brasileira se tenha perdido ou
deixado de ser publicada. É o caso de um romance de juventude, de que temos
apenas esparsa notícia, e do livro a que dedicou o melhor de seu talento de
historiador e que desapareceu quando da sua morte prematura: uma biografia do
Padre Manuel de Moraes. Esse estudo enfocava, em 700 páginas, a curiosa figura
de um jesuíta interessado pela natureza americana, que primeiro lutou contra os
holandeses, em Pernambuco e depois, renegando a fé e a bandeira, uniu-se a
eles, transferiu-se para a Holanda, casou-se, tornou-se teólogo calvinista,
para finalmente regressar ao Brasil, onde foi preso pela Inquisição e condenado
à morte. Centrado na biografia do padre, procedia Eduardo Prado, ao que tudo
indica, a um estudo aprofundado e original da até então quase desconhecida vida
colonial brasileira. Composto como um painel, um retrato de época, o volume
deveria aproximar-se, pelo escopo, dos que seu amigo Oliveira Martins dedicara,
no final da vida, às grandes figuras da dinastia de Avis e que tanto
impressionaram Eça de Queirós. Na mesma linha parece ter-se desenvolvido, sem
que saibamos hoje se teria sido concluído o livro, ou abandonado a meio, um
trabalho que lhe consumiu imensa pesquisa: a vida do Padre António Vieira.
Tendo sua obra acabado por se reduzir a algumas
conferências mais ou menos eruditas e a muitos textos de intervenção política,
Eduardo Prado passou à história principalmente como propagandista
anti-republicano e diletante intelectual; isto é, um homem culto, de vários
interesses culturais e políticos que não redundaram num conjunto de textos
coeso e realmente significativo do ponto de vista histórico ou literário. Esse
é, na verdade, o retrato com que o fixou José Veríssimo e que a crítica
posterior não fez mais do que emoldurar ao sabor do tempo: ideologicamente,
Eduardo Prado teria sido um dos únicos escritores inteiramente reacionários da
nossa literatura; literariamente, essencialmente um jornalista; intelectualmente,
um assistemático “amador das coisas do espírito”.[1]
Do ponto de vista da história da cultura
brasileira, a importância de Eduardo Prado vai, entretanto, muito além do que
dele nos ficou em letra de imprensa. Sua ação intelectual, como vemos por meio
dos depoimentos de seus contemporâneos e pela correspondência que trocou com
brasileiros e portugueses, foi bastante ampla, e pode-se dizer que, não só pela
sua situação social, mas também pela inquietude de espírito e pela dedicação
incansável aos assuntos brasileiros, Eduardo Prado foi uma espécie de centro de
irradiação de um esforço de pensar a nossa realidade e um elo de ligação
importantíssimo entre os intelectuais portugueses da Geração de 70 e seus
contemporâneos deste lado do Atlântico.
Se tivéssemos de definir em poucas palavras os
traços centrais da personalidade de Eduardo Prado, tal como o viram os seus
contemporâneos, dois deles seriam, sem dúvida, a paixão do documento e dom de
fazer amigos. Aliados a uma vivência internacional e a uma intensa curiosidade
pelas várias formas de civilização e pelas novas conquistas da ciência, compõem
esses traços uma figura destacada no panorama brasileiro finissecular, que só
terá talvez par nesse outro dândi, igualmente erudito e igualmente
internacional, Joaquim Nabuco.
No que diz respeito ao seu ambiente brasileiro,
Eduardo Prado integrou um grupo notável de homens ligados à monarquia do Segundo
Império. Tendo-se empenhado intensamente na crítica à República, e não tendo
sobrevivido muito a ela, não se pode saber se ele teria, como Nabuco o fez a
partir de 1899, dedicado efetivamente a sua enorme capacidade de trabalho ao
país. Mas é o que tudo indica que aconteceria, pois quando o mesmo Nabuco, em
1899, recebeu o convite para servir como diplomata o governo do novo regime e o
consultou, respondeu Eduardo Prado: “Aceite e, se quiser me levar para
secretário, aceitarei também.”[2] Faltou-lhe talvez tempo, depois de um
primeiro período de repúdio e de ostracismo (que no seu caso, dada a violência
com que combateu o novo regime seria forçosamente mais longo do que, por
exemplo, o de Nabuco), para poder deixar de lado o orgulho e as divergências
políticas e colocar em primeiro plano as questões mais amplas de interesse
nacional.
