[Jornal
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As Minas de Momo
Durante todo o século XIX e começo do XX, houve
uma intensa produção de poesia cômica no Brasil, que circulou em publicações
pequenas e hoje quase desaparecidas. É um mundo ainda por desvendar e conhecer.
Por exemplo, quantas pessoas sabem que existiu
uma agremiação carioca chamada Sociedade Euterpe Comercial Tenentes do Diabo, e
que ela publicou a partir de 1880 um jornal chamado 'O Diabo da Meia-Noite',
com versos como estes?
Macau capital da Grécia,
Com vinte mil habitantes,
Fica-lhe ao norte a Suécia,
Pátria do grande Cervantes.
O clima é muito saudável:
Morre à míngua a medicina.
Seu povo, pouco amorável,
Detesta a raça canina. (...)
E quem faria idéia de que tivesse havido tantos
jornais desse tipo, a ponto de a sua listagem encher 30 páginas de livro? Pois
agora é fácil saber o que há para ser pesquisado. O mapa da mina, pelo menos,
está feito, e se encontra no livro de José Ramos Tinhorão, A imprensa
carnavalesca no Brasil -- um panorama da linguagem cômica (Editora
Hedra, 2000, R$ 22). Esse mapeamento, que junto com a bibliografia constitui a
terceira seção do volume, por si só justifica a publicação.
Na verdade, é o que importa no livro, pois as
duas outras partes têm interesse menor. A primeira, intitulada "A
linguagem cômica: da graça oral às formas escritas", é um vertiginoso
panorama histórico, que vai mais ou menos do séc. V ao XVI, e apresenta as
diferentes práticas cômicas em que o autor discerne a matriz
"popular" ou a feição "carnavalesca"; a segunda ("A
linguagem da imprensa carnavalesca: a graça oral na forma escrita"), busca
situar os textos brasileiros ligados ao Carnaval na tradição apresentada na
primeira.
O primeiro problema que se identifica na
leitura é a falta de hierarquia na exposição dos resultados da pesquisa, pois
em todos os capítulos abundam informações acessórias ou mesmo impertinentes. Ao
mesmo tempo, dados importantes sobre o objeto (por exemplo: a natureza,
quantidade ou temática preferencial dos textos dos jornais, o período de
existência desta ou daquela agremiação ou publicação) estão ausentes do texto
expositivo. A impressão geral, por isso, é que se trata de um trabalho pouco
amadurecido e algo apressado. Impressão essa reforçada pela falta de cuidado
com a composição, pois há incorreções de todo tipo, tanto na redação do autor,
quando no trabalho editorial, o que redunda em frases confusas ou truncadas,
repetição de palavras, além de várias gralhas tipográficas menores.
Ao final da leitura, o problema maior se
apresenta. As duas primeiras seções do livro, apesar de trazerem muita
informação, deixam a desejar sob qualquer aspecto: como panorama histórico, são
incomodamente sumárias; como ensaio interpretativo, têm pouco fôlego e pouca
novidade, pois quando o autor identifica problemas culturais complexos, que
poderiam render muito, acaba não os tratando com a abrangência e a profundidade
necessárias. Por exemplo, ele nos diz que, por volta de 1860, existiu um forte
movimento de reunião de pessoas da incipiente classe média em clubes e
sociedades de índole cultural e festiva. Mas não vai adiante na análise desse
movimento. O que isso poderia significar enquanto esforço de civilização e
busca de novas formas de convivência burguesa numa sociedade escravocrata? Qual
a função e a especificidade da literatura e do cômico produzidos nessas
associações? Qual a coloração política desses agrupamentos? Nenhuma dessas
questões lhe ocorre, e ele apenas assume o ponto de vista da velha riqueza
senhorial, escrevendo: "acontece que esse tipo de gente, mesmo quando
alcançava (quase sempre pelo comércio) posições privilegiadas facultadas pelo
dinheiro, não conseguia ir além da imitação formal das preferências e atitudes
dos reduzidos grupos de elite: arranhado o verniz das aparências burguesas
(...) revelava-se a condição real de oriundos das baixas camadas da cidade ou
do mundo rural" (p. 102).
Da mesma forma, embora detecte a participação
de "literatos" nos jornais carnavalescos e lamente o uso
propagandístico dos versos cômicos no final do séc. XIX, não relaciona esses
tópicos nem com o prestígio social da educação literária nos primeiros tempos
republicanos, nem com a dupla face da vida literária do período, a
"oficial" e a boêmia, nem com o movimento geral de profissionalização
do escritor. Ou seja, não descobre nem valoriza as zonas furta-cores: a
sobreposição do erudito e do popular, do comercial e do espontâneo, do
"familiar" e do debochado, etc. É que Tinhorão está obcecado pela
tese de que os jornais carnavalescos brasileiros foram "experiências
continuadoras da velha tradição do cômico-literário herdado da Idade
Média". E porque está interessado neles apenas enquanto tal, despreza os
cambiantes genéricos e sociais em que reside a especificidade do seu objeto,
para reforçar uma insuficiente tipologia opositiva, na qual o papel de herói
derrotado cabe à "velha tradição" e ao "popular". Do ponto
de vista interpretativo, assim, não me parece que o livro valha a pena. Vale,
porém (e muito), como fonte documental. Por isso mesmo, é lamentável que não
traga uma boa antologia dos periódicos que identificou e estudou.
Sem
antologia, além da relação dos jornais resta a ideia central do livro. Quanto a
isso, o que me ocorre é transcrever a frase de um jornal de 1881, que se
encontra na p. 147: "A tese, neste sentido, é nula, inadmissível, mas
provável de canonização tóxica".
Publicado no jornal Correio Popular, de Campinas, em 06 de janeiro de 2001