O
Primo Basílio
[texto de apresentação à edição anotada da obra, pela Ateliê Editorial]
Para
compreender melhor o período em que Eça de Queirós viveu e produziu seus
textos, é preciso recuar um pouco no tempo e rastrear, na história de Portugal,
as grandes transformações pelas quais passou aquele país ao longo do século
XIX.
O
fato político mais importante da primeira metade do século é a luta entre os partidários
da continuidade da monarquia absoluta e os partidários da implantação de um regime
liberal, em que o poder do Estado fosse definido por uma constituição e o
sistema de propriedade fosse modernizado. A primeira revolução liberal
aconteceu em 1820, e foi propiciada pela estranha situação política e
administrativa criada com a transferência, em 1808, da corte portuguesa para o
nosso país, que, na prática, inverteu a relação de dependência entre a
metrópole e a colônia . Mas foi a independência política do Brasil que deu nova
força ao liberalismo na antiga metrópole, porque, perdida a principal fonte de
sustento e de riqueza, Portugal se viu frente à necessidade de redefinir os
rumos da sua vida econômica e as bases do seu regime político. Também no plano
ideológico, a independência brasileira foi um acontecimento da maior
importância, porque significou muito claramente o fim da ilusão de que Lisboa
pudesse manter-se indefinidamente como cabeça de um grande império ultramarino.
A
implantação do liberalismo em Portugal redundou numa guerra longa e penosa
(1832-1834), em que se defrontaram os dois filhos de D. João VI. De um lado,
estava o filho mais moço, D. Miguel, que em 1828 dera um golpe de estado e
restaurara o regime absolutista; de outro, chefiando um exército de exilados, o
filho mais velho, D. Pedro, que em 1831 abdicara da coroa brasileira para
reivindicar o título de rei de Portugal e garantir o regime liberal naquele
país. Se a expressão política do liberalismo em Portugal é o que chamamos hoje
de Constitucionalismo, a sua expressão literária é o Romantismo. Essa conjugação
é visível na biografia de dois dos maiores escritores portugueses românticos, Almeida
Garrett (1799-1854) e Alexandre Herculano (1810-1877), que não foram
partidários do liberalismo apenas no plano das idéias, mas pegaram em armas
para defendê-lo, alistando-se no exército de D. Pedro.
Essa
primeira geração romântica, marcada pela guerra, vai manifestar uma aguda
percepção de que o país estava em crise e de que eram necessárias medidas
enérgicas para revitalizá-lo, e por isso tanto Garrett quanto Herculano vão
trabalhar intensamente no sentido de construir as novas tradições e
instituições de que o novo regime necessitava. Nos trinta anos que se seguem à
guerra, assiste-se ao esforço de criação de uma cultura liberal: reescreve-se a
história da nação, reorganizam-se os arquivos e bibliotecas, criam-se novos
instrumentos de produção e divulgação cultural, reforma-se o ensino básico e
cria-se o ensino técnico, desenvolve-se uma série de publicações periódicas
destinadas à instrução do novo público burguês.
Mas o
resultado do esforço de modernização empreendido pelo Constitucionalismo não
parece redundar na formação de uma sociedade mais justa, nem sequer na atualização
de Portugal face às demais nações européias. Essa é pelo menos a percepção da
segunda geração intelectual de importância surgida no período
constitucionalista, que estréia literariamente em 1865 com a chamada Questão
Coimbrã. Essa geração, cujos principais integrantes eram Antero de Quental, Oliveira Martins, Teófilo
Braga e Eça de Queirós, ficou conhecida pelo nome de Geração de 70, e a ela se
deve a introdução do Realismo em Portugal. Do ponto de vista da ação política,
a Geração de 70 tinha como objetivo declarado proceder a uma ampla crítica da
sociedade portuguesa, como forma de superar o que considerava ser um estado de
profunda decadência da vida espiritual e econômica da nação. Para iniciar o
movimento de idéias que deveria desencadear as reformas necessárias, esses jovens
intelectuais organizaram em 1871, no Casino Lisbonense, uma série de
conferências abertas sobre os temas que julgavam mais importantes no debate
cultural do tempo.
Embora
tenham sido logo proibidas pelo governo, as Conferências tiveram importância
central na redefinição dos rumos da cultura portuguesa, e alguns dos nomes mais
conhecidos do Portugal oitocentista se encontram, de uma forma ou de outra,
ligados à sua realização.
A
primeira conferência, depois da fala de abertura, foi feita por Antero de
Quental e se intitulava “Causas da decadência dos povos peninsulares nos
últimos três séculos”. A longo prazo, foi esse um dos textos que teve mais
repercussões na moderna cultura portuguesa e pode-se ver nele uma síntese
ideológica da visão histórica do grupo todo. O ponto central da visada de
Antero era a tese de que Portugal (e também a Espanha, mas em outra medida) se
encontrava há muito tempo num processo de decadência que era urgente interromper
e reverter. Antero identificava três causas para a decadência das nações
ibéricas: no plano moral, a causa era o catolicismo da Contra-Reforma, que,
entre outros males, teria impedido o desenvolvimento do moderno pensamento
científico e filosófico na península; no plano político, apontava a longa
vigência do regime absolutista, que com os seus privilégios de classe impedira
a formação de uma burguesia forte; no plano econômico, finalmente, responsabilizava
a persistência de uma economia baseada na exploração das colônias pela ausência
da valorização do trabalho e do esforço de industrialização que era característico
do século XVIII europeu. A esses fatores negativos na determinação da vida ibérica,
Antero opunha simetricamente os três fatores que julgava responsáveis pelo
progresso de outros países europeus: a Reforma protestante, a ascensão das
classes médias pela implantação de regimes liberais ou republicanos e o
desenvolvimento de indústrias nacionais. Embora esta apresentação seja muito
sumária, já se pode ver aí que duas das bases principais da auto-imagem
portuguesa eram duramente atacadas por Antero: o catolicismo e a empresa dos
descobrimentos, que levou à exploração das colônias.
Tão
importante foi essa conferência, que se pode mesmo dizer que a obra cultural da
Geração de 70 consiste no desenvolvimento das teses e propostas aí
apresentadas, e que, cada um a seu modo, os companheiros de Antero tratarão de
descobrir e apresentar caminhos para reverter a decadência profunda que, de seu
ponto de vista, caracterizava aquele momento da vida nacional.
A
participação de Eça de Queirós nas Conferências consistiu numa fala combativa,
em que o escritor defendeu a idéia de que a literatura deveria estar engajada
no amplo processo de revolução que era necessário à modernização do país..
A
reivindicação central da conferência de Eça, de que temos hoje apenas um resumo
e não o texto completo, é a de que a arte moderna tinha por objetivos examinar
a sociedade e o indivíduo e proceder à “crítica dos temperamentos e dos
costumes”. Ao fazê-lo, a arte moderna tornava-se uma eficiente “auxiliar da
ciência e da consciência”, e se comprometia com a verdade e a promoção da
justiça social, isto é, com a revolução. Entendida assim a arte como forma de
conhecimento e veículo de uma proposta de alteração da estrutura social, era
claro para o autor que o romance moderno, devendo fundar-se sobre a observação
e a análise, tinha necessariamente de buscar os seus temas no tempo presente,
na vida contemporânea. Nas suas próprias palavras:
“O
realismo deve ser perfeitamente do seu tempo, tomar a sua matéria na vida
contemporânea. Deste princípio, que é basilar, que é a primeira condição do
realismo, está longe a nossa literatura. A nossa arte é de todos os tempos,
menos do nosso.”
