[Jornal 7]
A fúria de Camões[1]
sobre Sete contos de fúria, de António
Vieira (Ed. Globo, 2002)
O título deste volume pode levar a engano sobre o que
há nele. É que os conteúdos afetivos não aparecem ali em estado bruto. A
racionalidade não parece prestes a ceder a um impulso que não pode suportar;
nem a superfície da linguagem parece agitada por alguma intuição terrível. Pelo
contrário, a razão é soberana ao longo do volume. O trabalho de escrita exibe
cuidado construtivo e busca voluntariamente um registro anti-realista, que
força às vezes a chave alegórica. Nas personagens tampouco há traços comuns de
constituição associados à paixão que dá nome ao conjunto. E mesmo as epígrafes
que abrem o volume e cada um dos contos sugerem uma escrita da espécie da
glosa, isto é, do desenvolvimento exemplar de uma frase ou idéia alheia.
A fúria que
denomina estas histórias é de outra ordem. Os contos são vaticínios, e a
referência, num autor português, é explícita: a fúria que Camões pedia para si,
“grande e sonorosa”, contraposta à “frauta ruda” e à “agreste avena”. O épico,
aliás, é uma denominação que dá conta de importantes características desse
livro, quais sejam a elevação da linguagem e o anseio de universalidade dos
temas. Nesse sentido, adaptando as recusas camonianas, sua narrativa pode ser
vista como um contraponto seja à “agreste avena” da narrativa centrada nas
vicissitudes amorosas ou na apresentação de uma irredutível individualidade;
seja à flauta rude do neo-realismo, que tem vendido bem em sua versão suburbana
de testemunho da monstruosidade social.
Neste livro,
quase não há “interioridades”. Tudo é amplamente iluminado, como é próprio da
épica, e cada pormenor remete ao universo dos grandes textos e temas da
tradição ocidental. E os nomes estranhos, as paisagens exóticas e minimalistas,
as situações mais que improváveis combinam-se, numa linguagem ostensivamente
trabalhada, para “desrealizar” as cenas e enredos. É certo que a presença de
monstros e deuses materializam o tema do poder desmesurado e da opressão. Mas
como não há, por princípio, representação realista da vida social, o foco de
interesse é a percepção dos intertextos, alusões e símbolos.
A leitura do
volume não é, por isso mesmo, pacífica. As histórias têm um desenvolvimento
arrastado, que as faz parecer mais longas do que são. Também é perturbadora a
unidade da linguagem e o princípio compositivo, que é a repetição, em variações
cumulativas, de uma imagem ou conceito básico. Qualquer que seja o narrador e a
situação narrativa, as frases são sempre cadenciadas (às vezes em metro
regular), a adjetivação é saturada e as comparações e as metáforas descritivas,
abundantes.
Do ponto de
vista temático, os contos são ensaios sobre o divino. Melhor dizendo, sobre
formas de ocupação, na geografia mental, do lugar reservado à divindade. Esse
lugar, subitamente vazio, indignamente preenchido ou em transformação, é o fio
que os une. No primeiro deles, um cientista judeu descobre, por meio de um
supertelescópio, a sombra do cadáver de Deus, morto ao criar o universo. No
último, o falo decepado e indestrutível de Osíris é descoberto no deserto e,
após a tentativa frustrada de um grupo de iniciados, que tenta recompor a
integridade do deus, desaparece nas águas do Nilo. O nome do primeiro conto é
“O Grande Luto”. O do último, “A Restituição”. Entre esses dois extremos,
estendem-se as modulações do tema da perda e da impossibilidade de substituição
do bem perdido.
Na maior parte
das histórias, o paganismo fornece a base dos nomes e dos enredos. Delas, a
melhor me parece ser “Eôs”, uma versão da fábula grega. Como se sabe,
apaixonada pelo jovem, a deusa Aurora obteve de Zeus a imortalidade do amante,
Títonos, esquecendo-se, porém, de lhe garantir a eterna juventude. Com o passar
do tempo, Títonos reduziu-se a uma forma encarquilhada e repulsiva, terminando
por metamorfosear-se em cigarra. Na versão de Vieira, o cenário é meloso, quase
uma recriação olímpica de Hollywood. O que a redime é a destruição da
verossimilhança. Exemplos: Eôs negocia com Zeus pelo telefone (um aparelho
modelo belle époque, aliás) o destino de Títonos; este passa suas horas
de tédio contemplando fotografias com uma lupa; Zeus, que no conto se chama
Suze, é um inescrupuloso industrial do ramo das armas de longo alcance; Eôs, em
paga do veneno que livrará Títonos da vida eterna, se oferece a Suze como
prostituta de luxo, servida por uma limusine. As quebras de expectativa não
resultam, porém, numa adaptação modernizadora do mito grego, pois as tensões
produzidas pelos anacronismos violentos permanecem irresolvidas. Afirma-se
assim um intuito de paródia cruel, que contamina a leitura e justifica o
registro algo piegas.
Nos melhores
momentos, este livro exibe o brilho intenso de uma ironia refinada e corrosiva.
Nos piores, a impotência da amargura vertida em simbologia mais ou menos
evidente. O tom geral do livro talvez pudesse ser resumido no título da
primeira história, “O Grande Luto”. Mas o desenho do volume, que termina na
história do falo de Osíris, bem como o esgar de riso que se insinua em
episódios como o dos amores de Eôs, mostram que a paixão que preside ao
conjunto é um luto específico e mórbido: a melancolia. É dela que nasce o furor
enunciado no título: o furor frio, lógico e estático, que dá força e justifica
tanto a opacidade da linguagem ornada e alegórica, que flerta com o kitsch,
quanto as quebras de verossimilhança, que inviabilizam a leitura realista ou a
ingenuidade reverencial.
Com vários
pontos altos, os “Sete contos de fúria”, entretanto, formam um conjunto
desigual. Se alguns são ótimos, como “Eôs”, outros são apenas razoáveis, como
“Vida e morte de Argos”, que glosa, num enredo plano, o velho tema da relação
homem-poder-máquina num futuro indeterminado. Nesse caso, a ausência de paródia
faz com que as características da escrita do autor revertam em saturação
simples, gerando desinteresse.
Em suma, este
livro de Antonio Vieira tem um duplo apelo e se move numa zona furta-cor. Se o
leitor se aperceber da natureza da fúria específica que o organiza e atentar
para a sua permanente atuação em todos os níveis textuais, não deixará escapar
o que há de novo e vivo no conjunto das histórias. Caso contrário, só lhe
restará recusar a leitura, ou então sucumbir à sedução do alegorismo mais ou
menos fácil, que interpela diretamente uma “natureza humana” sem tempo nem
espaço.