A CIDADE E AS SERRAS: TESE CONTRA TESE
[Este texto, que é um trecho da apresentação
do romance A cidade e as serras, publicado
pela Ateliê Editorial, foi lido no Congresso Internacional O Século do Romance
- Realismo e Naturalismo na Ficção Oitocentista , realizado em Coimbra em 2011.]
Na fortuna crítica de Eça, ocupa
lugar importante a afirmação de que o romance defende a tese da superioridade
da vida tradicional do campo – das formas de vida e estruturas sociais
paternalistas e pré-industriais – sobre a vida moderna. Colorido de
patriotismo, o livro teria como proposta o retorno às origens da nacionalidade,
no norte agrário português.
Ora, dizer que a história narrada por
Zé Fernandes possui uma tese não é o mesmo que dizer que o romance de Eça de
Queirós tenha uma tese e muito menos que a tese da narrativa de Zé Fernandes
seja a tese do romance de Eça ou a tese de Eça, de modo geral, nos últimos anos
de sua vida.
João Gaspar Simões, identificando uma
coisa com outra, acusou Eça de insinceridade, uma vez que não o julgava
disposto a adotar a solução que o livro proporia, ou seja, a trocar a sua vida
em Paris pela vida rural portuguesa. Jacinto do Prado Coelho, por sua vez,
definiu a obra como “romance reacionário”.[1]
A questão de se a tese de Zé
Fernandes é a tese de Eça não ocupará o primeiro plano desta comunicação. Isso
porque não há como chegar a discutir a proximidade entre o ponto de vista de Zé
Fernandes e o suposto ponto de vista de Eça sem primeiro entender a construção
romanesca no interior da qual Zé Fernandes expõe e defende a sua tese; e também
porque da análise dos últimos romances o máximo que se poderia extrair seria
uma “ideologia do último Eça romancista”, que não necessariamente coincidiria
com a ideologia do escritor, que ao mesmo tempo assinava textos com sentido
bastante diferente do que se poderia extrair dos seus romances finais.
Sobre esse ponto, num ensaio
publicado em 1945 – ou seja, no ano de balanço político da obra do autor, no
qual a tônica foi a suposta guinada à direita do antigo agitador socialista – Antonio Candido, depois
de analisar o “recuo ideológico” que também identifica na obra romanesca do
autor a partir de Os Maias, escreve:
“com efeito, ao mesmo tempo que acomodava na fantasia e no ruralismo a sua
visão literária, ele escrevia alguns dos seus artigos mais avançados
politicamente: ao lado de uma crônica vencidista
sobre a rainha ou o rei, um julgamento lúcido e destemido sobre o socialismo,
ou uma crítica incisiva, mordaz, sobre a burguesia capitalista e o imperialismo
econômico.”[2]
A propósito do estado da crítica nesse
importante ano do centenário, e de sua própria contribuição a ele, Antonio José
Saraiva escreveu, no seu último livro, uma pungente e lúcida autocrítica:
Em 1945, comemorando-se o centenário de nascimento
de Queirós, o autor da presente obra publicou um estudo sobre As idéias de
Eça de Queirós [...] De fato, o lento desenvolvimento da mentalidade
portuguesa tornava ainda atual em 1945 a caricatura que Eça fez da nossa
sociedade em As Farpas, O crime do padre Amaro e O primo Basílio
[...]. Todas as outras obras eram consideradas desvios da sua ‘verdadeira’
rota. As idéias de Eça de Queirós é uma súmula dos clichês então
reinantes sobre o escritor. Por isso uma obra-prima como A cidade e as
serras era julgada como insignificante, ou como um ‘regresso’ a Júlio
Dinis. E não foi só o presente autor que assim apresentou Eça: era a opinião
generalizada.[3]
Hoje o que parece mais razoável não é
ler cada romance em busca de índices comprobatórios de uma imagem do autor
feita a partir da leitura do conjunto deles, ou a partir de uma leitura
seletiva dos textos do autor, elaborada com base nos interesses do momento, mas
perceber em cada um a complexidade das vozes e situações.
