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segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Perfis 6: Ivan Teixeira

 

Os fundos da sua casa davam para o Horto, mas disse-me a Maria Eugenia que ele nunca foi até lá. Acredito. Era totalmente citadino e cartesiano, de onde lhe vinha o cordial horror ao desalinho e irracionalidade da natura bruta. Entretanto, lembro-me de ele me dizer que apreciava deixar comida aos macaquinhos, do que concluo que, embora não se aventurasse na desordem natural, não se opunha a que ela viesse até ele, enquadrada em horários e locais combinados. Não obstante, mandou construir uma casa em Vinhedo, que visitei, num condomínio em formação, que me parecia mais selvagem do que o domesticado Horto. Talvez por isso tenha lá deixado em exílio alguns livros bons, e voltado para a primeira. Afinal, lá estava acondicionada a mina de ouro – uma vasta biblioteca, onde brilhavam as lombadas de obras raras – e a parte que mais me impressionou: uma edícula que crescia numa espécie de torre ou alpendre fechado, sem mobília alguma. A acústica! – exclamou ele, de dedo erguido, assim que entramos. E calou-se. Depois fez vocalizações, que comprovaram o anúncio. E abriu um sorriso indagador. Ivan tinha um dos olhos levemente mais caído. Nessas horas, ele se fechava um bocado mais do que o outro, o que simulava uma piscadela ansiosa por concordância ou cumplicidade. Junto com o olhar fixo atravessando as lentes, era quase uma intimação. Admirável acústica! – eu repeti baixinho, como que a esquivar-me dela. E creio que era mesmo. Contou-me então Ivan para que a utilizava. Ele não acreditava inteiramente na escrita, ou melhor, na leitura silenciosa que um autor fazia da própria produção. Para ele, um texto só podia ser considerado razoável quando lido em voz alta. Aí, sim, os cacófatos mostravam as fuças, as palavras gêmeas se ferroavam mutuamente, uma frase em forma de centopeia indicava onde devia cair o machado, e a língua bífida, sedutora, das conclusões acomodatícias, era logo desmascarada pela outra língua, a dele, enquanto fazia rolar na boca as frases e parágrafos, em escrutínio. Já se vê que não me disse nada dessa forma. Eu que traduzi assim em homenagem ao Horto ignorado do outro lado do quintal. Talvez porque ali eu visse que ele compusera, fronteiro ao outro, o seu verdadeiro jardim, o seu paraíso terrestre, a sua vinha inesgotável. Nas estantes da ampla sala, altas a perder de vista, e naquela saleta despida, onde executava os textos. Pedi-lhe que me demonstrasse. Foi um pedido que mal teve a chance de afirmar-se nas pernas. Ivan me dispôs num lugar um pouco alijado, junto à porta, apanhou um maço de papéis e começou a rodear, com passos pausados e medidos, o aposento. Era como aquela contagem que as bandas fazem, antes da música. E ela logo veio: a leitura. Quem quer que o tenha visto ler um texto recomporá facilmente a cena: segurava o papel com uma das mãos e com a outra regia o discurso. Nenhuma ideia vinha nua. Cada uma com vestimenta própria: roupa de guerra, traje de baile, mero terno azul e até um jeans bem composto. Mas nunca de pijamas ou de camiseta. Vestia-as a voz, com o tecido da entonação, as botas do volume e o chapéu do timbre. O ensaísta, o buscador de raridades, o pesquisador, toda essa coorte se subordinava ali, na leitura, ao professor – que, no entanto, pela solenidade garbosa, tinha um pouco de padre. Na sala de aula ou num auditório, ao padre se juntava o showman, e muitas vezes o sobrepujava. Da mesma forma como um arqueólogo desenterra um pedaço de osso e dali logo deduz um lagartão inteiro, com barriga, rabo e focinho cheio de dentes, assim eu vi o Ivan deduzir por uma aba anônima do livro o seu autor. Com tal arte perante a classe foi lendo e relendo e deduzindo, como um detetive, mostrando aqui o nariz, ali as bochechas, mais além o lombo, até que o homem – creio que o Rosa – saltasse inteirinho e pronto para fora da orelha, como Minerva das coxas de Júpiter. Era também dublê de editor. Idealizava e levava adiante projetos, tanto na ECA quanto na Ateliê. Aliás, foi por seu intermédio que conheci Plínio Martins. Nos tempos em que eu dirigia a Editora da Unicamp, fizemos muitos projetos e viagens juntos. Na última delas, para a Feira de Guadalajara, Ivan começou a se queixar da comida mexicana. Tudo lhe fazia mal. De volta ao Brasil, foi ao médico. Em poucos meses, a doença o levou. Está fazendo agora, em 2023, dez anos.