Do ponto de vista da história literária, não há
uma denominação usual para esse conjunto de intelectuais de que fez parte
Eduardo Prado, e é difícil estabelecer, em termos cronológicos, uma denominação
geracional que englobe tanto Eduardo Prado (1860-1901), quanto Joaquim Nabuco
(1849-1910), Domício da Gama (1861-1925), o Barão do Rio Branco (1845-1912) e
ainda Capistrano de Abreu (1853-1927). José Veríssimo, quando tratou do
florescimento da crítica e do interesse pela história nacional na segunda
metade do século XIX, utilizou, para identificar o conjunto dessa produção, o
nome “modernismo” e não um rótulo geracional, e o denominador comum que aponta
para ele é a influência do grupo de escritores portugueses reunidos à volta de
Antero de Quental, no movimento coimbrão de 1865, que a historiografia portuguesa
subseqüente identificaria como Geração de 70.
É verdade que a aposta de Veríssimo na profunda
influência portuguesa para a constituição do pensamento crítico do “modernismo”
dos anos 70-80 tinha como pano de fundo a sua polêmica contra o papel atribuído
por Romero à chamada Escola do Recife, e especificamente a Tobias Barreto, como
fermento da renovação do pensamento crítico brasileiro. Mas, do nosso ponto de
vista, não é prejudicada na sua essência a propriedade da aproximação entre os
jovens brasileiros dos anos 80 e os intelectuais portugueses que promoveram as
Conferências Democráticas do Casino Lisbonense em 1871.
De fato, é bem conhecida a relação de amizade
que uniu não apenas Eduardo Prado, mas também outros intelectuais do seu
círculo de relações a Eça de Queirós, que foi um dos principais expoentes da
Geração de 70. Do lado brasileiro, privaram com o escritor português Domício da
Gama, o Barão do Rio Branco e Joaquim Nabuco. No círculo de Eça, por sua vez,
faziam-se presentes Ramalho Ortigão e, embora por uma única vez em Paris,
Oliveira Martins. Por outro lado, ajudando a compor o quadro de uma profunda
integração finissecular entre os homens da Geração de 70 portuguesa e o
“modernismo” brasileiro, há a vertente republicana e positivista, em que a
presença mais decisiva é a de Teófilo Braga.
Entretanto, é importante não exagerar o peso
das afinidades ideológicas. No final do século, à volta do eixo formado pela
casa de Eça em Neully e pelo palacete de Eduardo Prado na Rua de Rivoli
gravitava uma vasta gama de intelectuais brasileiros e portugueses trazidos a
Paris por motivos vários -- diplomacia, viagens de formação, turismo cultural
-- e de várias extrações políticas e sociais. É verdade que a tônica era
intelectual, pois se elaboravam planos de revistas, discutiam-se os rumos do
Brasil depois da República, os desastres da economia portuguesa depois do Ultimatum
e as grandes questões do tempo, como o atesta a correspondência já publicada de
Eça, Ramalho e Martins; mas muito mais do que o debate político ou literário, o
que dava a liga do convívio luso-brasileiro em Paris era o prestígio do
escritor português e a personalidade cativante de Eduardo Prado, bem como o
cosmopolitismo que pautou a vida de algumas das personalidades mais notáveis
do final do Segundo Império, como Nabuco, Domício da Gama, Rio Branco e o
próprio Prado.
Nascido em 27 de fevereiro de 1860, em São
Paulo, Eduardo Prado era filho de Martinico Prado e D. Veridiana da Silva
Prado. A família Prado, além da riqueza consolidada no negócio do café, possuía
grande expressão política não apenas local, mas em nível nacional, sendo o
irmão mais velho de Eduardo, Antonio Prado, conselheiro do Império, onde ocupou
o ministério da Agricultura e do Exterior. Dos irmãos de Eduardo Prado,
destacou-se ainda na política Caio da Silva Prado, que foi presidente do Ceará,
e também não foi um desconhecido o Dr. Martinho Prado, promotor público e
adepto do regime republicano.