Dentro
das coordenadas da época, é fácil ver qual é o antagonista visado por essas
palavras de Eça de Queirós. Tomado por uma concepção da arte em que o essencial
era a verdade e a pertinência da análise, Eça entendia que o passado era objeto
de uma outra arte ou ciência, a história, que dispunha de métodos e técnicas
próprios para atingir a verdade. Temos aqui, portanto, uma completa recusa a
uma das formas privilegiadas do romance romântico, a novela histórica, que o escritor realista vê apenas como
fantasiosa, inútil e deseducativa. À literatura, assim, ficava reservado um estatuto eminentemente
crítico e participativo, e por isso o seu método deveria ser a observação e a
análise do tecido social contemporâneo e a sua finalidade a correção dos
problemas detectados. Daqui à fórmula famosa com que um dia Eça definiria a sua
arte, vai apenas um passo: a literatura, escreverá, deve apresentar, “sob o
manto diáfano da fantasia, a nudez crua da verdade”.
Por
se ter assim pronunciado e por ter composto, a partir dessas premissas o seu
primeiro grande romance, que é O Crime do Padre Amaro (1ª ed:1875; 1ª
ed. em livro: 1876; 2ª ed. em livro:1880) Eça de Queirós vem referido nos
manuais escolares como o introdutor do Naturalismo em Portugal. É verdade. Mas
também é verdade que a obra de Eça não pode ser inteiramente enquadrada sob
essa definição. De fato, se por Naturalismo entendermos o romance baseado na
investigação das determinações que o meio físico, os costumes e a herança
genética impõem às personagens, de todos os livros publicados em vida de Eça de
Queirós apenas poderão ser denominados naturalistas (e mesmo assim com
reservas) os romances O Crime do Padre Amaro, e O Primo Basílio (1878).
As obras que publicou antes ou depois dessas, pouco têm a ver com o
Naturalismo, como podemos observar no rápido esboço da sua evolução literária,
que apresentamos a seguir.
1.
Eça de Queirós e o romance naturalista
Os
primeiros textos ficcionais de Eça de Queirós são algumas crônicas e contos
escritos por volta de 1865 e só reunidos em livro postumamente, sob o título de
Prosas Bárbaras. São narrativas breves, marcadas pela influência de
nomes emblemáticos da literatura fantástica – Gérard de Nerval, Edgar Allan Poe,
E. T. Hoffman, H. Heine – e sobretudo pelo espiritualismo do grande escritor do
tempo, Victor Hugo. Impregnadas de um forte sentimento místico panteísta, essas
Prosas não trazem, nem nos temas,
nem na forma, qualquer indicação de que o seu autor será, passados uns poucos
anos, o convicto defensor do Realismo artístico. Por outro lado, pode-se dizer
também que foi bastante rápida a fase programaticamente naturalista da produção
de Eça de Queirós, pois já em 1880, apenas dois anos depois de O Primo
Basílio, o romancista publica O Mandarim, que ele mesmo define como
“um conto fantasista e fantástico, onde se vê ainda, como nos bons velhos
tempos, aparecer o diabo, embora vestindo sobrecasaca, e onde há ainda
fantasmas, embora com ótimas intenções psicológicas”. O Mandarim
representa, na obra do autor, um divisor de águas. Como Eça registrou em carta
ao seu editor francês, essa obra “se afasta consideravelmente da corrente
moderna da nossa literatura, que se tornou, nestes últimos anos, analista e
experimental”. Pelo seu enredo fabuloso – em que um indivíduo consegue, por
meio de um pacto com o diabo, matar magicamente um mandarim e herdar-lhe impunemente
a fortuna – pelo gosto pronunciado do exotismo, pela ausência de interesse em
condicionalismos que determinassem a ação dos indivíduos e, finalmente, pela
intervenção do sobrenatural, temos aqui um texto que não se enquadra nos
objetivos e definições da arte que encontramos na famosa conferência proferida
em 1871.
Os
textos escritos por Eça de Queirós depois de O Mandarim também muito dificilmente
se poderão denominar naturalistas, e suas últimas obras, desenvolvendo os elementos
centrais do seu estilo, apontam claramente para a constituição de um discurso impressionista.
O momento mais alto desse desenvolvimento do estilo e da forma de composição
queirosianos encontram-se em textos pouco conhecidos: as impressionantes vidas
de santos (São Cristóvão, Santo Onofre), escritas no final da vida do
escritor, deixadas mais ou menos inacabadas, e só reunidas em livro postumamente,
em 1912.
No
quadro de sua obra, portanto, O Primo Basílio pertence ao que poderíamos
chamar de a segunda fase da escrita do autor, aquela que se deixa definir como
de influência naturalista e que se inaugura com a publicação, em 1875, de O
Crime do Padre Amaro. O Crime,
que sofreu uma profunda alteração entre a primeira e a segunda edição em volume,
é o romance mais naturalista que o autor publicou: enfoca uma instituição
social específica -- o celibato religioso -- e tenta demonstrar os efeitos
nocivos que dele decorrem muito freqüentemente. Ao mesmo tempo, o caráter da
personagem principal é bastante determinado pela sua história pessoal, seja no
nível da herança biológica, seja no nível da influência exercida pelo meio em
que foi criado.
Mas
já quando publica O Primo Basílio o autor não parecia sentir-se completamente
à vontade quanto aos princípios que defendia enquanto artista revolucionário. É
o que nos mostra uma carta que escreveu a Teófilo Braga, seu companheiro de
geração, que como ele defendia o empenho da arte na promoção da justiça social.
Teófilo, escritor e filósofo combativo, lera o romance e gostara muito,
elogiando o autor nestes termos: “como processo artístico O Primo Basílio
é inexcedível; não haverá nas literaturas européias romance que se lhe
avantaje.” Em resposta, escrevia então Eça de Queirós, em março de 1878: “muitas vezes, depois de ver o Primo
Basílio impresso, pensei: – o Teófilo não vai gostar! Com o seu
nobre e belo fanatismo da Revolução, não admitindo que se desvie do seu serviço
nem uma parcela do movimento intelectual – era bem possível que Você, vendo o Primo
Basílio separar-se, pelo assunto e pelo processo, da arte de combate a que
pertencia o Padre Amaro, o desaprovasse.”
É
que Eça percebia, talvez melhor do que o filósofo, que O Primo Basílio
não era um texto da mesma espécie que O Crime do Padre Amaro. Por isso,
mesmo depois da recepção entusiasmada de Teófilo, ele se preocupa em frisar o
potencial revolucionário do livro, dizendo que traçara ali “um pequeno quadro
doméstico, extremamente familiar a quem conhece bem a burguesia de
Lisboa”. E para ressaltar o conteúdo da
crítica social que existia no livro, apresenta desta forma as personagens do
romance:
“a
senhora sentimental mal educada, nem espiritual (porque cristianismo já o não
tem; sanção moral da justiça, não sabe o que isso é), arrasada de romance,
lírica, sobreexcitada no temperamento e pela ociosidade e pelo mesmo fim do casamento
peninsular que é ordinariamente a luxúria, nervosa pela falta de exercício e
disciplina moral, etc, etc, – enfim a burguesinha da Baixa. Por outro
lado, o amante – um maroto, sem paixão nem a justificação da sua tirania, que o
que pretende é a vaidadezinha de uma aventura, e o amor grátis. Do outro
lado, a criada, em revolta secreta contra a sua condição, ávida de desforra.
Por outro lado ainda, a sociedade que
cerca estes personagens – o formalismo oficial (Acácio), a beatice parva de
temperamento irritado (D. Felicidade), a literaturinha acéfala (Ernestinho), o
descontentamento azedo, e o tédio de profissão (Julião) e às vezes, quando
calha, um pobre bom rapaz (Sebastião).”
