Poesia de Bukowski em
português
[Jornal 13]
Os
25 melhores poemas de Charles Bukowski foi um dos últimos trabalhos de Jorge
Wanderley. É um bom livro. Lendo-o, impressiona por manter em português o mais
característico da obra de Bukowski: a informalidade, o aparente desleixo de
linguagem, o registro baixo que emerge de súbito e salta à cara do leitor, bem
como o imprevisto lirismo que surpreende com o sinal oposto. Principalmente,
ressalta o difícil equilíbrio desses registros, a combinação própria, que dá o
sabor específico da poesia e também da melhor prosa de Bukowski.
Há
muitas maneiras de avaliar uma tradução. E há mesmo, sobre tradução, muito
debate e acirradas divisões em vertentes teóricas. E, como muitas vezes
acontece, essas discussões alimentam não apenas revistas especializadas, mas
ainda podem ramificar-se em importantes divisões acadêmicas que, em casos
extremos, fundam, fendem ou fundem departamentos inteiros.
Sem
querer disputar com os especialistas nem o jargão, nem a base de fundamentos ou
de crenças, muito particularmente julgo que uma boa tradução é aquela que mais
prescinde do original. Aquela na qual o tradutor encontra uma forma de dizer
que basta por si mesma.
É
claro que um bom livro de poemas traduzidos deve trazer, lado a lado, o texto
de base e o texto traduzido. Isso funciona mais ou menos como uma garantia, um
gesto de confiança e de generosidade. O leitor pode comparar, pode ler verso a
verso em uma e outra língua, pode ler aos blocos, poemas inteiros, em sucessão.
Se gostar da tradução, fica com ela; se não gostar, sempre tem ao lado o texto
na língua em que foi primeiramente escrito.
Mas o
que me parece o triunfo do tradutor é aquele momento no qual, depois de
conferir, meio desconfiado, alguns tantos versos e poemas, e percebendo a
propriedade ou a coerência das escolhas, o leitor percorre apenas o texto na
sua própria língua, para ver como soa aquele poeta na língua que não era dele,
mas que é a do leitor. Para ler, afinal, uma interpretação.
Nesse
sentido, é uma alegria, para os amantes do velho Hank, tê-lo assim tão
carinhosamente vertido para o português (e charmosamente editado, da capa ao
miolo).
É
certo que um exame atento pode levar a concluir que o Bukowski-Wanderley é mais
homogêneo em termos de linguagem. Os coloquialismos e a imitação de linguagem
oral, presente em vários versos dos poemas escolhidos, acabam recebendo uma
veste mais padronizada. Não há violência linguística, nos textos de Wanderley.
E em alguns momentos, a impressão é a de que a linguagem de Bukowski sofre
mesmo alguma elevação de tom.
No
geral, porém, a operação de leitura é coerente e produz um texto harmônico.
Dá-se algo parecido a uma canção, quando é transposta de tom. A mudança é
sensível na modulação, mas o resultado conserva o desenho das frases, e o
conjunto soa bem.
Os
pontos que poderiam ser objeto de maior reparo são poucos. Há algumas rimas a
mais, o que dá ao texto às vezes um caráter bastante diferente do que tem em
inglês. O caso mais notável é o da tradução destes versos: “I cannot rhyme. / I
am too tired to / steal”. Em português, ficou assim: “não sei rimar. / estou
cansado demais para / roubar.” Se a assonância rhyme/tired encontrou
equivalente adequado em rimar/demais, a inclusão da palavra “roubar” torna o
terceto uma contradição em termos, pois em português o poeta diz, rimando, que
não vai rimar... O que é o mesmo que dizer que na nossa língua temos um verso
sarcástico, enquanto em inglês temos um verso apenas plano.
Há
uma oscilação na hora de traduzir, ao longo do livro, algumas palavras
repetidas. O caso mais flagrante é o de uma palavra cara ao poeta, whore.