No caso de A cidade e as serras, o mais interessante é perceber como se
desenvolve a tese de Zé Fernandes no interior da narrativa, como ela se
articula com outras teses ali presentes e quais os efeitos de sentido que
derivam desse desenvolvimento e articulação. Com isso não só a imagem de autor
seguramente será alterada, mas também a leitura se poderá fazer de forma menos
esquemática e mais prazerosa.
Passemos, então, à tese e sua
situação dentro das coordenadas do livro.
No que diz respeito a Jacinto, a tese
sobre as virtudes do retorno à vida tradicional ou de reencontro com as bases
da nacionalidade não faz sentido. Jacinto é personagem de mão única: nasceu,
cresceu e viveu toda sua vida em Paris; um dia transferiu-se para as serras
portuguesas e lá se fixou para sempre, sem jamais retornar à terra natal, isto
é, à França.
A história de Jacinto e de sua
família, aliás, é desprovida de regressos. Seu avô, D. Galião, parte com a
mulher e o filho para Paris, e de lá nenhum deles retornará a Portugal.
Jacinto não vê, em momento algum, a
viagem às serras portuguesas como retorno às origens; entende-a, sim, como uma
excursão arriscada para fora das fronteiras do seu mundo: “É muito grave deixar
a Europa!”, exclama, ao despedir-se da paisagem urbana, prestes a mover-se para
fora das fronteiras da cidade e da França. Em Portugal, não experimenta efusão
patriótica, nem comoção por sentir-se instalado nas terras da família, de onde
lhe provêm as rendas.
De modo que apenas tendo em mente um
ser maior do que o indivíduo Jacinto – uma entidade como o clã, a linhagem
familiar – torna-se possível falar em retorno e reencontro com as origens, como
faz Zé Fernandes, quando grita para o amigo, assim que o trem entra em
Portugal: “Acorda, homem, que estás na tua terra!” Para Jacinto, a frase só
faria sentido – e ainda assim em registro bem diferente do patriotismo da
exclamação de Zé Fernandes – se o trem estivesse a cruzar as fronteiras da sua
propriedade de Tormes.
A proposição de que o livro trata de
um reencontro das origens e que a própria trajetória de Jacinto é a de um
retorno a essas origens é a tese de Zé Fernandes. Mais do que isso: a tese do
retorno deriva diretamente do desenho da vida de Zé Fernandes, que se apresenta
como uma contínua viagem entre os dois pólos da vida européia representados no
título do romance. Zé Fernandes não é apenas a personagem que regressa, mas
ainda a personagem que o faz incessantemente: nasce em Portugal, estuda em
Paris, retorna a Portugal e outra vez a Paris. Quando começa a ação do livro,
aí o temos e, na seqüência, movimenta-se entre a cidade e as serras, terminando
por fixar-se nessas, cuja superioridade afirma e enaltece, por meio do exemplo
que é o seu amigo Jacinto.
No romance, sua única viagem que não
é desde o princípio entendida como regresso é o tour pela Europa, relatado com acentuado sabor cômico, por meio da
quantificação dos aborrecimentos e das perdas, em um único parágrafo no
capítulo VII. Tour esse, diga-se, que
proporcionou ao viajante dois únicos prazeres dignos de nota: o encontro, em
Veneza, com um estrangeiro que conhecia sua aldeia em Portugal e com o qual
pôde evocá-la, e o momento do regresso ao aconchego da casa de Jacinto.
O retorno à origem como recuperação
da felicidade (e da virtude) é assim o tema e a tese de Zé Fernandes. E a
demonstração da tese, segundo Zé Fernandes, é a prática de Jacinto. Zé
Fernandes, sozinho, não pode afirmar a tese. Ele experimenta como ninguém a
sedução da cidade. Sua recusa a ela está sempre a um passo de confessar-se como
ressentimento provinciano. Jacinto, o cosmopolita que encontraria a felicidade
no campo, é, por isso mesmo, o apoio e a prova isenta da tese de Zé Fernandes.
Jacinto, entretanto, tem a sua
própria tese sobre a felicidade, que aparece logo no começo do livro: a de que
ela é o produto da suma ciência e da suma potência. Uma proposição de que a
felicidade, portanto, reside na integração ao próprio tempo, no que ele tem de
mais avançado.
