SOBRE UMA PROPOSTA DE
PUBLICAÇÃO DOS POEMAS DE CAMILO PESSANHA
[Este
texto foi escrito para ser apresentado no I Colóquio Colóquio Internacional do LIA:
500 anos Portugal-China: contrastes, mudanças e desafios, realizado na USP nos
dias 26 a 30 de agosto de 2013 – motivos de ordem pessoal me impediram de estar
presente]
Em primeiro lugar, quero apresentar as minhas desculpas e
a minha tristeza por não poder integrar esta mesa e rever amigos queridos e colegas
que ainda não conheço pessoalmente, mas cujo trabalho admiro de longa data.
Se eu aqui estivesse, teria muito gosto em ouvir as
comunicações e, principalmente, aprender com os debates que certamente
ocorrerão.
Entretanto, do ponto de vista da minha própria
participação na primeira parte dos trabalhos, não creio que farei falta, pois
apenas repetiria aqui o que tenho dito em tantos outros momentos, seja sobre os
critérios da edição que fiz em tempos, seja sobre as críticas que recebi. Nesse
particular – e mais exatamente no que diz respeito à falta de honestidade
intelectual de uma professora italiana, Barbara Spaggiari, e um seu acólito português,
António Barahona – publiquei também há tempos um longo texto, disponível no meu
blog, ao qual remeto algum eventual interessado no bas-fond da vida intelectual.[1]
Mas talvez deva dizer ainda uma vez algumas palavras,
principalmente porque talvez haja estudantes presentes, para os quais o estado
da matéria possa ainda ser desconhecido.
E então, começando pelo começo, gostaria de dizer que
nunca pretendi, nem fiz, uma “edição crítica” no sentido comum dessa expressão.
Isso porque nunca pretendi “fixar” um texto, no sentido
de afirmar que aquela era a versão a ser lida, e não outras.
Pelo contrário, percebendo logo que seria impossível dar
uma forma fixa ao conjunto dos poemas de Pessanha e me recusando, desde o
princípio, a arvorar-me em reorganizador da sua obra segundo algum desenho
temático ou formal que me parecesse mais sedutor, decidi pela forma mais
radical de trabalho, que passo a expor.
A palavra radical, aqui, está sendo usada quase no
sentido botânico: interessou-me sobretudo observar a história de cada um dos
poemas de Pessanha, tanto do ponto de vista da sua elaboração (isto é: datação,
identificação – quando possível – da primeira versão e descrição das sucessivas
alterações até a última forma comprovadamente autoral), quanto do ponto de
vista da sua história pública (isto é: cópias por terceiros, publicações
esparsas a partir de fontes várias, publicações em volume).
Sendo assim, meu trabalho tinha uma direção oposta à dos
trabalhos de edição crítica, que traçam uma árvore que permita chegar à raiz
mais segura ou indubitável. Minha preocupação, pelo contrário, foi descrever o
processo de transformação, a partir dos muitos autógrafos e publicações desse
poeta que absurdamente alguns julgaram avesso ao registro escrito.
Muito longe de querer estabelecer “o texto”, o que eu
quis foi apresentar ao leitor eventual a maior quantidade possível de
informações para que ele pudesse se decidir pelo texto – ou o momento textual,
por assim dizer – que lhe parecesse melhor.
Para poder anotar as várias campanhas, os vários gestos
de escrita de Pessanha, eu precisava de um ponto de referência, de um momento
congelado no tempo, a partir do qual os leitores pudessem percorrer o caminho
de elaboração e as várias versões sucessivas (quando identificáveis
temporalmente) de cada verso.
Fiz isso, como disse há pouco e repeti exaustivamente no
aparato, considerando apenas como
referência a última versão comprovadamente autoral. É certo que há casos
muito difíceis, pois a autoridade do autor que escreve “limpa” numa versão num
dado momento, é contrariada pela autoridade do mesmo autor que publica uma
versão diferente em um momento posterior. E há vários textos nos quais não se
consegue discernir com segurança se as correções terminaram por configurar uma
nova versão (quando não há indicação “limpa” no autógrafo ou ao lado do texto
impresso emendado) ou apenas anotações inacabadas para ajustes futuros.
