Acabo de ler, entre divertido e perplexo, um artigo assinado por Maria Arminda do Nascimento Arruda, Aluísio Cotrim Segurado e Gustavo Ferraz de Campos Monaco. São três autoridades da USP. A primeira é vice-reitora, o segundo é pró-reitor de Graduação e o terceiro é diretor-executivo da Fuvest. O tópico é a lista de autoras de leitura obrigatória para o vestibular. Leio ali, por exemplo, que “tradicionalmente, o cânone literário tem valorizado autores já consagrados”. É difícil imaginar o que os autores quiseram dizer. Tradição, cânone e consagração comparecem ali numa lapalissada ridícula. Podemos fazer variações com esses termos. A tradição valoriza autores consagrados, a tradição é a consagração de autores, autores consagrados são a tradição; o cânone valoriza a tradição, o cânone é a tradição, o cânone é a consagração. Podíamos pensar pelo lado contrário: o cânone tem valorizado autores não consagrados, o cânone tem valorizado obras não tradicionais, a tradição é constituída de autores não consagrados ou não canônicos. Fico imaginando que conceitos de tradição, de cânone e de consagração foram mobilizados nessa afirmação. Mas confesso que não consigo... A leitura, porém, de outras passagens do artigo permitem entender. É que ali se encontra a empáfia em corpo inteiro. É verdade que parece ter havido um tempo em que a Universidade de São Paulo tinha, a partir das suas cátedras, o poder ou a ilusão de criar ou orientar o cânone. Mas creio que já vai longe o tempo em que se poderia dizer com propriedade que a marginalidade de autores/as no ensino médio decorre de eles/as “não fazerem parte do rol de exigências da Fuvest”. Também se lê ali que o compromisso da Fuvest é “acompanhar o avanço do conhecimento e induzir a que o ensino médio possa absorver as pesquisas mais avançadas”. Ora, além do que já destaquei, basta contrapor essa afirmação aos nomes que integram o abaixo-assinado a que esse texto responde. De fato, ali encontramos um rol de críticos e professores (a maior parte da própria USP) que sem dúvida desenvolve o que quer que se entenda por “pesquisas mais avançadas” na área dos estudos literários. Por fim, é tão pueril dizer que a lista feminina surgiu como remédio ao fato de que os estudantes leem resumos e não as obras (pois se for assim é claro que vão ler agora resumos dos livros das autoras indicadas), quanto que a escolha não tem um caráter ostensivamente militante – o que só é verdadeiro se admitirmos que demagogia e populismo são opostos a militância ostensiva. O que, pensando bem, combina com essa descoberta genial de que “tradicionalmente, o cânone literário tem valorizado autores já consagrados”. O nível da argumentação das três autoridades uspianas não só corrobora o que já estava óbvio nas entrevistas do diretor-executivo da Fuvest, isto é, o despreparo e a falta de domínio do campo literário, mas também a autonomização da burocracia (as bancas são um dos segredos mais bem guardados!), em prejuízo do debate aberto e da valorização da competência científica nessa que foi, em tempos, um modelo da universidade brasileira.
domingo, 17 de dezembro de 2023
domingo, 3 de dezembro de 2023
Ainda a lei carioca
Postei aqui ontem ou anteontem uma nota sobre uma lei promulgada, no último dia 28/11, pelo município do Rio de Janeiro.
Uma lei de autoria de pessoas de esquerda: nasceu do Chico Alencar e frutificou com ele e Monica Benicio. Integrantes do PSOL.
A justificativa do projeto, assinada apenas por Chico Alencar, trazia uma bandeira justa:
“A definição das personalidades presentes em monumentos, estátuas e bustos é de primeira importância para a cultura de uma cidade. Ao dar visibilidade para determinada pessoa, o poder público avaliza os seus feitos e enaltece o seu legado. A história brasileira traz inúmeros momentos condenáveis, entre os quais pode-se destacar o genocídio dos povos nativos e a escravidão de africanos sequestrados. Considerando os ideais de liberdade, justiça e democracia é inconcebível vangloriar figuras que tenham se locupletado em tais episódios. Por isso é imperativo que essa Casa de Leis aprove a presente proposição.”