A tese sustentada por Zé Fernandes,
na medida em que identifica a felicidade com o retorno à vida campestre e
pré-industrial (ou que propõe que os remanescentes do mundo pré-industrial
sejam lugares possíveis para a felicidade na idade moderna), implica desde logo
a demolição da tese de Jacinto.
Por isso, porque a afirmação de uma
depende da destruição da outra, Zé Fernandes se ocupa com vigor de demonstrar a
Jacinto (e ao leitor) o erro da perspectiva e das crenças do amigo.
Desse ponto de vista, Jacinto é tanto
o defensor de uma tese incompatível com a do narrador, quanto uma demonstração
da tese deste. Ou talvez fosse melhor dizer: Jacinto é o campo de provas de Zé
Fernandes, que atua sobre ele e sobre o leitor de modo a tornar o amigo a
própria demonstração de sua tese. Ou seja, Zé Fernandes não só precisa destruir
a tese de Jacinto, como também convertê-lo à sua própria, torná-lo um exemplo
da correção daquilo que propõe como alternativa à tese do amigo.
Já se observou que a dupla Jacinto/Zé
Fernandes reproduz, em certa medida, a dupla matricial D. Quixote/Sancho Pança.
A sugestão está dada no próprio romance, em cujo capítulo VIII,
se lê:
Jacinto adiante, na sua égua ruça, murmurava:
–
Que beleza!
E
eu atrás, no burro de Sancho, murmurava:
– Que beleza!
Mas há pouco de Sancho nesse narrador
astuto. Como há pouco de Quixote no seu amigo Jacinto, que, além de ter boa
figura, é ainda sobejamente rico, tem excelente saúde, é agradável às mulheres,
possui inteligência e grandes dotes sociais, e não possui, a rigor,
incompatibilidade violenta com os ambientes nos quais se move.
De modo que a alusão de Zé Fernandes
produz apenas o reforço da imagem de bom-senso chão, que o narrador se arroga,
e da caracterização de Jacinto como irrealista, defensor de uma causa
fantástica.
Ou seja, a qualificação das personagens,
nessa passagem, integra a estratégia geral de Zé Fernandes, que é sublinhar a
fragilidade prática de Jacinto e conseqüentemente enfraquecer o seu lado na
disputa pela resposta correta à questão que lhe interessa e que, uma geração
antes, foi título de um romance de Camilo Castelo Branco, “onde está a
felicidade?”.
Nesse livro, Camilo respondera a essa
pergunta com grande cinismo “realista”: “Está debaixo de uma tábua, onde se
encontram cento e cinqüenta contos de réis.” Já no romance de Eça, sendo Jacinto
um herdeiro para o qual as necessidades da vida não pesarão nunca, essa
resposta está interdita e a demanda da felicidade deverá operar-se tendo a
riqueza como pressuposto, o que permitirá a Zé Fernandes apresentar a história
do amigo (e a sua, integrada à do amigo) como uma história exemplar, quase um
apólogo.
De fato, Jacinto, abrigado da
necessidade pela fortuna herdada, pode livremente entregar-se ao exercício da
modernidade e do refinamento da civilização como busca da felicidade, deles
colhendo apenas tédio, insatisfação e enfraquecimento da saúde. E também
poderá, na seqüência, porque o acaso o trouxe a Tormes, entregar-se às
fantasias agrícolas e ao projeto de erradicação da pobreza dentro dos muros da
sua propriedade, sem cuidar mais de Paris, que se reduz a etapa encerrada da
sua vida.
Assim, as duas fases de Jacinto são
claramente marcadas do ponto de vista da satisfação: a primeira fase é de
ausência e a segunda é de plenitude. A primeira é de tédio, a segunda de
animação. E o agente da transformação não é a vontade, nem qualquer alteração
da sua situação financeira, mas o simples acaso que, de súbito, o deslocou de
um ambiente para outro.
Jacinto resulta, por isso mesmo, uma
personagem fora do mundo, no sentido que age em completa liberdade e sequer se
dá conta ou se importa com as implicações dos seus atos. É auto-suficiente.
Vive, desse ponto de vista, num castelo (perfeitamente isolado e autônomo,
porque isento de vassalagem que o obrigue a qualquer ação para fora), num domínio
que se faz e se quer independente e alheio ao resto do mundo. O seu alheamento
e autocentramento tornam-se evidentes ao longo da narrativa, não só no que diz
respeito à economia, quanto no que diz respeito à política.