Eduardo Prado, de todos, foi o único que não
teve carreira definida. Tendo cursado Direito, bacharelando-se em 1881, nunca
exerceu continuadamente qualquer cargo público. Prolongando a sua formação,
como os jovens aristocratas ingleses dos séculos XVIII e XIX, assim que obteve
a carta de bacharel dedicou-se a uma série de viagens: primeiro pela América do
Sul, de que resultam uma série de crônicas publicadas na Gazeta de Notícias;
depois, começando em agosto de 1886, fez uma volta ao mundo, em que consumiu
mais de seis meses e de que nos ficou um diário um tanto lacunar, recolhido
postumamente, em 1902, como segunda parte do volume Viagens -- América,
Oceania e Ásia.
Entre a data da sua formatura e o ano de 1892,
foram dez anos fora do Brasil, viajando ou se estabelecendo em capitais
européias e americanas. É nessa época que ficou, por algum tempo, como adido à
legação brasileira em Washington e, posteriormente, como adido à legação de
Londres. E foi também durante esse período que residiu longo tempo em Paris, a
partir de 1886, numa mansão ricamente mobiliada e dotada do que de mais novo
havia em termos de inovações tecnológicas na Europa. Ainda em Paris, participou
da representação brasileira na Exposição de 1889, para a qual escreveu dois
textos: L’Art e Immigration.[3]
Como atestam essas publicações, do ponto de
vista intelectual os anos em que permaneceu na Europa foram um período muito
produtivo, no qual Eduardo Prado coligiu uma enorme quantidade de documentos e
informações sobre assuntos brasileiros. E também sua passagem por Washington e
Londres, como adido cultural, foi plena de frutos, não apenas porque pôde
trabalhar na organização dos arquivos da legação brasileira, na capital
americana, mas também porque, durante a estada em Londres, pôde levar adiante
suas pesquisas sobre o Brasil colônia, com vistas à elaboração dos das duas
biografias em que estava então interessado: a do Padre António Vieira e a do
Padre Manuel de Moraes. Data desse primeiro período de sua vida internacional o
aprofundamento da amizade com o Barão do Rio Branco, e talvez também, segundo
hipótese de Capistrano de Abreu, a paixão pela história do Brasil, em que se
tornaria, na opinião nada desprezível desse grande historiador, um dos maiores
especialistas.[4]
A grande arte, porém, de que Eduardo Prado era
um dos mais destacados cultores do seu tempo é outra: a conversação elegante e
intelectualizada, a tertúlia oitocentista. Como Eça, Prado era uma presença
cativante e estimulante, e sobejam documentos sobre a sua capacidade de incutir
ânimo, idealizar projetos, levar adiante empreendimentos intelectuais e
cultivar amizades. Um dos mais conhecidos depoimentos a esse respeito é o que o
próprio Eça publicou, em 1888, no número 22 da Revista Moderna. Ali
lemos este tocante elogio dessa personalidade que marcou tão profundamente o
final de século luso-brasileiro: “pela inata alegria, pela vivacidade
inventiva, pela veia ricamente cômica, pela abundância e delicioso humorismo da
anedota, pela simplicidade que se pueriliza permanecendo fina, pelo elegante
desdém da ostentação, pela bendita facilidade em se interessar, pela prontidão
do entusiasmo, pela inteligente mansidão, pelo apego afetivo, não há mais
desejável companheiro”. [5] Também Maria Amália Vaz de Carvalho
registrou, em termos igualmente efusivos, o fascínio que Prado exercia sobre os
contemporâneos pela sua conversação culta e inteligente: “Conhecia os traços
sociais de todas as civilizações, assim como sabia o que era o instinto
primordial de todas as raças. Lera e sentira Ruskin antes de nenhum
latino, creio eu, conhecer o hoje tão famoso e citado esteta inglês. Carlyle
era-lhe tão familiar como Shakespeare, e Goethe ensinara-lhe tanto como Dante