O
resumo de Eça, que é bastante empobrecedor e, em alguns aspectos (como na
caracterização de Juliana), infiel ao livro, procura destacar o potencial
crítico de sua obra, carregando nos traços que descrevem os defeitos das
personagens. Mas aqui mesmo já aparece uma característica central do romance:
não há, nessa estrutura, uma rede determinística. Trata-se de um ensaio de
descrição de um ambiente que se apresenta como típico, mas as relações entre os
elementos envolvidos é determinada de modo negativo: é a falta de formação
religiosa e de outros imperativos morais que cria as condições para o desenvolvimento
da trama. As personagens são, em certo sentido, vítimas de uma conjunção casual
de situações e a crítica social se exerce, aqui, por meio do reforço do traço
caricatural. Foi de fato essa uma das críticas mais recorrentes que o livro
sofreu, como logo veremos. Mas por enquanto, o que queríamos realçar, é a
diferença de perspectiva artística entre os dois primeiros romances
queirosianos; diferença essa, lembremos, que ele mesmo reconheceu ao notar que O
Primo Basílio não era um texto construído segundo o mesmo “processo” que
utilizara em O Crime do Padre Amaro.
Hoje,
lendo em perspectiva essa carta de Eça e o texto do seu romance, percebemos,
como ele não podia talvez perceber, o quanto de esforço de justificação ia
nessas palavras a Teófilo, e o quanto ele se distanciava já dos pressupostos
naturalistas que originavam, na França e um pouco por toda a parte, os chamados
“romances experimentais”. Preocupado com as questões programáticas, Eça não
parece se dar conta de que o seu texto já não segue o modelo que, naquele
momento, ele mesmo julga ainda ser o melhor, e por isso se mostra tão inseguro
quando ao processo de composição que empregara em O Primo Basílio:
Enquanto ao processo – estimo que Você o aprove. Eu
acho n’O Primo Basílio uma superabundância de detalhes, que obstruem e
abafam um pouco a ação: o meu processo precisa simplificar-se, condensar-se – e
estudo isso. O essencial é dar a nota justa: um traço justo e sóbrio
cria mais que a acumulação de tons e de valores -- como se diz em pintura.
Pobre de mim – nunca poderei dar a sublime nota da realidade eterna, como o
divino Balzac – ou a nota justa da realidade transitória, como o grande Flaubert!
Eça
de Queirós aqui parece lamentar que o processo de construção da narrativa de O
Primo Basílio não seja o mesmo que reconhece nos seus modelos realistas. De
fato, não é. Porém o que ele sente como defeito neste começo de carreira
literária será, ao longo do tempo, uma das maiores qualidades do seu estilo e
uma marca da sua modernidade: a abundância de detalhes e o processo de
composição cumulativo, em que a ação muito freqüentemente cai para segundo
plano, enquanto o mundo sensório e a arte da escrita e da ironia vem para a
frente da cena.
À
crítica da época não passou despercebido que o estilo de Eça de Queirós se desenvolvia
numa direção própria, à margem das escolas. Assim, para um naturalista ortodoxo
seu contemporâneo, José dos Reis Dâmaso, era bastante claro já em 1884 que Eça
não podia ser considerado um bom exemplo da arte naturalista: “O que lhe falta
[a Eça] todos nós sabemos: é uma disciplina filosófica que decerto evitaria a
reprodução dos sentimentos romanescos e a sua preocupação única, detestável em
arte, -- a do erotismo depravado que faz com que ele tantas vezes falte à
verdade, ao que é natural e lógico, e despreze a missão social de escritor.”
Esse trecho, além de apontar a falta de ortodoxia filosófica de Eça, traz ainda
um elemento que será muito recorrente na crítica aos primeiros livros de Eça de
Queirós: a acusação de que o autor superpõe, ao que devia ser o método
realista/naturalista, uma mórbida obsessão com o erotismo. A conjugação dessas
duas acusações -- falta de método e falta de moralidade -- constituirá boa
parte da fortuna crítica de O Primo Basílio e se encontrará cristalizada
pela primeira vez num texto muito famoso de um autor brasileiro, sobre o qual
nos concentraremos logo a seguir.
2.
A recepção crítica do romance.
O
sucesso de O Primo Basílio foi
grande e imediato. Uma primeira edição de três mil exemplares se esgotou
rapidamente e uma segunda, com revisões do autor, saiu ainda no mesmo ano de
1878. Pode-se dizer que foi o sucesso de O Primo Basílio que gerou maior
interesse pelo romance anterior. De fato, O Crime do Padre Amaro, que
tinha sido publicado pela primeira vez em livro em 1876, com uma tiragem de
apenas 800 exemplares, vai ser relançado logo a seguir ao sucesso de O Primo
Basílio, encontrando dessa vez muito maior receptividade no público leitor.
A
reação crítica positiva imediata ficou por conta de Teófilo Braga. Apesar do enorme
sucesso de público, a crítica, de modo geral, foi bastante restritiva quanto
aos méritos o romance, e mesmo nos anos subseqüentes à publicação do romance,
contam-se nos dedos as apreciações positivas que recebeu. Assim, depois da
carta de Teófilo, será preciso esperar pelo ano de 1897 para encontrar
novamente uma clara valorização crítica de O Primo Basílio; esta, de
Moniz Barreto: “pela coerência interna, pela abundância e convergência de
pormenores úteis, pela lógica veloz que conduz a ação sem desvio, da primeira à
última página, pelo talento da narração e do diálogo, e sobretudo pela
perspicácia aguda com que esmiúça os escaninhos de uma alma, e a habilidade
dramática com que expõe a influência duma alma sobre a outra, este livro ficará
sendo o exemplar culminante do romance português, comparável às obras-primas do
romance estrangeiro”.
A
recepção crítica do romance no seu próprio tempo foi, portanto, bastante desfavorável,
sendo a tônica das acolhidas negativas a imoralidade da trama e do texto. Hoje
os critérios de avaliação da moralidade de uma obra de arte são muito
diferentes dos que imperavam no século XIX, e por isso temos às vezes
dificuldade em avaliar o impacto que teve esse livro sobre os leitores
contemporâneos. Mas devemos fazer um esforço de compreensão desse impacto,
porque foi a questão da finalidade ou perspectiva moral de O Primo Basílio
que sempre esteve no centro da maior parte das críticas feitas ao livro. Tanto
em Portugal, quanto no Brasil, esse romance foi por muito tempo identificado
como obra naturalista e imoral. Na verdade, os dois adjetivos passaram a ser
quase sinônimos. E foi tão ampla essa reação e tão marcante esse rótulo, que,
no final do século, querendo denegrir certo texto de que não gostara, o diretor
do periódico católico O Cruzeiro, Henrique Correia Moreira, dizia: é
“sórdido como uma página de Eça de Queirós”.
Entre
todas as reações críticas negativas que se seguiram ao sucesso de O Primo
Basílio, há uma que merece atenção, publicada em duas partes em O
Cruzeiro, em abril de 1878, assinada por “Eleazar”. Sob o pseudônimo estava
um escritor que em alguns anos seria o maior romancista da nossa literatura
realista, mas que na época publicava em folhetins, no mesmo jornal, um romance
romântico intitulado Iaiá Garcia. Como o texto de Machado de Assis até
hoje orienta a apreciação crítica de O Primo Basílio , sendo citado praticamente toda vez que se analisa o romance de Eça,
vale a pena analisá-lo detidamente, tentando observar em que consiste a
crítica, de que modo ela se articula, de que concepção de literatura procede e
qual é o seu objetivo.