No poema “Entrevistado por um ganhador do Guggenheim”, lemos “esse
sul-americano ganhador de um Gugg / entrou aqui com a prostituta dele”; logo
abaixo, a mesma palavra já é traduzida por “puta”, da mesma forma que no poema
“Muito”, onde lemos “é como uma cave, isso aqui: / cheia de morcegos e putas”.
Nos três casos, em inglês temos a mesma palavra. E a mim me parece claro que,
no primeiro caso, a palavra deveria ser a mais chula, inclusive porque o ritmo
ficaria mais adequado, pois em inglês o segundo verso é sensivelmente mais
breve do que o primeiro; e em português, além de próximo da extensão do primeiro,
resultou um verso de medida clássica, um sáfico, cujo efeito aqui parece pouco
adequado.
É
preciso considerar, na hora de fazer reparos, que as traduções talvez não
tenham tido uma revisão final do autor. Uma última leitura talvez eliminasse,
por exemplo, no belo “The last generation”, o que me parece um problema na
tradução do verso “many others broken in victory”. Em português, ficou: “muitos
outros falidos na vitória”. Como o título foi traduzido por “A geração falida”,
cria-se, a meu ver, um problema com a utilização do mesmo termo português para
“last” e “broken”, porque quem lesse o texto apenas em nossa língua tenderia a
ler o verso acima como o centro de força do poema. O que não é verdade. Ao
menos, não como seria se a palavra do título, que é um trocadilho com a
denominação “lost generation”, também aparecesse nesse verso, junto com a
palavra “vitória”. E, sem dúvida, uma releitura cuidadosa eliminaria uns poucos
tropeços maiores, como o do verso “and she has been looking for a job”, de “Conversa
às três e meia da madrugada”, que resultou num insustentável “e ela tem estado
procurando emprego”...
Quanto
à escolha dos poemas, dada a vastidão da obra poética de Bukowski, não posso
dizer muito. Wanderley recolheu os poemas que traduziu de três livros: uma
seleção dos melhores poemas, publicada pela primeira vez em 1960, uma coletânea
da primeira parte da década de oitenta e o volume The Last Night of the
Earth Poems, de 1992. Por certo, a apresentação de apenas 25 poemas sob
esse título valorativo é uma aposta arriscada. Como todas as apostas das
antologias, é certo. Mas aqui, dada a exígua dimensão do conjunto, o peso e o
risco da seleção dos “melhores” parecem muito grandes.
Num
prefácio comovido, que apresenta o sentido desse livro na vida de quem o
traduziu, Márcia Cavendish Wanderley explicita o princípio e a opção: “Jorge
Wanderley viu no bardo marginal uma reprodução de si próprio, dividido entre o
permitido e o proibido, essa linha tênue que nos persegue em vida,
condenando-nos ao banal ou elevando-nos ao epifânico”.
É
certo que quase tudo que li de Bukowski ressalta a epifania que brota da
banalidade, da sujeira e do rebaixamento. Mas não em toda parte encontramos o
momento de revelação do desejo de ternura, ainda que impossível, e a cedência
ao humor como redenção parcial e afetiva, numa síntese precária. No mais das
vezes, o texto de Bukowski cristaliza um momento de frustração absoluta, da
entrega ao destino sem futuro nem elevação.
Mas
os termos da dicotomia formulada no prefácio são adequados para compreender o
movimento desta antologia. E se existe um critério a orientar a seleção, sem
dúvida ele consiste na busca de poemas que operam mais claramente essa elevação
ao epifânico. E por poemas nos quais o tom sentimental tenha um lugar
importante.
É uma
escolha. E sendo uma escolha derradeira, esse conjunto de traduções que se
publica, póstumo, se deixa ler como um testamento e como uma consolação.
O livro: Márcia
Cavendish Wanderley (org). Os 25
Melhores Poemas de Charles Bukowski. Edição Bilíngüe com tradução de Jorge Wanderley. Rio de Janeiro,
Editora Bertrand Brasil, 2003.
Resenha publicada em Germina Literatura, em maio de 2004.
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