ou Maquiavel. Ao pé dele respirava-se um ar de alta intelectualidade, porque
vivera sempre para as idéias e pelas idéias...”[6]
Tal personalidade exerceu sobre Eça de Queirós
um fascínio duradouro e que transcendeu o âmbito das relações pessoais, e há
quem sustente, com bastante verossimilhança, que o feitio aristocrático do
brasileiro, sua história de viagens incessantes pelo mundo todo e sua
curiosidade intensa pelos novos rumos da ciência e da tecnologia, informaram,
pelo menos parcialmente, a construção de duas bem conhecidas criaturas
ficcionais do escritor português: o dândi Fradique Mendes (que inclusive
dirige uma de suas cartas ao próprio Prado) e o não menos refinado Jacinto, de A
cidade e as serras.[7]
A dizer ainda, para situar melhor o contexto
das cartas aqui reproduzidas, que Eduardo Prado voltou ao Brasil em 1892 para
aqui combater o novo regime político do país. Fundou para isso um jornal, O
Comércio de São Paulo – que foi empastelado pelos republicanos em 1897 – e,
além de vários artigos, que se seguiram aos primeiros de 1889, quando ainda
estava na Europa, escreveu, no bojo da campanha política o volume A ilusão
americana (1893). Nos seus últimos anos, foi reconhecido intelectualmente
com a eleição para a Academia Brasileira de Letras e para o Instituto Histórico
e Geográfico. Foi para tomar posse neste último que viajou ao Rio de Janeiro,
no início de agosto de 1901, local onde contraiu febre amarela, de que veio a
falecer no dia 30 do mesmo mês, com 41 anos de idade.
Juntamente com Eduardo Prado, e desfrutando
também de grande intimidade com o autor de Os Maias, fez-se presente,
principalmente nos últimos anos de Eça, o escritor e diplomata brasileiro
Domício da Gama.
Domício conheceu Eça de Queirós em Londres, em
1888, quando foi pela primeira vez à Europa, com o objetivo de cobrir, para A
Gazeta de Notícias, a Exposição Universal de 1889, na França. Tendo ido
diretamente para Londres, apresentou-se aí ao romancista português, com uma
carta de recomendação do proprietário do jornal carioca, em que também Eça escrevia.
Daí por diante, serão parceiros em pelo menos três empreendimentos culturais e
cultivarão uma amizade na qual estarão incluídos a mulher e os filhos de Eça
Antes,
porém, de referir esses projetos e a relação afetiva entre Domício e Eça,
vejamos quem foi esse brasileiro singular, hoje ainda mais esquecido do que
Eduardo Prado.
Domício da Gama nasceu em 1861, em Maricá, no
Rio de Janeiro, e foi batizado como Domício Forneiro. De família humilde e
origem provavelmente negra, teve os estudos custeados pelo padrinho, Sebastião
de Azevedo Araújo e Gama, cujo sobrenome adotou posteriormente. Tendo
interrompido os estudos superiores na Escola Politécnica, foi primeiramente
professor de geografia e, depois, jornalista.
Quando foi designado para cobrir a Exposição,
Domício já era conhecido e respeitado como jornalista e como literato. Sua obra
propriamente literária, nesse momento, limitava-se a uns tantos contos que, com
o apoio de Machado de Assis, publicara na Gazeta Mas parecia então
bastante promissora, como atesta o Retrospecto literário do ano de 1888,
de Sílvio Romero. Estava aí Domício lado a lado com Raul Pompéia, como
representantes de um novo naturalismo, mais amplo e mais humano do que o da
escola de Zola. E prosseguia o crítico: “São muito moços, começam apenas, não
deram ainda toda a medida de sua capacidade; mas, ou me engano muito, ou este
país tem neles dois escritores de altura acima do comum.” A junção desses dois
nomes, como destacadas vocações artísticas representativas da nova tendência da
prosa brasileira do final do século, também se dá na carta de apresentação que
escreveu Capistrano de Abreu, em 1888, ao seu amigo Barão do Rio Branco,
recomendando o jovem Domício.
