[Jornal 8]
Três livros de poesia - 2001
[texto publicado em 2001, no
Suplemento Literário de Minas Gerais][1]
Três livros de poemas
recém-lançados – Trívio, de Ricardo
Aleixo, Zona Branca, de Ademir
Assunção, e A Sombra do Leopardo, de
Cláudio Daniel – permitem verificar o bom nível da produção poética brasileira
atual. Ao menos, na vertente radicada na Poesia Concreta e no paideuma por ela
construído no Brasil. São livros bastante diferentes entre si, mas que
compartilham algumas características importantes.
Penso que as qualidades
principais do primeiro deles, A Sombra do
Leopardo (de Cláudio Daniel), são a unidade de dicção, o nível geral dos
poemas e a estrutura em que se arrumam. Agrupados em oito seções, os 33 poemas
do livro se organizam segundo um desenho sugestivo que inicia com a invocação
de figuras tutelares, que são também caminhos, possibilidades de fazer frente
ao desejo e à dor (Dante, Nagarjuna, Chuang-Tzu, Schopenhauer e outros),
prossegue pela evocação de lugares exóticos, distantes no tempo e no espaço
(Tibet, Grécia, Egito...), que parecem funcionar como espaços de plenitude
sensória e de iluminação, e deságuam no desfecho nomeado com o título do livro
dos mortos tibetano, o Bardo-Thödol.
Se tivesse de apontar apenas um
poema que sintetizasse a poesia deste livro, o escolhido seria aquele que
contém a expressão que dá nome ao conjunto. Trata-se de “Dante”, poema central
para o entendimento do desenho do volume, pois, com muita distância, é uma
glosa da passagem da Divina Comédia
em que as três feras (a onça, entre elas) impedem o prosseguimento do caminho
pela selva e obrigam à descida ao Inferno.
Trívio, de Ricardo Aleixo, é de todos o mais imune à “angústia da
influência”, que Bloom vê como o motor do novo em poesia. Pelo contrário, o seu
livro não só deixa evidente a filiação concretista, mas também a celebra. Por
esse lado, os momentos mais fortes são aqueles em que adota, com competência
emulativa, procedimentos que caracterizam a poesia de Augusto
de Campos. É o caso do encarte “Brancos”, e é também o caso
de “Canção noturna do fim dos peixes” e “Totem para Smetak”. Por isso mesmo,
dispensaria o posfácio, que apenas declara, sem brilho nem acrescentamento,
aquilo mesmo que o volume inteiro evidencia.
Entremeada
a essa parte ostensivamente concretista, em que a repetição dos processos e até
da tipologia do mestre incomoda e acaba criando um clima retrô, temos os poemas que constituem o melhor do livro: aqueles em
que a espacialização discreta se choca com as cadências regulares do verso
português ou não é obstáculo à emergência de uma linguagem muito coloquial.
“Loa da menina deusa”, “Numa festa”, “Mesmo esta, agora, é” e “Ela aquela” têm
um ritmo cantante e visual, que cristaliza um momento de fala, uma cena, ou uma
sensação. Neles brilha alguma coisa nova, distante da ecolalia que dá o tom de
vasta parcela da produção atual, filiada na mesma vertente concreto-cabralina.
São esses poemas, em minha opinião, que destacam o livro e singularizam a
dicção do seu autor.
Zona Branca, de Ademir Assunção, parece-me o mais eclético dos
três, tanto no que diz respeito ao leque de recursos compositivos, quanto ao
elenco de referências culturais. Também me parece o mais irregular, no nível da
realização individual dos textos, pois o livro oscila entre poemas de alta
tensão poética e outros apenas sofríveis.
Herdeiro programático da antropofagia
oswaldiana, o poeta declarou numa entrevista recente à revista eletrônica Balacobaco: “Minha dentição é boa:
mastigo tudo o que me
interessa: e isto
vai de Dante Alighieri a histórias
em quadrinhos.” E os poemas também vão desde o tom (irônico?) de
auto-ajuda de “Zensider”, até a estilização do velho poema de protesto, em
“Anti-ode aos publicitários (de um guerrilheiro morto em combate)”, passando
pelo poema concreto e pelo gosto kitsch de versos como estes, que encerram o
poema “A lágrima de Van Gogh”: “& uma única lágrima / guardada / na
caixinha de jóias”.
Dentre os resultados vários dessa
mastigação generalizada, os poemas descritivos, compostos por montagens à
maneira de haicai, me parecem o que há de melhor: “Assombro em branco e preto”,
“A queda em preto e branco”, “Desocupado”, “try to see again...” e “vento da
madrugada...”. Do mesmo alto nível me parecem “Peixes de luz” e “In a silent
way” e, especialmente, “Espelho d’Água”, momento singular de concentração
poética, no qual a composição justapositiva se faz por aglutinação em torno de
uma imagem forte.
A capacidade de criar imagens
impressivas e justapô-las em rápida sucessão responde, aliás, por alguns dos
melhores momentos de Zona Branca. E
também pelo fato de ser raro o poema do livro que não acabe redimido, ao menos
parcialmente, pelo saldo final da construção imagética. É o caso, por exemplo,
de “Olhos elétricos”, que consegue se manter em pé, mesmo contendo este
dístico: “pássaros tristes entre cães aprisionados / enfim vivemos num
cenário”.