Expor claramente os pontos de dúvida e de risco foi,
assim, um objetivo importante na redação das muitas notas que compõem o aparato
da edição que organizei.
Tomando taticamente a última versão comprovadamente
autoral como ponto de referência para anotar as variações, restava fazer um
cuidadoso e difícil trabalho de reconstituição da história de cada poema, para
que as anotações se fizessem em ordem o mais possível cronológica. Aqui também
houve momentos de dúvida angustiosa, mas sempre me pareceu melhor enfrentá-la e
expô-la claramente, do que eludi-la, escudando-me em argumento sobre “o método
adotado”. Afinal, o método foi construído para abordar o objeto na sua dimensão
mais ampla e não para amputá-lo de sua complexidade.
Ao mesmo tempo, os autógrafos disponíveis nem sempre eram
de fácil leitura ou estavam bem reproduzidos. Por isso, desenvolvi um sistema
de anotação dos gestos de escrita, marcando ordem, natureza e lugar de
alteração ou inserção, de modo que os leitores, com a minha edição em mãos,
pudessem decifrar com menos dificuldade os autógrafos disponíveis, cuja
localização em arquivos ou bibliotecas mapeei minuciosamente.
Para deixar completamente claro o meu objetivo, na hora
de distribuir espacialmente os textos em volume – o que implica ordenação
sequencial – renunciei a qualquer desenho temático ou formal (como disse) e,
registrando isso na introdução, escolhi o critério mais abstrato possível: a
ordem cronológica. Mas não a ordem cronológica da composição do poema – que seria
um objetivo impossível, dada a natureza do material e da informação disponível –
mas a ordem cronológica do primeiro
registro autógrafo ou primeira publicação. O que é muito diferente, pois num
caso teríamos uma aposta na ordenação, digamos, “evolutiva” e no outro um
simples registro de ocorrência.
Renunciei também à escolha do que incluir no livro.
Poemas ou mesmo fragmentos: tudo aí teria lugar, pois minha única ambição era
constituir o mais amplo e completo (naquele momento) repositório de informações
e versos de Camilo Pessanha.
É certo que fiz três
concessões. Duas delas de livre vontade e outra de menos livre vontade.
A primeira que fiz de livre vontade foi abrir o conjunto
com a quadra “eu vi a luz...”, porque, num autógrafo que consultei na casa de
Carlos Amaro, Pessanha escreveu que aquele era para ser o primeiro poema de seu
livro, “em tempos delineado”. A segunda foi fechar o volume com o poema que
começa “ó cores virtuais”, como nas edições dos Osórios, aceitando o argumento
deles de que o poema fora escrito para encerrar o volume. Ou seja, como sempre
fiz desde que não tivesse indícios ou elementos de contradição, aceitei nesse
ponto o testemunho dos Osórios.
A concessão que fiz de menos livre vontade foram na
verdade duas: intitular o conjunto “Clepsidra” e deixar escrever “edição
crítica” na ficha do volume. Ambas foram exigências do editor, a que me dobrei –
talvez feliz por poder assim justificar o belo título e certamente infeliz por
meu trabalho ser apresentado como o que não era, ou seja, uma edição crítica.
Esse foi, em linhas gerais, o meu trabalho. E talvez
agora deva encerrar dizendo alguma coisa sobre o que não se percebeu dele e
também sobre uma discordância que tenho com relação a algumas das edições dos
poemas de Pessanha que foram feitas posteriormente a ele.
O que não se percebeu foi que, do ponto de vista da
aproximação à obra de Pessanha, a minha edição propunha um trabalho com o
universo textual do autor, no qual não necessariamente a última versão de um
poema era a mais importante ou a mais significativa do ponto de vista da
leitura ou da interpretação.