Ao longo dos anos subseqüentes, entretanto, Domício
se foi dedicando cada vez mais ao estudo das questões geográficas e históricas
vinculadas às negociações dos tratados de fronteiras do Brasil e à diplomacia,
e cada vez menos, ao que parece, à elaboração e divulgação de sua obra
literária. Entrando para o serviço público em 1891, é primeiro secretário de
Rio Branco; depois, diplomata, servindo na Colômbia, no Peru, na Argentina, no
Chile e nos Estados Unidos. Finalmente, em 1919, por um breve período, foi
ministro da Relações Exteriores, cargo antes ocupado por Rio Branco.
De sua obra literária nos ficaram apenas dois
volumes em livro: Contos a meia tinta, publicado em Paris, em 1891; e Histórias
curtas, publicado no Rio de Janeiro, pela Ed. Francisco Alves, em 1901. Sem
reedições, ficaram praticamente desconhecidos, embora sua leitura sugerisse a
José Veríssimo o julgamento de que o autor estava “fadado a ser o nosso Poe”.
A crítica, até o momento, parece limitar-se a
repetir, sobre sua obra, a apreciação de Lúcia Miguel Pereira, que via seu
estilo como “excessivamente trabalhado” – embora o colocasse ao lado de Raul
Pompéia, como a melhor expressão da nossa prosa parnasiana de ficção. Uma
leitura desarmada dos seus textos, entretanto, permite afirmar que ainda não se
fez justiça ao escritor, que certamente mereceria reedição e reavaliação. E é
este, certamente, o momento de fazê-lo, agora que o cânon modernista parece
estar finalmente deixando de determinar tão decisivamente a historiografia e a
crítica literária brasileiras como o fez nos últimos quarenta anos.[8]
No que diz respeito à sua vida intelectual na
Europa, Domício participou de alguns projetos, juntamente com Eça de Queirós,
como dissemos anteriormente. A sua primeira colaboração se deu na Revista de
Portugal, periódico fundado por Eça, de que saíram 24 números entre julho
de 1889 e maio de 1892. O papel principal de Domício nessa publicação foi
escolher e contatar os colaboradores brasileiros. Alguns anos depois, vamos
encontrá-lo na Revista Moderna, importante publicação custeada e
dirigida por um brasileiro de fortuna – Martinho Carlos de Arruda Botelho. Foi
na Revista Moderna, que teve 30 números, estendendo-se de maio de 1897 a
abril de 1899, que Eça publicou parte de A ilustre casa de Ramires e
vários contos e crônicas, além do conhecido texto sobre Eduardo Prado. E foi
nela que, no número 10, datado de 20 de novembro de 1897 e dedicado
integralmente a Eça de Queirós, Domício publicou um texto de homenagem ao amigo
português. Finalmente, um último trabalho conjunto: a pedido de Ferreira de
Araújo, proprietário da Gazeta de Notícias, organiza, com Eça de Queirós
e Batalha Reis, um suplemento parisiense do jornal.
As cartas aqui recolhidas atestam a amizade
entre Eça e Domício, que, além de ser o destinatário de nada menos do que doze
cartas, é referido em várias outras. É que, como mostra o conjunto dessa
correspondência, foi Domício, juntamente com Ramalho Ortigão e Eduardo Prado, um
dos amigos mais chegados à família nos anos finais da vida do romancista. De
fato, como podemos ver pelas cartas escritas por D. Emília, Domício se
correspondia inclusive com ela e com os filhos do casal. E da natureza e
profundidade do afeto que o unia a Eça é testemunho este trecho de carta
enviada à viúva, logo em seguida à morte do escritor: “Na mesma semana recebo a
notícia da morte de minha mãe e da de Queirós. Nem sei dizer qual das duas mais
me aflige. Só sinto que desapareceram ao mesmo tempo dois dos grandes
interesses da minha vida e é um grande desalento a perda dos amparos da aflição
que a gente tem no mundo”.
Além de Eduardo Prado e de Domício da Gama, há
que mencionar, como pessoa do círculo de brasileiros com quem convivia Eça de
Queirós, o nome do Barão do Rio Branco, José Maria da Silva Paranhos Jr.