Do ponto de vista econômico, o lucro
e a otimização dos recursos – princípios elementares de qualquer empreendimento
– são para ele assuntos desinteressantes, que não merecem atenção, como se vê
no episódio da projetada queijaria, no capítulo IX. Tampouco é um avarento, no
sentido pré-capitalista, pois além de não sofrer a paixão de acumular, não tira
prazer da contemplação do que possui, já que não manifesta o menor desejo de ao
menos conhecer as suas outras terras, de onde lhe vêm, na verdade, os recursos
que emprega na reforma de Tormes.
Do ponto de vista político, embora
seja uma espécie de redentor dos campos, não oferece ameaça aos demais
proprietários, pois confina a reforma aos domínios da sua terra. Seu gesto
reformista, aliás, deixa-se facilmente ler como puro paternalismo, ou melhor,
como estratégia de política reacionária, como se vê no capítulo XIII, quando
Jacinto é tido como absolutista, parceiro e enviado de D. Miguel.
Em Paris, Jacinto é um
dândi. Nas serras, não parece que o tenha deixado de ser totalmente, já que o motivo
principal das suas ações, principalmente nos primeiros tempos de adaptação,
nunca é de ordem sentimental ou econômica, mas sim de caráter essencialmente
estético. A miséria dos camponeses o deixa horrorizado como um canto mal
pintado de um quadro bucólico; os empreendimentos agrícolas, para desespero do
administrador, não são encarados do ponto vista dos custos e proveitos, mas
como problemas matemáticos ou de decoração.
Como dândi, Jacinto faz um caminho
contrário ao modelo do gênero, o herói do romance Às avessas (1884), de J.-K. Huysmans. O romance inteiro – mas
principalmente, desse ponto de vista, a sua primeira parte – pode ser lido como
uma espécie de às avessas de Às avessas.
De fato, Des Esseintes, no livro de Huysmans, é, como Jacinto, um homem muito
rico. Mas enquanto Des Esseintes usa seus recursos para construir uma casa e
uma vida a contrapelo do caminho burguês, utilizando o máximo da técnica
moderna para poder isolar-se por completo tanto da natureza quanto da vida
social, Jacinto utiliza sua riqueza, em Paris, para viver em total integração
com o mundo e para exibir essa integração como ideal de vida, como o demonstram
o escritório provido de tubos, a biblioteca de ambições enciclopédicas e a
intensa vida social. A ciência e a técnica, para ele, são não apenas
instrumentos de ampliação da potencialidade natural dos sentidos e das
capacidades humanas, mas também matéria de espetáculo, afirmação de fé no
progresso e elemento de decoração - o que faz da sua casa uma espécie de museu
do contemporâneo.[4]
Mas se Jacinto, no campo, continua em
certo sentido um dândi, o registro do seu dandismo abrandado é agora outro: o
do isolamento senhorial. Por isso, altera-se o lugar da técnica. Rebaixada ao
caráter puramente instrumental, ela tem agora função oposta à que desempenhava
na casa parisiense: não mais serve para compor o ambiente da mundanidade
moderna ou para integrar o proprietário no movimento geral da época; reduzida a
um telefone, tem sinal oposto, pois permite que Jacinto permaneça o maior tempo
possível sem locomover-se da ilha de bem-aventurança que é o seu domínio
serrano.
No episódio do telefone, aliás, a
conduta de Zé Fernandes demonstra o seu interesse em que Jacinto não fuja ao
papel exemplar, fundamental para garantir a tese que o seu livro apresenta e
defende. De fato, alarmado com a notícia da chegada da novidade a Tormes, Zé
Fernandes põe-se logo em campo para impedir o pior: uma recaída do amigo na
doença do progresso e do pessimismo. Desconfiado, assume o papel de terapeuta vigilante,
que não confia nos propósitos de Jacinto e só entra em sossego quando constata,
com o passar do tempo, que o amigo persistirá no caminho da felicidade rural.
Ou seja, Zé Fernandes precisa vigiar Jacinto, para que este continue a ser a
demonstração viva, o exemplo perfeito da tese da superioridade do campo como
lugar da felicidade. Para isso Jacinto precisa manter-se firme na recusa à
máquina e à tecnologia, que tanto ele quanto o narrador identificam com a idéia
de progresso e de cidade.