O
artigo de Machado se organiza de modo a apontar os defeitos de O Primo Basílio
a partir de dois ângulos principais. Por um lado, vê nessa obra uma realização
de uma tendência literária que não merece a sua aprovação: o realismo de Zola.
Ou, como diríamos hoje, o Naturalismo. Por outro lado, considera que o livro
tem defeitos de concepção e de realização, seja na forma de construir as
personagens, seja na forma de compor a trama, seja ainda na maneira de conduzir
a narração.
Machado
inicia o texto constatando que o livro de Eça fazia grande sucesso, e justifica
esse sucesso apresentando duas razões. Por um lado, dizia o escritor
brasileiro, era uma questão de moda: O Primo Basílio era a tradução, para
o português, do receituário naturalista, que já fazia sucesso na França. Por
outro lado, o gosto do público moderno estava muito rebaixado e a literatura
grosseira do Naturalismo o atendia perfeitamente.
Já
quanto ao texto do romance, Machado inicia sua crítica pela forma de constituição
do enredo e das personagens:
Vejamos o que é o Primo Basílio e comecemos por
uma palavra que há nele. Um dos personagens, Sebastião, conta a outro o caso de
Basílio, que, tendo namorado Luísa em solteira, estivera para casar com ela;
mas falindo o pai, veio para o Brasil, donde escreveu desfazendo o casamento.
-- Mas é a Eugênia Grandet! exclama o outro. O Sr. Eça de Queirós
incumbiu-se de nos dar o fio da sua concepção. Disse talvez consigo: -- Balzac
separa os dois primos, depois de um beijo (aliás, o mais casto dos beijos).
Carlos vai para a América; a outra fica, e fica solteira. Se a casássemos com
outro, qual seria o resultado do encontro dos dois na Europa? -- Se tal foi a
reflexão do autor, devo dizer, desde já, que de nenhum modo plagiou os
personagens de Balzac. A Eugênia deste, a provinciana singela e boa, cujo
corpo, aliás robusto, encerra uma alma apaixonada e sublime, nada tem com a
Luísa do Sr. Eça de Queirós. Na Eugênia, há uma personalidade acentuada, uma figura
moral, que por isso mesmo nos interessa e prende; a Luísa -- força é dizê-lo --
a Luísa é um caráter negativo, e no meio da ação ideada pelo autor, é antes um
títere do que uma pessoa moral. Repito, é um títere; não quero dizer que não
tenha nervos e músculos; não tem mesmo outra coisa; não lhe peçam paixões nem
remorsos; menos ainda consciência.
Esta
passagem é bem conhecida, e muitas vezes tem sido citada como um juízo definitivo sobre os defeitos do
livro de Eça. Ora, o que é preciso notar é que esse texto de Machado não é
apenas uma apreciação estética. É claro que é também, e talvez principalmente
estético o foco da discussão, mas não há como não levar em conta que Machado de
Assis, escritor de língua portuguesa empenhado na criação de uma tradição
cultural em nosso país, lia o texto de Eça de uma perspectiva muito
interessada. De fato, é patente no texto um esforço de combate à narrativa naturalista,
que Machado entende aqui como uma narrativa que favorece a descrição e a notação
sensual em prejuízo da análise das paixões e da complicação lógica do enredo. A
crítica de Machado se processa, assim, a partir de uma concepção de romance que
é oposta à que ele identifica no texto de Eça e que ele mesmo tentava pôr em
prática no seu Iaiá Garcia: o bom romance é o que investe na construção
de personagens complexas, movidas por paixões e motivações morais que garantam
o interesse dos desdobramentos da narrativa. O que Machado combate assim, em O
Primo Basílio, não é apenas uma específica realização literária, mas
também, tendo em mente o sucesso de público do livro de Eça, a possível
influência do estilo naturalista sobre a jovem literatura brasileira. Apoiado
numa perspectiva marcadamente romântica, Machado vai de fato mostrar que o
perigo da disseminação do Naturalismo é interromper a continuidade histórica da
literatura de língua portuguesa, e o objetivo de sua crítica se revela quando
ele expressa a esperança de superação do hiato causado pela súbita voga do
Naturalismo: terminada a moda -- que ele mesmo, com esse texto, se esforça por
combater --, “a arte pura, apropriando-se do que ele contiver aproveitável
(porque o há, quando se não despenha no excessivo, no tedioso, no obsceno, e
até no ridículo), a arte pura (...) voltará a beber aquelas águas sadias d’O
Monge de Cister, d’O Arco de Sant’Ana e d’O Guarani.”
Nessa frase, revela-se uma conjunção de sentidos que percorre todo esse texto
de Machado, e procede dos pressupostos românticos que ainda eram os seus: a
arte pura, as águas sadias e o beijo castíssimo de Eugênia Grandet se opõem à
arte impura, às águas perversas da maré naturalista e à sensualidade mais ou
menos vazia que vê no romance de Luísa. Esse poder de corrupção do romance de
Eça é claramente tematizado por Machado, que condena “essa pintura, esse aroma
de alcova, essa descrição minuciosa, quase técnica, das relações adúlteras”, e
conclui pelo perigo que ele representa para o público leitor: “a castidade
inadvertida que ler o livro chegará à última página, sem fechá-lo, e tornará
atrás para reler outras”.
Mas
Machado não quer fazer um julgamento apenas moral. Seu objetivo é também
questionar o resultado estético da concepção naturalista do romance e
demonstrar a sua ineficácia artística. Para isso, procede a uma síntese do
enredo do texto, e tenta apontar as implicações narrativas dos pressupostos da
escola a que filia Eça de Queirós. Vejamos, então, o seu resumo da primeira
parte do livro:
Casada com Jorge, faz este uma viagem ao Alentejo,
ficando ela [Luísa] sozinha em Lisboa; apareceu-lhe o primo Basílio, que a amou
em solteira. Ela já não o ama; quando leu a notícia da chegada dele, doze dias
antes, ficou muito “admirada”; depois foi cuidar dos coletes do marido. Agora,
que o vê, começa por ficar nervosa; ele lhe fala das viagens, do patriarca de
Jerusalém, do papa, das luvas de oito botões, de um rosário e dos namoros de
outro tempo; diz-lhe que estimara ter vindo justamente na ocasião de o marido
estar ausente. Era uma injúria: Luísa fez-se escarlate; mas à despedida dá-lhe
a mão a beijar, dá-lhe até a entender que o espera no dia seguinte. Ele sai;
Luísa sente-se “afogueada, cansada”, vai despir-se diante de um espelho,
“olhando-se muito, gostando de se ver branca”. A tarde e a noite gasta-as a
pensar ora no primo, ora no marido. Tal é o intróito de uma queda, que nenhuma
razão moral explica, nenhuma paixão, sublime ou subalterna, nenhum amor, nenhum
despeito, nenhuma perversão sequer. Luísa resvala no lodo, sem vontade, sem
repulsa, sem consciência; Basílio não faz mais do que empuxá-la, como matéria
inerte, que é. Uma vez rolada ao erro,
como nenhuma flama espiritual a alenta, não acha ali a saciedade das grandes
paixões criminosas: rebolca-se simplesmente. / Assim, essa ligação de algumas
semanas, que é o fato inicial e essencial da ação, não passa de um incidente
erótico, sem relevo, repugnante, vulgar. Que tem o leitor do livro com essas duas
criaturas sem ocupação nem sentimento? Positivamente nada.