(1845-1912). Paranhos foi, tanto quanto Rui Barbosa, uma das figuras públicas
mais destacadas das primeiras décadas da República brasileira. Filho do
Visconde do Rio Branco, que foi ministro do Império e chefe do ministério entre
1871 e 1875, começou sua carreira como professor do Colégio Pedro II, onde por
alguns meses ensinou geografia do Brasil. Mas logo passou à política
partidária, com a ajuda poderosa de seu pai. Seu futuro parecia definido, como
herdeiro da história política do Visconde, mas uma ligação romântica com uma
atriz belga, de quem teve um filho no começo dos anos 70, dificultou a sua
vida política na sociedade conservadora do Segundo Império e talvez tenha
contado bastante para a sua decisão de iniciar a carreira diplomática. Fosse
como fosse, em 1876, depois de um mandato como deputado por Mato Grosso, é
nomeado para o consulado brasileiro de Liverpool. Não se adaptando à cidade,
acaba por optar pelo deslocamento constante, trabalhando na Inglaterra e
residindo em Paris.
Como diplomata, destacou-se pela negociação de
tratados de limites com outros países, nos quais, valendo-se dos seus vastos
conhecimentos históricos e geográficos, conseguiu sucessos realmente notáveis.
Graças a ele, foram definidos pacificamente e a favor do Brasil os litígios
territoriais com a Argentina (1895), com a Guiana Francesa (1900), com a
Bolívia (1903) e com o Uruguai (1908). Em conseqüência daqueles primeiros
sucessos, em 1902 foi convidado a ocupar a pasta das Relações Exteriores e
regressou ao Brasil, onde permaneceu, ocupando o mesmo cargo pelos dez anos que
lhe restariam de vida.
Além de diplomata, Rio Branco foi também
notável pesquisador da história brasileira, tendo escrito, entre outros
trabalhos, um “Esboço da História do Brasil”, publicado durante a Exposição de
Paris, em 1889, e o verbete Brésil, da Grande Enciclopédia dirigida por
Lavasseur, além de uma biografia de D. Pedro II, que as conveniências dos
primeiros tempos republicanos fizeram que saísse em nome de um rabino de
Avinhão, chamado Benjamin Mossé..
Embora deslocando-se freqüentemente, de acordo
com as missões que lhe eram atribuídas, até 1901 – um ano depois da morte de
Eça, portanto – Rio Branco está presente na mesma cidade que o autor de Os
Maias. Como era bastante ligado a Domício e Eduardo Prado, devia também ser
presença usual nas reuniões luso-brasileiras da casa deste último ou na de Eça.
Não temos registros epistolares mais amplos, que permitam aferir a real
extensão das relações entre o fundador da nova diplomacia brasileira e os seus
contemporâneos portugueses, mas sabemos que várias vezes Rio Branco se valeu
dos conhecimentos pessoais de Eça de Queirós, quando alguma de suas missões
implicava a necessidade de contatos em Portugal, para a localização de mapas e
outros documentos. É uma carta dessa natureza, justamente, a única de que
dispomos no momento e vem reproduzida nesta correspondência.
Como destinatários de cartas de Eça, cumpre
finalmente mencionar dois outros brasileiros, representados com uma carta cada
um: Augusto Fábregas (1859-1893) e Machado de Assis (1839-1908).
O primeiro foi teatrólogo, jornalista e redator
do periódico O País. Em 1890 levou à cena uma adaptação de O Crime do
Padre Amaro, que começou a ser representada no Rio de Janeiro em 25 de
abril de 1890, obtendo grande êxito. A carta de Eça a ele destinada trata
exclusivamente da questão dos direitos de autor sobre a encenação.
O segundo dispensa apresentações. A carta de
Eça a Machado se deve, como é sabido, à publicação, pelo romancista brasileiro,
de uma crítica ao romance O Primo Basílio, a revista O Cruzeiro,
em abril de 1878, sob o pseudônimo de “Eleazar”.
A crítica de Machado – que na mesma época
publicava em folhetins o seu Iaiá Garcia – atacava o romance de Eça a
partir de dois ângulos principais. Por um lado, via nessa obra uma realização
de uma tendência literária que não merecia a sua aprovação: o realismo de Zola.