 

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Viva o Editor!


Acabo de ver um vídeo fantástico, no qual Paulina Chiziane, com os pés junto a uma fogueira, faz um agradecimento comovido a Zeferino Coelho, da Caminho, que a editou em Portugal. Sua voz se embarga um pouco ao mencioná-lo.
A mim, tudo impressionou nesse vídeo. Mas depois, pensando nele enquanto tentava ler uma monografia, ocorreu-me o motivo por que essa última parte do depoimento me moveu mais.
É que eu também tive e tenho a felicidade de ter um editor no sentido pleno dessa palavra. Quero dizer: um editor receptivo, alerta, que lê o que publica, e escolhe, e orienta. E isso, infelizmente, não é uma experiência comum.
Desde uma novela fragmentária até um livro recente de estudos de literatura, passando por quase uma dezena de outros trabalhos, sempre pude contar não só com a leitura atenta e produtiva, mas também com generosidade e compreensão: se eu precisava de 30 páginas prefaciais, podia escrever; se precisasse de 50, também; e houve até casos em que a apresentação de um livro pequeno terminou por ocupar o número absurdo de 70 páginas de texto corrido. Na verdade, nunca sequer perguntei de quantas laudas poderia dispor, nem me preocupei com isso: simplesmente fui escrevendo, até a questão que me propus abordar estar bem delineada ou resolvida, e depois lhe enviei, certo de que tudo seria publicado na íntegra.
Na verdade, mais do que um editor, sempre tive nele um parceiro. No último livro, o que narra uma viagem de motocicleta, foi ele o primeiro leitor da primeira versão. E foi a sua receptividade e o seu “quero publicar!” que me animaram a empenhar os meses seguintes na apuração do texto, de modo que fosse digno de livro.
Mas houve outro momento que pode dar uma ideia mais precisa de até onde vai a paixão pelo livro, por dar forma ao original informe. Uma paixão tão intensa que pode parecer até mesmo tingida de alguma loucura. E foi quando enviei ao Plínio Martins Filho – pois é dele que se trata – um conjunto de poemas malvados, obscenos, pornográficos, de escárnio e maldizer. Enviei-os para deleite privado, pois eram cheios de referências intertextuais, e porque me pareciam bem divertidos, apesar das maldades que deles escorriam. Ou talvez justamente por conta delas.
Ele não teve dúvidas: queria publicar. Eu lhe disse que de forma alguma. Aquilo não era para circular. Era impublicável. Mas ele insistiu e me propôs algo muito surpreendente.
Aceita a proposta, pedi a Alcir Pécora que escrevesse um prefácio para o livro obsceno, no que ele se saiu, como sempre, da melhor maneira possível, com um texto agudo e erudito, que tentava inclusive, eu acho, minimizar um pouco a maldade explícita.
Plínio então contratou um desenhista, que fez ilustrações à altura, ou talvez fosse melhor dizer à baixura, do livro. Com isso compôs um belo volume de capa dura e mandou imprimir exatos 98 exemplares. Ficou com meia dúzia e me deu os demais, de presente.
Esse livro nunca foi posto à venda, nunca foi exibido numa livraria, nunca esteve à disposição de qualquer público, exceto as pessoas a quem o enviei. Um livro, portanto, quase em circuito fechado: do autor para o editor e do editor para o autor, até mesmo um pouco contra a vontade deste último.
Se isso não é uma boa definição do que seja um editor, capaz de submeter todas as questões práticas à paixão de publicar um livro de que gostou, então não sei qual seria.