Do que ficou dito deve ter ficado
claro que A cidade e as serras não é
apenas a história de Jacinto. É a história de Jacinto contada por um narrador
complexo, que tem uma tese pela qual se esforça desde a primeira linha do
romance. Um dos elementos desse esforço é a busca da cumplicidade do leitor;
outro é a produção da caricatura enternecida (tingida sempre de condescendência
paternalista) do seu herói, contra a qual afirma a sua qualidade de homem
realista e razoável. Um efeito da conjugação de ambos dá a graça maior do
livro, que procede justamente da dificuldade do narrador sustentar a sua tese,
já que ele mesmo não se mostra, na maior parte do romance, convencido de que o
percurso de Jacinto seja de fato um exemplo digno de imitação. Nem mesmo por
ele, que, até a última viagem a Paris, parecia não querer para si a felicidade
acomodada do amigo, imerso no isolamento rural.
E este é outro ponto que merece
atenção: Zé Fernandes não é apenas o narrador e a testemunha da história e da
mudança de Jacinto, é também uma personagem que se transforma sob o efeito da
mudança que narra e testemunha. Recapitulemos: a princípio, Zé Fernandes não
sofre de tédio em Paris; ao mesmo tempo, não tem, na sua terra, a ilusão ou os
recursos para construir para si um mundo à parte, como o Castelo da Grã-Ventura
de Jacinto. Pequeno proprietário, fascinado pelo desregramento da civilização,
Fernandes tem no amigo um espelho no qual se reconhece em negativo, um espelho
que lhe devolve uma imagem algo diminuída: na cidade, deixa-se ver e se
reconhece como provinciano ávido de deleites sensuais, com uma dose
aproximadamente igual de volúpia e repulsa ressentida perante o grande mundo
parisiense; no campo, exibe prudência e consciência culpada da exploração que
embasa a vida tradicional, ao mesmo tempo em que experimenta não só a nostalgia
da vida parisiense, mas também a nostalgia de ter Jacinto como contraponto a
reafirmar as suas convicções. De fato, diz ele: “é até monótono, pela perfeição
da beleza moral, aquele homem tão pitoresco pela desinquietação filosófica
[...]. Quando ele agora, bom sabedor das coisas da lavoura, percorria comigo a
quinta, em sólidas palestras agrícolas, prudentes e sem quimeras – eu quase
lamentava esse outro Jacinto que colhia uma teoria em cada ramo de árvore” (p.
231).
Sob o efeito da mudança operada em
Jacinto, há um momento em que os papéis se invertem: Zé Fernandes se entedia no
campo, depois da perda da amante e da morte da égua, e, sentido “uma pontinha
de bolor” na alma, embarca para Paris. Lá, o tédio não o abandonará por
completo. Será, na verdade, apenas sufocado pelo sentimento maior de desamparo
e horror, que ele compara ao que Jacinto experimentara na primeira vez que fora
ao campo.[5]
Dessa maneira, Zé Fernandes não só
encena a indissociabilidade entre ele e Jacinto, reforçando a relação especular
ante ambos, mas ainda mostra como a conversão de Jacinto acentuou nele as suas
próprias características, tornando-o mais visceralmente do que nunca o homem do
campo. Mas a simetria pára por aí, pois enquanto Jacinto superou o medo e o
desconforto e se adaptou ao ambiente que não era o seu – isto é, ao ambiente
rústico –, tornando-se perfeitamente integrado à vida saudável das serras,
Fernandes não superará as sensações ruins experimentadas na última visita a
Paris, que apenas o levarão de volta à sua quinta, reafirmando a excelência do
lugar de origem. Nessa derradeira estada, Zé Fernandes assume o papel de
Jacinto, tal como ele o via antes da transformação: aquele que poderia ter, mas
não queria ter, todos os prazeres da cidade; que poderia ceder, mas não cede –
por inapetência ou simples tédio –, a todas as tentações (que ainda enfeitiçam
Zé Fernandes, como se vê pela passagem em que se lembra da amante, ou pelo maço
de revistas que traz a Tormes).