O Naturalismo, segundo o futuro autor de D. Casmurro, produzia uma
literatura sensualista e escandalosa, que atendia ao gosto rebaixado do público
contemporâneo. E era por ser uma tradução para o português do receituário da
moda que fazia sucesso na França, pensava Machado, que o livro de Eça estava
obtendo tão notável sucesso de público. Isso porque, pelo lado da fatura, o
livro tinha, de seu ponto de vista, graves defeitos, que iam desde a forma de
construir as personagens até a maneira de compor a trama, passando pela própria
condução da narração. As personagens, segundo Machado, careciam de densidade
moral. Dessa característica, derivava o defeito básico da trama, que era a
necessidade de o autor introduzir elementos dramáticos externos, já que não
havia drama psicológico ou moral que tensionasse e determinasse a sucessão dos
acontecimentos. E uma vez que não era o estudo dos caracteres o que interessava
ao autor de O Primo Basílio, a narração não distinguia o essencial do
acessório, comprazendo-se muitas vezes na descrição infuncional.
A crítica de Machado parece ter encontrado
repercussão em Eça de Queirós. Mas certamente encontrou muito maior repercussão
na fortuna crítica de O Primo Basílio –
principalmente na sua vertente brasileira – e até agora informa muitas
aproximações ao texto de Eça. Hoje, com a distância proporcionada pelos mais de
cem anos, podemos ver mais claramente que, empenhado na criação de uma tradição
cultural em nosso país, Machado leu o texto de Eça de uma perspectiva muito
interessada. De fato, é patente no texto um esforço de combate à narrativa
naturalista, que Machado entendia, naquele momento, como uma narrativa que
favorecia a descrição e a notação sensual em prejuízo da análise das paixões e
da complicação lógica do enredo. A crítica de Machado se processava, assim, a
partir de uma concepção de romance que era oposta à que ele identificava no
texto de Eça e que ele mesmo tentava pôr em prática no seu Iaiá Garcia:
o bom romance era, para ele, naquele momento, o que investia na construção de
personagens complexas, movidas por paixões e motivações morais que garantissem
o interesse dos desdobramentos da narrativa. O que Machado combatia em O
Primo Basílio não era apenas uma específica realização literária, mas
também, tendo em mente o sucesso de público do livro de Eça, a possível
influência do estilo naturalista sobre a jovem literatura brasileira. Apoiado
numa perspectiva marcadamente romântica, Machado tentava mostrar que o perigo
da disseminação do Naturalismo era interromper a continuidade histórica da
literatura de língua portuguesa, e o objetivo de sua crítica se revelava muito
claramente quando ele expressava a esperança de superação do hiato causado pela
súbita voga do Naturalismo: terminada a moda – que ele mesmo, com esse texto,
se esforçava por combater –, a “arte
pura” voltaria “a beber aquelas águas sadias d’O Monge de Cister,
d’O Arco de Sant’Ana e d’O Guarani.” Nessa frase revela-se uma
conjunção de sentidos que percorre todo esse texto de Machado, e procede dos
pressupostos românticos que ainda eram os seus: a arte pura, as águas sadias e
o beijo castíssimo de Eugênia Grandet se opunham defensivamente à arte impura,
às águas perversas da maré naturalista e à sensualidade mais ou menos vazia que
via no romance de Luísa. Esse poder de corrupção do romance de Eça era
claramente tematizado por Machado, que condenava “essa pintura, esse aroma de
alcova, essa descrição minuciosa, quase técnica, das relações adúlteras”, e
concluía pela afirmação do perigo que ele representava para o público leitor:
“a castidade inadvertida que ler o livro chegará à última página, sem fechá-lo,
e tornará atrás para reler outras”.[9]
A carta de Eça a Machado revela que o
romancista português assimilou a crítica a O Primo Basílio, situando-a
como divergência de concepção sobre o papel e o lugar da literatura na vida
social. De fato, propõe-se a defender em ocasião futura – que não parece ter-se
concretizado – não as realizações particulares que são os seus romances, mas os
princípios de que procedem, que são os da “escola que eles representam e que eu
considero como um elevado fator do progresso moral da sociedade moderna”. Ou
seja: respondendo ao que sentiu como o ponto central da crítica de Machado – a
questão moral –, afirma o caráter progressivo, crítico e moralizante da escola
naturalista, deixando cair para segundo plano – já que não as traz à discussão
– as restrições específicas, estéticas e técnicas, que lhe fizera o romancista
brasileiro.