Ou seja: quem quer que se tenha “locupletado em tais episódios” (acho que por “episódios” o preclaro autor entende o genocídio e a escravidão, que no meu ver nunca foram episódicos no Brasil) não pode ser celebrado pelo poder público. Justo. E se fosse em São Paulo, quem sabe obrigaria a demolição ou retirada daquele horrendo monumento das Bandeiras, confinando-o num espaço museológico, fora da vista. Ou daquele outro horror, a estátua do Borba Gato.
Mas na redação da lei o que vem? Um item, de número III, que dispõe sobre a proibição de erguer monumento ou *fazer menções elogiosas* (isso é uma novidade) a “pessoas que tenham perpetrado atos lesivos aos direitos humanos, aos valores democráticos, ao respeito à liberdade religiosa e que tenham praticado atos de natureza racista.”
Aí, sim, cabe tudo, a começar pelo pobre Padre Vieira, sempre lembrado, aqui e em Portugal quando o tópico vem à baila – e terminando Deus sabe onde, porque se se esmiuçar, quanto mais recuado no tempo, mais se pode encontrar motivos para acusar alguém de ter perpetrado algum ato lesivo a tais bandeiras.
No meu post, tentei destacar, pela redução ao absurdo, a cegueira cultural de tal dispositivo legal e seus efeitos de longo prazo sobre a memória histórica. Sobretudo, critiquei a base de tal iniciativa: o identitarismo feroz, que promove a redução das personalidades a uma única faceta. No caso, aquela condenável pelos pressupostos e nas condições históricas atuais.
Curiosamente, não houve divergência, não houve nenhum debate. Fiquei em dúvida sobre como entender isso. Seria a lei tão absurda e de bitola tão estreita que se torna desnecessária a discussão? Ou será que não deve ser criticada por ser uma iniciativa da esquerda e sermos, neste meu rol de amizades, quase todos membros naturais do campo progressista – já que “antidemocraticamente” fui bloqueando o direito de vista e de fala, neste espaço, a todos os bozistas e apoiadores do fascismo? Infelizmente, temo que esta última hipótese seja mais realista.
Detesto convocar ditados, mas aqui vale uma exceção: de boas intenções o Inferno está cheio. Porque não é difícil imaginar que, redigida e aprovada como está, se a direita for esperta, poderá banir de agora em diante qualquer menção elogiosa oficial, bem como de qualquer monumento carioca, a quem quer que em algum momento se tenha manifestado publicamente como apoiador de Stálin, Mao ou Fidel – ou mesmo ao Marechal Tito, que eu pessoalmente admiro, e que recebeu uma justa homenagem da cidade de Campinas! –, porque quem é que vai definir o que é um ato lesivo aos valores democráticos? Se por isso se entender “valores da democracia representativa burguesa”, podemos vir a assistir a uma festa da direita no uso da guilhotina pública!
Vejo agora que, ao elogiar o ditador Tito, posso perder a esperança de ter uma estátua ou receber alguma menção elogiosa da cidade do Rio de Janeiro. Por isso mesmo não digo que, como Drummond, vibro por Stalingrado ter resistido (com o devido crédito ao homem que dava o nome à cidade) e que entendi perfeita e solidariamente como ele pode ter se sentido frustrado por não ter podido, sozinho, dinamitar a Ilha de Manhattan. Poema que, se devidamente lembrado por algum vereador fascista e pró-USA, poderá levar a câmara do Rio a identificá-lo como precursor do 11 de Setembro e assim forçar a retirada daquela sua melancólica estátua acomodada num banco na orla. Mas me preocupa mais, pensando na minha aldeia, que uma lei semelhante retire daquela praça triangular no caminho da Unicamp, o monumento ao Tito, que contemplei do carro todos os dias a caminho do trabalho, e que já visitei sozinho e vou de novo em breve visitar, em homenagem, com o meu genro croata.