Como
se pode perceber, o que incomoda Machado é, principalmente, a falta de motivação
psicológica para a conduta criminosa da protagonista. O que lhe parece repugnante
não é a apresentação da paixão adúltera mas justamente a sua ausência e a
redução do adultério a um simples ato imotivado ou puramente sensual. Não
encontrando no nível na narrativa nada que justifique a transgressão dos
limites morais, identifica aí uma falha estética, pois a personagem lhe parece
uma construção abstrata da vontade do autor. É já uma acusação dura, que
continuará sendo repetida até os dias de hoje, mas, do ponto de vista de
Machado, ainda não aponta para o que seria a falha maior do texto de Eça. Para
o escritor brasileiro, o problema estrutural, correlato deste, mas ainda mais
grave, reside na própria construção e desenvolvimento da trama romanesca:
E aqui chegamos ao defeito capital da concepção do Sr.
Eça de Queirós. A situação tende a acabar, porque o marido está prestes a
voltar do Alentejo, e Basílio já começa a enfastiar-se, e, já por isso, já
porque o instiga um companheiro seu, não tardará a trasladar-se a Paris.
Interveio, neste ponto, uma criada. Juliana, o caráter mais completo e
verdadeiro do livro; Juliana está enfadada de servir; espreita um meio de
enriquecer depressa; logra apoderar-se de quatro cartas; é o triunfo, é a
opulência. Um dia em que a ama lhe ralha com aspereza, Juliana denuncia as
armas que possui. Luísa resolve fugir com o primo; prepara um saco de viagem,
mete dentro alguns objetos, entre eles um retrato do marido. Ignoro
inteiramente a razão fisiológica ou psicológica desta precaução de ternura conjugal:
deve haver alguma; em todo o caso, não é aparente. Não se efetua a fuga, porque
o primo rejeita essa complicação; limita-se a oferecer o dinheiro para reaver
as cartas -- dinheiro que a prima recusa --, despede-se e retira-se de Lisboa.
Daí em diante o cordel que move a alma inerte de Luísa passa das mãos de
Basílio para as da criada. Juliana, com a ameaça nas mãos, obtém de Luísa tudo,
que lhe dê roupa, que lhe troque a alcova, que lha forre de palhinha, que a
dispense de trabalhar. Faz mais: obriga-a a varrer, a engomar, a desempenhar
outros misteres imundos. Um dia Luísa não se contém; confia tudo a um amigo de
casa, que ameaça a criada com a polícia e a prisão, e obtém assim as fatais letras.
Juliana sucumbe a um aneurisma; Luísa, que já padecia com a longa ameaça e perpétua
humilhação, expira alguns dias depois.
Exceto
por um pormenor do desenlace -- a omissão da carta de Basílio que revela o adultério
ao marido de Luísa --, o resumo é muito fiel ao enredo, e a crítica de Machado
se concentra, nesse aspecto, na ausência de uma necessidade psicológica ou
moral para a segunda parte do romance.
O
que parece mais aberrante ao romancista brasileiro é, portanto, a substituição
das determinações morais ou psicológicas por determinações externas à
personagem, como maneira de dar continuidade à narrativa. Segundo Machado, da
mesma forma que Luísa é arrastada para o adultério sem qualquer empenho efetivo
ou envolvimento amoroso, assim também ela poderia depois voltar à vida normal
com o marido, sem quaisquer conflitos de consciência; o que a impede é apenas a
intervenção da empregada, e o seu sofrimento nada tem de interessante, pois não
decorre intimamente nem do adultério, em si mesmo considerado, nem da paixão
amorosa, inexistente no caso.
Acreditando
que o interesse de uma obra ficcional resida principalmente na análise das
personagens e na consideração dos motivos de suas ações (“para que Luísa me
atraia e me prenda, é preciso que as tribulações que a afligem venham dela
mesma”), Machado vai considerar que esse romance de Eça apresenta, no que diz
respeito à estruturação da narrativa, uma incongruência de concepção, um
defeito de ordem estética, que busca identificar com esta pergunta curiosa:
“Suponhamos que tais cartas não eram descobertas, ou que Juliana não tinha a
malícia de as procurar, ou enfim que não havia semelhante fâmula em casa, nem
outra da mesma índole. Estava acabado o romance, porque o primo enfastiado
seguiria para a França, e Jorge regressaria do Alentejo; os dois esposos
voltavam à vida anterior.” É aqui, portanto, que identifica o amoralismo do
romance: na falta de motivação interna para a ligação entre os dois momentos, o
do delito e o da punição. Não havendo, e consistindo toda a primeira parte do
romance na descrição do processo de sedução e do conseqüente adultério de
Luísa, Machado vai concluir pela ausência, no texto de Eça, de um real
propósito de edificação moral, bem como de ensinamento de qualquer espécie. O
que esse romance nos ensina, diz ironicamente Machado, é que se queremos ser
adúlteros temos de escolher bem os criados...
Finalmente,
falta ainda observar um último defeito que Machado atribui ao texto de Eça, e
que se manifestaria agora na própria apresentação da matéria narrada: o olhar
descritivo, exterior, que se compraz na própria descrição e que por isso não
separa o que é acessório do que é essencial. Eis a passagem:
quanto à preocupação constante do acessório, bastará
citar as confidências de Sebastião a Julião, feitas casualmente à porta e dentro
de uma confeitaria, para termos ocasião de ver reproduzidos o mostrador e as
suas pirâmides de doces, os bancos, as mesas, um sujeito que lê um jornal e
cospe a miúdo, o choque das bolas de bilhar, uma rixa interior, e outro sujeito
que sai a vociferar contra o parceiro; bastará citar o longo jantar do
conselheiro Acácio (transcrição do personagem de Henri Monier); finalmente, o
capítulo do teatro de S. Carlos, quase no fim do livro. Quando todo o interesse
se concentra em casa de Luísa, onde Sebastião trata de reaver as cartas
subtraídas pela criada, descreve-nos o autor uma noite inteira de espetáculos,
a platéia, os camarotes, a cena, uma altercação de espectadores.
3.
Um princípio construtivo
O
texto de Machado submete à crítica, assim, todos os níveis da narrativa de Eça
de Queirós. É a concepção que lhe parece equivocada, e não a realização. Por
isso o interesse de Machado não está
fixado naquilo que o livro de Eça realiza e apresenta ao leitor, mas sim
naquilo que ele deveria apresentar ou deixar de apresentar. Escrito para
defender uma dada concepção do romance e para atacar uma outra, que não lhe
corresponde, não é exatamente um texto de avaliação crítica, animado pelo
desejo de conhecer uma forma específica de funcionamento textual, mas um
texto de caráter combativo e,
principalmente, normativo.
Consideremos,
por exemplo, a condenação à sensualidade queirosiana, nos vários níveis em que
ela se processa no texto de Machado. É bastante sensível, aí, uma espécie de
identificação entre a sensualidade e a exterioridade, a superficialidade --
elementos já de início valorados de modo negativo. Essa identificação procede de uma tomada de posição estética que
valoriza na narrativa o aspecto dramático, a tensão criada entre personagens, e
que assim parece admitir a descrição e a apresentação sensual na medida em que
elas estejam diretamente subordinadas ao núcleo dramático, a serviço dele. Ora,
no texto de Eça predomina um outro tipo de linguagem, de orientação mais épica,
mais descritiva, em que o mundo narrado é iluminado sob vários ângulos e
apresentado ao leitor como um objeto interessante por si mesmo.[1]
Duas das cenas condenadas por Machado são, na verdade, primorosas e têm ainda
hoje um sabor bastante acentuado.
A
cena da confeitaria, que se encontra no final do capítulo IV, não parece ter de
fato função visível na economia narrativa. Sebastião e Julião conversam sobre
as murmurações da vizinhança sobre as visitas de Basílio, e no meio de seu
diálogo vai-se intercalando uma cena vulgar passada entre os fregueses da loja.