Ou seja: o que não se percebeu é que, ao contrário do que
também se busca fazer atualmente no campo da edição de autores contemporâneos,
meu interesse não era afirmar uma versão mais próxima ou fiel à suposta ou real
intenção do autor. O que pretendi foi, isso sim, afirmar o caráter inacabado e inacabável do que teria sido o livro
de Pessanha, tornando as várias versões disponíveis equivalentes, do ponto de
vista do interesse da leitura.
E foi justamente o rendimento dessa hipótese o que tentei
mostrar no estudo que fiz a seguir sobre os versos de Pessanha – o ensaio Nostalgia, exílio e melancolia – leituras de
Camilo Pessanha –, no qual trabalho em vários momentos a história dos
textos e as suas versões, confrontando versos com cartas, declarações, texto em
prosa, na tentativa de refletir o caráter movente da poesia do autor e
identificar o que me parecem dois modos,
duas poéticas que organizam as
imagens, símbolos e temas dispersos ao longo do universo textual que chamamos
de Camilo Pessanha.
No que diz respeito à discordância, a questão é a
seguinte. Clepsidra é o título que
Pessanha, comprovadamente, em algum momento, imaginou para a publicação em
volume de um conjunto de seus poemas. Mas não temos nenhum registro seguro de
quais poemas integrariam esse livro, nem como nele seriam dispostos.
Assim, só me parece haver dois usos razoáveis para esse
título. O primeiro é quando se trata de reproduzir a edição de 1920. Não porque
essa edição seja uma edição autoral. Como julgo ter demonstrado, a edição de
1920 foi a recolha possível dos versos disponíveis de Pessanha naquele momento
e para aquela editora, arranjados em partes e sequência segundo um critério que
nada indica (pelo contrário) terem sido de autoria de Pessanha – e ainda
utilizando versões problemáticas, recolhidas de publicações precárias e não
autorizadas. Ou seja: o uso apenas documental, diplomático. O segundo, menos
razoável – mas mais defensável –, é o que fiz dele: já que não se sabe o que
iria no livro, abrigam-se sob esse título todos os poemas hoje encontráveis.
O terceiro uso já me parece problemático. É o que fazem
os editores que tomam por base a última edição de João de Castro Osório e o que
fez o meu querido amigo Gustavo Rubim, ao denominar Clepsidra a uma antologia de poemas. Sei que ele vai falar sobre
isso, pois no título da sua fala comparece a palavra “sobranceria” e foi como
essa palavra que qualifiquei – invejável sobranceria, eu disse – a forma como
organizou, sem justificativas e escudado apenas no seu (quanto a mim,
indubitável) gosto, uma antologia, que apresentou sob o nome do livro perdido
ou nunca conseguido por Pessanha.
Mas a discordância com Rubim não diz respeito ao ato
sobranceiro da escolha. Quanto a isso, desde o começo estou de acordo e o
trabalho que fiz de edição teve por objetivo permitir que leitores de Pessanha
pudessem escolher sobranceiramente, no banco de dados textual, o que melhor
lhes parecesse representar a poesia do autor.
Minha discordância diz respeito apenas à redução – por conta
da aplicação restritiva do título, sem a informação modalizadora de que se
trata de uma antologia, no sentido próprio da palavra – do livro inexistente a
esse livro particular. Denominasse ele a sua seleção “antologia”, ou registrasse
que se tratava de seleta, nenhuma discordância haveria entre nós quanto ao
direito de fazer – apenas divergências quanto à escolha, pois creio que ele
deixou de fora poemas muito notáveis sob qualquer ponto de vista.
E aqui devo registrar que sinto imensamente não poder
participar do colóquio também porque gostaria muito de ouvir o que esse crítico
notável tem a dizer sobre as nossas diferenças.
Enfim, era isso o que eu diria se aqui estivesse.
E mais uma vez me desculpando pela ausência, deixo aqui
os meus cumprimentos à organização do congresso e aos colegas que não pude,
desta vez, rever.
Campinas, agosto de
2013