Nascidos nos primeiros anos da
década de 60, Aleixo, Assunção e Daniel publicaram pela primeira vez em volume
no início dos anos 90. Não são, portanto, estreantes, mas sim poetas
amadurecidos, em cujo texto já se podem avaliar as qualidades plenas e os
eventuais limites da sua arte. O que é comum aos três diz respeito tanto a
essas qualidades, quanto a esses limites. Em primeiro lugar, o caráter
reflexivo e metapoético da sua prática literária; em segundo, a competência
técnica, seja no domínio do corte do verso breve, seja na aplicação de recursos
composicionais herdados da vanguarda concretista; por fim, é comum a todos a
exibição de um eclético repertório de cultura.
Poetas-críticos, assinalam a
procedência ou a inserção cultural de tópicos dos seus poemas em subtítulos ou
notas de sabor acadêmico. Daniel, por exemplo, além de escrever frases como “a
poesia diz tudo e não quer dizer nada e seu nome se escreve no vazio da página,
sítio de possíveis reflexos”, também esclarece, em subtítulos a natureza, o
gênero ou a fonte do seu texto: “Tse-yang, pintor de leopardos (retrato apócrifo)”, “Simão do deserto
(alegoria)”, “Dante (Inferno, I, 31-42)”. Aleixo é igualmente didático, em notas
de final de volume: “Marcial entre os kuikúro é uma adaptação
mais-que-livre de um mito dos índios Kuikúro recolhido pela antropóloga Bruna
Franchetto”; “Ñamandu baseia-se
vagamente em um mito dos índios guaranis, do Paraguai, recolhido pelo
antropólogo Pierre Clastres”... E também
o é Ademir Assunção, que anota ter sido “inspirado no filme Paris, Texas, de Wim Wenders” um
determinado poema, e que um trecho de um outro “faz alusão ao seqüestro de Baco
narrado por Ezra Pound no Canto 2 do
livro The Cantos, correspondente a um
episódio das Metamorfoses, de
Ovídio”.
Tais indicações configuram uma
tensão entre os escritores e o público previsto, que se biparte entre os
leitores que poderão reconhecer e julgar a pertinência do referencial “erudito”
e os que ainda precisam ser nele instruídos. Isto é, estes escritores, por um
lado, já não se apropriam dos textos centrais da tradição ocidental como
matéria comum, de conhecimento generalizado. Por outro lado, tampouco parecem
acreditar que mitos e lendas sejam matéria a ser incorporada sem registro, por
conta da sua significação universal. Pelo contrário, em qualquer caso,
inclusive nas referências à cultura pop, é
sensível o cuidado de indicar explicitamente a fonte, e, se for o caso, o grau
de desvio em relação a ela. Por fim,
não parece que elejam, como destinatário do seu discurso poético, o leitor
visado pela lírica de extração romântica: o homem comum dotado de sensibilidade
e de boa vontade. Dizendo de outra forma: as notas explicativas, os títulos e
os nomes eruditos incorporados no texto dos poemas e os vários procedimentos de
citação e alusão podem ser lidos alternada ou combinadamente como atestado de
cultura, gesto de intuito educativo e celebração totêmica.
No prefácio ao livro de Claúdio
Daniel, Eduardo Milán o define de uma maneira precisa, que me parece válida
também para os dois outros autores. Diz que se trata de um “lírico cultural”.
Por essa expressão, que utiliza como elogio, Milán entende uma relação
“dinâmica e evidente” com a “cultura”, a ponto de fazer equivaler “impressões
de leitura” e “intuições líricas”.
Quando li o conjunto dos três
livros acima referidos, e em especial o de Daniel, foi justamente o caráter
“evidente” dessa relação, bem como a ostensiva apresentação das “impressões de
leitura” o que me incomodou.
Ademir Assunção, por sua vez, na entrevista
já referida, declarou que “estamos sendo bombardeados por milhares de
informações o tempo todo e nossa mente funciona cada vez mais como uma ilha de
edição”. Também declarou, claro, que não sofre “aquela neurose
da ‘angústia da influência’, que tanto preocupa um crítico como Harold
Bloom.”
Para repetir nestes termos a
parte da minha impressão de leitura que foi desfavorável, diria que a “ilha de
edição” tem um funcionamento às vezes pouco sutil e que a ausência da “angústia
da influência”, que ela supõe, faz com que uma porção significativa de cada um
desses três livros se aproxime perigosamente do pastiche estilístico. Talvez
por isso, às vezes me assaltasse a impressão desagradável de que partes dos
três volumes pareciam escritas por um mesmo supra ou protopoeta, misto de João
Cabral, irmãos Campos e Leminski, constituído por combinações variáveis desses
elementos. O mesmo suprapoeta que também teria escrito muita da poesia reunida
na antologia Esses poetas e alguma da
que compõe Outras praias.
Entretanto, passado esse primeiro
momento e o travo dessa constatação, o que fica mesmo na memória da leitura é o
que cada um dos livros tem de melhor, de mais característico e bem realizado. E
que, embora não seja muito, também não é pouco.
[1] Onze anos
depois, relendo esse texto, percebo que minha percepção da qualidade relativa
dos volumes se alterou. Mas não se alterou o essencial do que vai no corpo do
artigo. Por isso achei que valia a pena transcrevê-lo neste espaço. E também
porque se trata de uma resenha referida aqui e ali, e de difícil acesso nas
páginas do jornal onde foi originalmente publicada.