Muito diferentemente de um certo episódio de Madame Bovary, de Flaubert,
em que também há intercalação de dois níveis discursivos, aqui não há grande
oposição ou contraste entre a conversa dos dois homens e o que sucede dentro da
confeitaria; não se trata, assim, de dois planos distintos de realidade que se
vêem confundidos momentaneamente. Na verdade, o que se dá é uma intercalação
dos dois discursos, tendo como resultado uma espécie de retardamento da ação. E
basta ler a cena desarmadamente para perceber de imediato a capacidade de
presentificação que ela tem: estamos de súbito vendo aquela confeitaria, com
tudo o que nela há de reles, de sujo e de típico; e a discussão do caso de
Luísa nesse ambiente contribui para
promover uma espécie de neutralização, de diminuição da tensão
dramática. Na verdade, esse é um procedimento constante nesse livro, em que
tudo, desde o tropeção de Basílio, ao atirar-se sobre Luísa no clímax da
sedução, até o contraste entre a pobreza mesquinha e reles do “Paraíso” com as
fantasias ingênuas de Luísa, tudo contribui para retirar qualquer aura romântica
da aventura adúltera que é o centro da história. E é tão forte esse
procedimento, ao longo do livro, que podemos mesmo dizer que em O Primo
Basílio o adultério é alvo de uma estratégia de neutralização moral, que se
realiza por meio de um esforço generalizado de rebaixamento e diminuição. Nesse
sentido, essa cena tem uma clara função significativa, pois se insere numa
estratégia textual; apenas não tem uma forte função dramática, do ponto de
vista da construção ou da apresentação da trama romanesca.
A
descrição da cena da ópera, no final do livro, é também um procedimento de retardamento
da ação, como bem viu Machado, mas seu sentido e função diferem sensivelmente
da cena da confeitaria. A música do Fausto de Gounod é uma das
referências mais recorrentes ao longo da narrativa e Basílio é um sedutor, como
o Fausto da ópera, sendo uma das suas armas
a bela voz com que canta para Luísa. Ora, uma das árias que ele canta no
dia em que Luísa se entrega a ele pela primeira vez é justamente a que precede
a sedução de Margarida por Fausto. De modo que, ao descrever a cena do teatro,
Eça faz com que Luísa repasse, tomada pela ansiedade, a memória da cena da
própria sedução. Só que, ao invés de Basílio, ao seu lado está Jorge, seu
marido (que também costumava cantar a mesma ária), e toda a sua preocupação
está concentrada no lado mais mesquinho do episódio: a chantagem de Juliana e a
missão que confiara a Sebastião. A cena, portanto, tampouco é infuncional, nem
se deve ao puro gosto pelo detalhe e pelo pitoresco. Na verdade, sua função é
dupla: não apenas opera novamente um retardamento épico no desenrolar da ação,
mas permite conjugar, de modo muito eficaz e concentrado, os motivos fáusticos
espalhados ao longo da narrativa e a circunstância decepcionante em que
redundou a aventura pessoal de Luísa.
Dissemos
há pouco que a forma de estruturação do texto desse romance de Eça privilegia a
descrição e a sucessão de cenas e episódios, em detrimento da tensão e do choque
de caracteres; no comentário às duas cenas que acabamos de enfocar, também
assinalamos que a forma de organização do texto de Eça é mais próxima da épica
do que do drama. O que falta agora observar é que esse olhar que tenta iluminar
todos os objetos e os envolve numa luz igual e bem distribuída, esse olhar
distanciado e épico que caracteriza a forma narrativa de O Primo Basílio
não incide sobre uma matéria épica e digna. Pelo contrário, só vai recortando
figuras medíocres, fracas e estereotipadas.
É por isso que não está na análise das personagens -- que são desprovidas
de paixão e de profundidade moral --, nem no conjunto de suas ações, o
princípio de coesão da narrativa queirosiana. O que caracteriza o texto
queirosiano é a peculiar fusão, encontrada em todos os planos do discurso, de
uma forma discursiva épica e um conteúdo burlesco ou rebaixado. Não pode assim
estar no nível do narrado o elemento que solda o conjunto, que enfeixa os
vários elementos da narrativa num todo coerente e vivo. Está, sim, no estilo e
na construção textual, e sobretudo no que é o efeito de sentido da conjugação
de ambos: aquele olhar distanciado e profundamente irônico, tão característico
de Eça de Queirós.
Quanto
à construção, notemos que o texto de Eça, ao mesmo tempo em que põe em cena personagens que são no geral vazias
de grandeza, reduzidas a tipos mais ou menos caricaturais, constitui um sistema
bastante cerrado de alusões literárias, de antecipações premonitórias e de
recorrências de situações e elementos simbólicos que, em geral, se situam num
nível superior ao da consciência das próprias personagens. Para exemplo, no
caso específico de O Primo Basílio, observe-se que não é necessário que
nenhuma personagem em particular escute um piano da vizinhança tocando ao longe
a Oração de uma virgem, ou o
realejo que repete a Casta Diva e outros temas do momento: é o leitor
que deve perceber, em contraponto ao envolvimento adúltero de Luísa, a ironia
presente nesses títulos. Da mesma forma, é ao leitor que se dirige toda o
extenso comentário intertextual à história de Luísa: as obras lidas ou ouvidas
por Luísa funcionam, ao longo da narrativa, ou como prefigurações do seu
destino, ou como contraste às suas experiências efetivas. Luísa é uma leitora
ingênua, mas o romancista e o leitor previsto no texto não são como ela, e
podem ir saboreando, ao mesmo tempo em que contemplam a progressiva queda e humilhação
da protagonista, a rede de alusões e de comentários metalingüísticos que vão anunciando
e pontuando os desdobramentos da intriga. Nesse sentido, a ficção de Eça, é
frontalmente anti-romântica e anti-sentimental: quase nunca nos identificamos
com as suas personagens, nunca sofremos verdadeiramente com elas, mas as
observamos sempre à distância. Talvez o único texto de Eça em que exista espaço
para a catarse seja O Crime do Padre Amaro, e talvez fosse por isso que
seu amigo Oliveira Martins dissesse que aquele era o único verdadeiro romance
que tinha escrito. Nos seus textos todos, a partir de O Primo Basílio,
vigora uma espécie de princípio de desierarquização da realidade, em que os
ambientes, as personagens, as situações criadas são submetidas ao crivo da
crítica pela ironia, dentro do que chamamos acima de uma estratégia de
rebaixamento. Exagerando um pouco, apenas para tornar mais claro o ponto que
queremos frisar, podemos dizer que nada tem relevo nos romances de Eça de
Queirós, exceto a construção textual, desde o nível da palavra até o ritmo da
frase, que é colocada a serviço da ironia e da sensualidade descritiva.
Nesse
mundo textual em que as personagens são reduzidas a tipos e em que a ironia se
exerce tão poderosamente no sentido de impedir a identificação sentimental,
altera-se, em relação ao paradigma romântico, a própria forma de leitura,
centrando-se o interesse agora no mundo paralelo dos sonhos da personagem, na
evocação sensória dos vários ambientes em que decorre a narrativa, na
caracterização de personagens que, do ponto de vista da intriga tem pouca ou nenhuma
importância actancial.
Por
isso tudo, podemos dizer que já em O Primo Basílio processa-se no estilo
de Eça de Queirós a transição do método naturalista da escrita para uma
composição de molde impressionista, que só se realizará plenamente num momento
futuro da escrita do autor. Aqui, o tema é ainda de gosto naturalista, bem como
a trama e o intuito moralizante; mas a forma de apresentação tem já um claro
vetor impressionista e exige, para que o livro seja bem avaliado e
compreendido, uma leitura menos comprometida com a concepção positivista da
escrita e da função da literatura na sociedade. Dizendo de outra forma, em O
Primo Basílio os elementos e a forma externa do enredo ainda mantêm fortes
características naturalistas, mas o conjunto, a composição dos elementos,
obedece já a uma outra maneira de ver e de descrever o mundo, em que o
condicionalismo não tem papel central, nem a causalidade é o principal vetor de
desenvolvimento e estruturação do texto.