É possível que, com o prosseguimento da
pesquisa de fontes no Brasil, em futuro próximo venham a ser acrescentadas às
cartas atualmente conhecidas, algumas das muitas que Eça de Queirós certamente
endereçou a intelectuais brasileiros. De fato, muito há ainda por fazer em
arquivos nacionais ainda pouco explorados. No momento, entretanto, são esses os
correspondentes brasileiros conhecidos, sobre os quais nos competia aqui
alinhavar estas rápidas informações.
[1] José Veríssimo. História
da literatura brasileira. Brasília, Editora da UnB, 1963, pp. 292-3.
[2] Apud Paulo Prado, no
prefácio a Coelho, Henrique. Joaquim Nabuco — esboço biográfico. São
Paulo, Monteiro Lobato Ed., 1922.
[3] Esses dois textos foram
escritos para a Exposição Universal e publicados no volume Le Brésil en 1889.
Paris, Librairie Charles Delagrave, 1889.
[4] “Dos Estados Unidos passou a
Europa, onde se ligou intimamente ao barão do Rio Branco. Talvez desta
circunstância se originasse o amor pela história do Brasil; certo é que esse
amor se tornou em verdadeira paixão, e nele acabou cedo com o vago diletantismo
de que nós todos padecemos; possuía conhecimentos extensos e profundos, e tinha
orgulho, muito justo e legítimo, de ser um dos primeiros especialistas no
assunto.” ‘Eduardo Prado’. In: Ensaios e Estudos, 1ª série. Rio
de Janeiro, Livraria Briguiet, 1931, p. 340.
[5] Repr. in: Eça de Queirós. Obras
completas, vol. III. Rio de Janeiro, Ed. Nova Aguilar, F 19XX, p. XXXX. E
[6] Maria Amália Vaz de Carvalho,
in: Figuras de hoje e de ontem.
Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1902. Apud: A. Campos Matos
(org.). Dicionário de Eça de Queiroz. Lisboa, Caminho, 1988, verbete Eduardo
Prado.
[7] A respeito, eis o que
escrevia Octavio Tarquinio de Sousa, no capítulo “Amigos brasileiros de Eça de
Queirós”, incluído no volume Livro do Centenário de Eça de Queiroz
(Lisboa / Rio de Janeiro: Edições Dois Mundos, 1945): “Prado instalara-se bem
no coração e no barulho da grande cidade, no amplo e luxuoso apartamento da Rua
Rivoli n° 119, mobilado com muito gosto
e em que se destacavam os instrumentos e peças de mais recente descoberta –
telefone, máquina de escrever, fonógrafo – com criados de libré e um até
inglês, que se gabava de ter servido a Darwin. Mais conforto, mais comodidades,
pareceria difícil imaginar-se e essa moradia de Eduardo Prado e o seu dono
inspirariam a Eça de Queiroz o 202, dos Campos Elísios, de A cidade e as
serras e o requintado Jacinto.”
[8] Nesse sentido, vale celebrar
o primeiro sinal dessa reavaliação – uma
tese de doutorado, defendida em 1998, em Assis, em que, pela primeira vez, se
procede de modo muito sério ao levantamento dos dados biográficos, à consideração
da fortuna crítica e à recolha de textos dispersos do autor: Luiz Eduardo Ramos
Borges. Vida e obra do escritor Domício da Gama: um resgate necessário.
(mimeo.). Foi esse trabalho a principal referência desta parte de nosso texto.
[9] A discussão dos pressupostos
críticos e das observações de caráter mais técnico do texto de Machado se
encontra mais aprofundada numa “Apresentação” a O Primo Basílio, à qual
se remete o leitor interessado nesse tópico específico: Queirós, J. M. Eça de. O Primo Basílio.
Cotia, Ateliê Editorial, 1998.
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