O lugar de Jacinto na economia
interna de Zé Fernandes, assim, é mais do que o de uma tese demonstrada.
Jacinto é uma escora, um antídoto que permite a Zé Fernandes construir uma zona
de “realidade”, na qual se sinta em segurança. E, ao mesmo tempo, é o modelo para
a sua solução do conflito entre a cidade e as serras: “o equilíbrio da vida, e
com ele a Grã-Ventura”.
Jacinto teria obtido esse equilíbrio,
segundo o narrador, por meio de uma controlada concessão à tecnologia moderna.
De fato, muito controlada, pois não haverá máquinas agrícolas em Tormes, nem
qualquer rudimento de industrialização rural. O progresso tecnológico se
restringirá à incorporação, à rotina da casa senhorial, de um telefone, e do
conforto moderno serão aproveitados apenas alguns móveis e tapetes, destinados
a melhorar o quotidiano da família. No que toca à propriedade como um todo,
anunciam-se alguns projetos que envolvem a informação e a técnica modernas: uma
biblioteca de livros de estampas e uma sala de projeção de lanterna mágica, para
instrução dos camponeses. Nesse sentido, a modernização que Jacinto opera nos
seus domínios é conservadora: a recusa ao uso da tecnologia para a produção
agrícola, a reforma das casas dos rendeiros e a farmácia (bem como a escola, a
creche, a biblioteca e a sala de projeção planejadas para o futuro) produzem a
melhoria das condições de vida dos pobres, sem alteração significativa, seja na
forma de produção, seja na dependência dos camponeses em relação ao senhor da
terra.[6]
Zé Fernandes terá, ao final do livro,
a sua própria solução para obter “o equilíbrio da vida, sem contudo partilhar
do ímpeto reformista e caridoso de Jacinto. Sua solução consistirá no simples
afastamento da matéria corrupta da cidade e na preservação do espírito dela,
por meio da importação, para as serras, dos livros e revistas parisienses:
“Pois adeusinho, até nunca mais! Na lama do teu vício e na poeira da tua
vaidade, outra vez, não me pilhas! O que tens de bom, que é o teu gênio,
elegante e claro, lá o receberei na Serra pelo correio.”
Dessa maneira, o percurso de
Fernandes se revela mais conservador e individualista do que o de Jacinto, o
que reforça o sabor burguês das suas ressalvas, em Paris como em Tormes, ao
comportamento e às idéias do seu “príncipe”. E é provavelmente desse caráter da
personagem narradora, da sua perfeita caracterização, que decorre a tentação,
por muitos experimentada, de fugir à ironia constitutiva do romance e atribuir
ao autor, ou à sua intenção, o caráter conservador que o romance – de Zé
Fernandes, não o de Eça – traz à evidência.
[1]
Jacinto
do Prado Coelho, “A tese de ‘A cidade e as serras’”. In A letra e o leitor. Lisboa: Moraes Editores, 1977, pp. 169-174. A primeira edição do
livro é de 1969.
[2] Antonio
Candido. “Eça de Queirós entre o campo e a cidade”. Livro do centenário de Eça de Queirós. Reproduzido com o título
“Entre campo e cidade” em Tese e antítese.
São Paulo: T. A Queiroz, 2000.
[3] Antonio José Saraiva. A tertúlia ocidental – estudos sobre Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça
de Queiroz e outros. Lisboa: Gradiva, 1995.
[4] O
caráter de museu ou sala de exposição que possui o apartamento de Jacinto é
evidente ao longo do livro. No final, quando Zé Fernandes o visita, esse
caráter explicita-se, agora em negativo, quando o narrador observa as coisas
desusadas, como já dispostas num museu, para exemplificar a instrumentação
caduca dum mundo passado”, p. 243.
[5] Miguel
Tamen já notara a estrutura em quiasmo, que faz equivaler, nesta passagem “Zé
Fernandes-da-cidade a Jacinto-das-serras”, por meio da “vaga tristeza da minha
fragilidade”. “Fazer Arcádia”. In A
cidade e as serras – uma revisão, pp. 31-2.
[6] É
provavelmente a essa forma de compreender a reforma das condições de vida dos
pobres nos seus domínios que Jacinto se refere, quando, no capítulo XIII,
depois de ser confundido com agente miguelista, declara ser socialista.
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