Nessa
transição, tem importância fundamental a sensualidade, que é a base da
descrição queirosiana. A esse respeito, escreveu um dos maiores críticos
portugueses deste século um período que pode sintetizar, de momento, o papel da
sensualidade na definição e evolução precoce, em termos do mundo de língua
portuguesa, do estilo de Eça de Queirós:
Falando de ‘sensualidade’, Eça falava de algo que como
poucos conhecia: o contato dos sentidos com o mundo. (...) Nele o tinir de um
cristal fica longamente repercutindo, tal como o céu azul de Lisboa ou o aroma
das rosas, ou o labirinto inesperado das ruas do Cairo. Como dirá Cesário
(falando de si próprio), as coisas tangem os sentidos a Eça. E ele
persegue a cor até ao limite em que se confunde com a luz, intentando com a
pena aquilo que os pintores impressionistas -- como Manet ou Monnet -- quiseram
obter com o pincel. (António J. Saraiva. A tertúlia ocidental, 1990).
4
Notas para a leitura do romance
Um
primeiro objeto de interesse, quando se considera uma narrativa é a sua tendência
típica. No caso de O Primo Basílio, temos uma narrativa que se apóia,
pelo menos em tese, no enredo e no suspense. Até o final do episódio dos amores
de Basílio com Luísa, o interesse se localiza no processo de sedução. A
princípio, interessa-nos saber se Basílio realizará o seu intento e como o
fará. Depois, passa a interessar-nos o futuro do casal e da aventura que
viveram. Finalmente, quando entra em cena a chantagem de Juliana, reacende-se o
suspense, e ficamos à espera do desenlace: conseguirá Luísa reaver as cartas?
Jorge descobrirá que fora enganado pela mulher? Mas embora seja tipicamente uma
narrativa de suspense, não reside no trabalho do enredo a maior qualidade de O
Primo Basílio, e sim em dois outros planos narrativos: primeiro, na sua
capacidade descritiva, ou épica, que presentifica perante os nossos olhos os
lugares e as situações que se apresentam no romance; segundo, na forma de
composição apoiada no estilo do escritor, na voz narrativa muito especial que
vai construindo comentários distanciados e irônicos às ações e personagens,
rebaixando-os e diminuindo o seu eventual poder de angariar a empatia do
leitor. De modo que O Primo Basílio é também, para uma leitura mais
elaborada, uma narrativa de ambiente, em que o principal interesse está na
apresentação de uma determinada forma de viver, num determinado contexto social
e natural.
Do
ponto de vista da constituição das personagens, é bastante claro que há aqui
duas espécies de seres ficcionais: por um lado, temos as personagens “planas”.
Estão neste caso o Conselheiro Acácio, D. Felicidade e praticamente todas as
outras. Por outro lado, há uma personagem que poderia ser considerada, segundo
a terminologia de E. Forster, “esférica”,
no sentido que possui densidade psicológica, experimenta desenvolvimento emocional
durante o período da ação e apresenta várias facetas diferentes, conforme o
ângulo pela qual é olhada. A única personagem que reúne essas qualidades, neste
romance, é Juliana. Enquanto todos os outros atores desta história se deixam
definir com umas poucas palavras, a partir de um traço ou de um comportamento
típico, Juliana se impõe como a única personagem realmente forte e densa.
Esse
estatuto diferenciado da personagem Juliana se deve ao fato de que sua importância
no romance vai muito além da sua função principal na estrutura narrativa, que é
a de instrumento para a perdição de Luísa. Ao construí-la como individualidade
marcante, e ao retratar suas motivações e sua situação na casa burguesa, Eça de
Queirós consegue desenvolver uma outra frente de crítica social, que não tem
sido muito destacada nos comentários ao romance: as desumanas condições de vida
dos pobres, mesmo daqueles que tinham residência na casa dos patrões.
De
fato, quando Juliana começa a chantagear Luísa, tudo o que lhe pede é a supressão
das condições insalubres em que vivia: quer um quarto mais limpo, mais confortável,
menos sufocante no tempo de verão; quer poder comer um pouco mais do que os
restos que antes eram o seu alimento; quer ter direito a algum descanso depois
de longos dias e longas semanas de trabalho duro. Além das descrições do seu
quarto e dos seus serviços, há no romance uma passagem sutil em que nos é dada
a real dimensão da exploração: melhor alimentada e melhor abrigada, diz-nos o
narrador em determinado momento, a criada até trabalhava melhor, e com mais
vontade. E também é preciso ressaltar todos os comentários de Jorge, quando
Luísa lhe diz que Juliana estava doente e por isso não podia trabalhar muito:
tudo o que ocorre ao patrão é desvencilhar-se logo da empregada, para que vá morrer
em outro lugar, e não em sua casa. Por isso tudo, é impossível não empatizar
com Juliana, pelo menos por alguns momentos: injustiçada pela antiga patroa,
tratada como um animal em casa de Luísa, vê na chantagem o único caminho para
conseguir o seu grande objetivo, o pão para a velhice, para os dias em que já
não prestasse para o serviço. É Juliana assim um elemento contrastivo no
universo de Luísa: é uma infeliz, e é também, em certo sentido, ingênua e
vaidosa como a patroa; o que as opõe de fato é que as ações todas de Juliana,
ao contrário das de Luísa que apenas se deixa levar pelas situações, são
regidas por uma vontade firme e por um plano de ação. Luísa fracassa por se
deixar levar, por deixar-se envolver em situações pelas quais não tem um real
empenho. Já Juliana fracassa porque a sua vontade é impotente para alterar uma
situação que é determinada socialmente, como ela bem compreende, quando é
neutralizada por Sebastião: “eles tinham tudo por si, a polícia, a Boa
Hora, a cadeia, a África!... E ela -- nada!”. Ora, percebendo assim a
personagem Juliana, é difícil não vê-la -- a chantagista, a vilã da história --
como a personagem afinal mais humana e talvez a mais digna de todo o conjunto
de caracteres desse romance. Não é, portanto, apenas como parte central da
intriga que Juliana existe e tem importância no romance, mas também porque, por
meio da sua história, podemos deixar por instantes a sala social de Luísa e
olhar para aquela casa burguesa a partir da porta dos fundos, podemos momentaneamente
escapar do universo oficialesco e boçal onde se move o Conselheiro e vislumbrar
rapidamente a vida pobre que circundava a casa de Luísa. Assim, a diferença de
estatuto entre as personagens serve ao propósito de crítica social: os burgueses
todos são planos e unívocos, vazios até o ponto de não encontrarmos uma boa
explicação para o adultério de Luísa; a proletária Juliana é complexa e humana
e é de sua ação e da determinação com que tenta obter, por meios ilícitos,
aquilo que julgava seu direito, que decorre toda a segunda parte do romance.
Ainda quanto às personagens, é interessante observar que o narrador quase
sempre as introduz da mesma maneira, configurando uma rotina textual: primeiro,
apresenta o nome numa seqüência narrativa; logo depois, descreve a personagem
em traços muito rápidos, a partir do exterior; se a personagem têm relevo para
a história, procede então a um rápido flash-back; só depois de todas
essas etapas é que a põe em ação para que o retrato se complete. Todo o
primeiro capítulo é composto da apresentação das principais personagens da
história, e a leitura das primeiras páginas permite observar o que dizemos com
a apresentação da criada Juliana e da amiga de Luísa, Leopoldina.