De modo que só tenho a desejar que a progressista iniciativa do agora deputado Chico Alencar (ou ao menos o seu parágrafo terceiro) só continue a dar frutos no seu estado natal, sem ramificar-se pelo resto do país.
sexta-feira, 1 de dezembro de 2023
Abaixo o padre Vieira! Abaixo o Camões!
A cidade do Rio de Janeiro aprovou uma lei que me parece complicada (eu tinha escrito que me parecia supinamente idiota, mas em seguida decidi ser mais polido e menos radical: complicada, é melhor). O princípio pode parecer bom, pois afinado com os tempos. Leio a notícia: a lei “veda, no município do Rio de Janeiro, manter ou instalar monumentos, estátuas, placas e quaisquer homenagens que façam menções positivas e/ou elogiosas a escravocratas, eugenistas e pessoas que tenham perpetrado atos lesivos aos direitos humanos, aos valores democráticos, ao respeito à liberdade religiosa e que tenham praticado atos de natureza racista.”
Ora, o que me parece absurdo é a concepção monolítica da pessoa. O Padre Vieira, ao que parece, é a primeira vítima. Porque, segundo os fiscais da correção, ele não seria homenageado por ser um dos maiores prosadores da língua. Qualquer estátua sua homenagearia apenas ou principalmente o defensor da escravidão dos negros. Por isso precisa ser banida, e junto com a estátua do Vieira escravocrata, vai para fora da vista pública, além do orador, o defensor dos índios contra a sanha dos colonos. O mesmo se aplicará, sem dúvida, a Alencar, que não foi o criador de uma obra-prima como “Iracema”, mas apenas mais um reles defensor da escravatura. Monteiro Lobato nem pensar: está já riscado do mapa e vai continuar apenas racista, sem perdão, a despeito do que tenha feito pela difusão do livro no Brasil. Seguindo essa linha, será preciso retirar desde logo as estátuas e placas que homenageiam Camões, aquele detestável islamofóbico, que escrevia coisas como “cão sarraceno” para qualificar uma parte significativa da humanidade e ainda instigava o rei português a matar quantos infiéis se colocassem no caminho da propagação da fé cristã. Nesse sentido, poderia incorrer também na intolerância religiosa, que será outra vassoura poderosa. Nisso, poucos excederão o Dante, que deveria ser escondido dos incautos por não suportar qualquer diversidade religiosa. De quebra, era ainda islamofóbico, homofóbico, vizinhofóbico, antisemita, monarquista etc. Os “valores democráticos” varrerão uma grande parte da Antiguidade, e um monte de tiranos, por certo, mas não deverão poupar Platão, Aristóteles (esse preceptor de tirano) e tantos outros. E que dizer de Júlio Cesar, que não foi o autor do livro sobre a guerra da Gália, e sim apenas um homem que atentou contra a república– ou seja, mutatis mutandis, os valores democráticos – e por isso já foi devidamente assassinado. Se a moda pega na Europa, eu acho que logo deveriam ser retirados da vista do público, entre milhares de monumentos, a coluna de Trajano e o Arco do Triunfo. Já o Coliseu poderia salvar-se, decretando-se que era um museu, com as devidas placas protetoras da moral e do civismo. Aliás, esse é o lugar adequado a monumentos banidos, segundo a lei carioca: o espaço museológico, no qual estejam devidamente enquadrados, com um aviso reluzente que, no fundo, diria algo como: “cuidado, racista!” ou “cuidado, ditador!”, “cuidado, fanático!”, “cuidado, fascista!”. E, em nome dos valores democráticos, sobre qualquer defensor da “ditadura do proletariado”: “cuidado, comunista!”