Um
terceiro aspecto que importa considerar é a forma como se estrutura o tempo
neste romance. A ação começa em julho, e o ano pertence a meados da década de
1870, como mostra a cronologia das peças musicais comentadas no romance. A
duração da ação é bastante concentrada: toda a primeira parte do romance
transcorre entre julho e setembro, que é quando se encerra o capítulo IX. A
partir da volta de Jorge, em início ou meados de outubro, inicia-se a segunda
parte, que se conclui com a aproximação do inverno. A ação do romance é,
portanto, situada num tempo bastante próximo ao da escrita (lembre-se que o
livro foi publicado em 1878), o que corresponde a um dos preceitos da
estética realista, que enfatiza a análise da sociedade contemporânea do
escritor como um dos objetivos principais da literatura. Já o enquadramento
sazonal da ação tem uma dimensão simbólica, pois a aventura de Luísa se dá no
verão, a sua tortura por Juliana cobre o período do outono, e o desenlace
acontece no início do inverno. A forma de situação dos eventos no tempo é bastante
simples e linear, e os pequenos retornos ao passado se situam quase todos nos
primeiros capítulos do livro, servindo basicamente à apresentação das personagens.
Um aspecto a ressaltar, na consideração do tempo neste romance, é uma busca de
retardamento da ação, que se dá pela inserção de cenas descritivas
aparentemente acessórias do ponto de vista dos acontecimentos narrados, mas não
só: a duração do tempo é marcada quase dia a dia, de modo que acompanhamos a
história de modo contínuo, sem interrupção temporal da matéria narrada. O efeito
de sentido desse procedimento é uma espécie de intensificação do ambiente em
que vivem as personagens, trazendo para a cena, em prejuízo talvez do desenvolvimento
dramático, o lado doméstico, as circunstâncias da vida sufocante e fútil de
Luísa.
Um
último aspecto que merece atenção, na constituição deste texto, é o processo de
composição. De modo geral, as suas linhas principais já foram apresentadas na
seção 4, e se podem resumir pela afirmação de que o distanciamento irônico e o
estilo de Eça de Queirós determinam todos os outros elementos compositivos, em
detrimento da verossimilhança e, principalmente, da identificação sentimental
entre o leitor e as personagens. Um bom exemplo do método queirosiano de
construção pode ser encontrado na consideração do tratamento dos sonhos neste
romance.
Consideremos,
então, os sonhos de Luísa, que são três: dois ocorrem no capítulo medial do
romance, o oitavo, e o terceiro e mais importante encerra o capítulo nono. Os
três não têm o mesmo estatuto, nem a mesma funcionalidade, nem a mesma
verossimilhança, e por isso devem ser considerados separadamente.
No
primeiro, Luísa sonha que um cavalheiro desconhecido lhe transmite o dinheiro
necessário ao pagamento da chantagem. É esse o mais simples dos sonhos da
protagonista e o que melhor se pode explicar em termos de verossimilhança: a
personagem necessita do dinheiro e sonha que o está recebendo. Mas o que há de
interessante nesse sonho não é a sua conformação à personagem e à situação em
que ocorre, mas sim o fato de que o doador do dinheiro é uma figura de
cavanhaque que Luísa associa com o Diabo. Nós, leitores, não temos dificuldade
em reconhecer, na personagem do sonho, uma recorrência de uma outra personagem
do romance: o homem de cavanhaque que acompanhara e examinara Luísa e Basílio,
quando os dois andavam pelo Passeio Público, no momento mais intenso do seu
namoro. Com esse sonho e com a associação de Luísa, tem o leitor assim
reforçado um dos traços estruturantes dessa história de sedução, que é o
intertexto com a ópera Fausto de Gounod, acima apontado. Isto é: além da
função de espelhar a consciência da personagem e a sua autopercepção, tem o
sonho uma outra função, que é a de intensificar um elemento narrativo que
poderia ter ficado obscuro para o leitor. No caso, o sentido simbólico do homem
de cavanhaque do Passeio Público.
No
segundo sonho, já é mais clara a interferência do narrador, pois Luísa sonha
com algo que parece destoar da sua percepção do mundo, tal como ela nos é
apresentada. Não apenas a relação entre as partes do sonho, mas a própria
construção grotesca da figura de Basílio, que aí se apresenta vestido de
palhaço e tocando viola, parece muito mais próxima do olhar irônico do narrador
do que da percepção angustiada de Luísa e o sonho já parece um desenvolvimento
das questões que interessam ao narrador, mais do que uma vivência interna da
personagem.
Finalmente,
o terceiro não deixa margem para dúvidas: é o narrador queirosiano quem,
valendo-se da maior liberdade narrativa propiciada pela apresentação do sonho,
o utiliza como uma forma de aumentar os efeitos irônicos e reafirmar os traços caricaturais das
personagens de sua história. Não parece ser um produto do inconsciente de
Luísa, por exemplo, aquela cena em que o Conselheiro Acácio desparafusa a própria
cabeça e a atira ao palco para imitar o gesto do rei, que para lá atirara a
esfera armilar. O ato sintetiza tudo o que o narrador e nós sabemos da
personalidade de Acácio, mas nada nos diz que seja essa a percepção que Luísa
tem dele. O sonho também permite reafirmar o caráter fantasista e romântico de
Luísa, transformando-a numa personagem de um dramalhão romântico, encenado em
tom farsesco e canastrão. Todo o clima do sonho é, assim, uma crítica paródica
ao drama romântico -- mas uma crítica efetuada de um ponto de vista que
transcende inteiramente a consciência atribuída à personagem Luísa ao longo da
apresentação narrativa.
A
forma de utilização e apresentação dos sonhos é um exemplo, e apenas um, entre
muitos, do que julgamos importante sublinhar aqui: desde O Primo Basílio
verifica-se um afastamento de Eça dos modelos do romance naturalista, em
direção a uma nova forma de composição em que o olhar absoluto do narrador e a
sua arte assumem o primeiro plano em detrimento de quaisquer outros elementos
da narrativa.
Trazendo
assim um inequívoco conteúdo de crítica social e uma forma de estruturação
inovadora, que já se afastava decididamente do receituário do romance
experimental, O Primo Basílio é um momento muito especial no
desenvolvimento do estilo e da visão de mundo de Eça de Queirós. Uma das muitas
metamorfoses em que consistiu a sua evolução literária, para usar a expressão
de António José Saraiva. Foi talvez esse caráter mais ou menos híbrido do texto
que, aliado à comoção moral causada pelo tema e pela forma do seu
desenvolvimento, impediu, durante tantos anos, que O Primo Basílio fosse
visto na sua real dimensão. Mas hoje em dia, à distância de mais de um século,
vai o olhar contemporâneo, cada vez mais, perspectivando o romance na obra de
Eça e no conjunto da literatura do seu tempo. E aquilo que parecia defeito para
alguns dos seus contemporâneos se afirma agora como inovação e ousadia, de modo
que O Primo Basílio pode ser hoje reconhecido como um momento maior
(senão mesmo o maior, como queria José Régio) da obra ficcional de Eça de
Queirós.
[1] Utilizamos aqui os termos épico e dramático
para designar formas de organização do discurso. É épica, nesse sentido, a
organização discursiva que apresenta objetiva e distanciadamente personagens,
objetos e acontecimentos. A descrição é, por isso mesmo, um dos procedimentos
privilegiados da forma épica. Para uma discussão desses conceitos, ver Emil
Staiger: Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro, Tempo
Brasileiro, 1972.