Numa resposta a um comentário de uma amiga, na postagem anterior, escrevi que não acho interessante ter uma lista de livros para o vestibular. Essa é a questão subjacente ao meu post. E não acho por vários motivos. Em primeiro lugar porque, ao contrário do que possa parecer, é uma desvalorização da formação literária como elemento de cidadania. Em vez de um programa amplo, que de fato pudesse orientar os docentes do ensino médio e dos cursinhos preparatórios, receita-se uma simples lista de livros. Daí sucede o óbvio: cria-se uma forma de preparar os estudantes que, no limite, visa a dispensar a leitura das obras. Se se sabe quais serão elas, o treinamento tende a recair sobre como responder às questões, e não sobre como entender o texto literário nas suas determinações e relações mais amplas com a sociedade e a cultura. Eu também fiz a experiência de perguntar aos estudantes (do curso de Letras!) se tinham lido as obras indicadas para o vestibular. A resposta, em geral, ao longo dos anos, foi decepcionante... Um segundo problema da lista de livros é o seu arco temporal. Por conta de um paternalismo disfarçado de interesse pedagógico, os textos indicados tendem a ser cada vez mais contemporâneos, mais “interessantes”, mais “atuais” – mais “fáceis de entender”, para dizer de forma bruta. Mas o contemporâneo não é um campo de domínio público, por isso a escolha de autores vivos ou dentro da vigência do direito autoral tem evidentes e incontornáveis implicações econômicas, nem sempre claras ou nem sempre levadas em conta. Poderia listar outros motivos, mas o post ficaria muito longo.
Os argumentos a favor de uma lista acabam por recair sobre um ponto: ao eleger como matéria de aferição aquela dúzia ou dezena de livros, a universidade influiria sobre o ensino de nível médio. É a ideia que sustenta a lista feminina: criar um cânone alternativo, implodir (mesmo que apenas por três anos...) o cânone macho-branco – ou apenas macho, já que Lima Barreto e Machado, por exemplo, são mestiços, assim como Gonçalves Dias, entre outros. Ora, isso também poderia ser feito por meio de um programa de concurso – e lembremos: o vestibular é um concurso –, no qual se apresentariam os pontos e problemas literários que a universidade julga relevantes para a cidadania. A lista de livros, em vez do programa ou em substituição tácita a ele, atesta sobretudo a desconfiança na formação secundária. Em vez de delegar aos professores do ensino médio o recorte das obras e das questões implicadas num programa amplo, a universidade lhes dá mastigada essa versão econômica da apostila: a lista de livros. Mas faz sentido pensar que, se os professores do ensino médio não têm preparo ou tempo ou capacidade para fazer um bom trabalho formativo a partir de um programa amplo, eles vão ter no trabalho com os livros da lista? Creio que não. Daí que eu não veja nessa ideia de uma lista de livros um triunfo ou um gesto de resistência, mas sim uma resignada cedência, uma disfarçada capitulação.quarta-feira, 22 de novembro de 2023
Lista de livros para o vestibular - I
Acabo de ler que a lista de livros para o vestibular da USP será composta apenas de obras escritas por mulheres. Machado de Assis, diz a chamada sensacionalista, foi expulso. Voltará só daqui a três anos. E mais dois homens com ele. Até lá, nem o de Assis, nem Drummond, nem Bandeira, nem Guimarães Rosa, nem Oswald ou qualquer outro macho.
O divertido da matéria é a expertise do diretor da Fuvest, um professor de direito. Talvez sem as suas justificativas, a decisão instigasse. Com elas, o ridículo puxa a franja da toga, exibindo ao público a roupa de baixo em mau estado.
Entretanto, não me surpreendeu. Tenho observado os exames, tomado o pulso do que se pede em matéria literária. E é quase nada. Ou tudo se resume à interpretação de texto, com algum verniz de terminologia, ou acaba por ser um retorno confesso ou envergonhado à velha história da literatura. Assim, a rigor tanto faz o que se eleja, pois o gesto da eleição o mais das vezes é puro movimento inercial. E fugir à inércia, em princípio, desperta simpatia.
Mas a inércia não é adversário desprezível. Tanto é assim que o professor de direito, falando pela USP, nos tenha vindo garantir que as obras escolhidas permitirão que sejam estudadas as características das escolas literárias.
Então é isso: a vetusta USP quer indicar aos professores e estudantes do ensino médio que o importante em literatura é conhecer as escolas? Se for, então está certo, pois tanto faz que sejam homens ou mulheres os autores. Como também é despicienda a questão da qualidade, bem como a da recepção da obra ao longo do tempo. É tudo razoável, desse ponto de vista. E se é razoável, por que não tocar a melodia do tempo?
Mas o jurista vai além, nos garante que as obras escolhidas têm qualidades literárias grandes e explica: se ficaram preteridas em relação a um Machado, por exemplo, foi apenas porque foram produzidas por mulheres.
Nesse tipo de declaração, reconheçamos, não há nada de novo. Por isso me pareceu, num primeiro momento, exagerada a reivindicação uspiana de que se trata de um gesto de vanguarda radical.
Se bem que, pensando não no curto prazo da notícia, mas no tempo dilatado do ensino, talvez haja alguma verdade aí também.
É que a USP tem peso. E se bem entendi o regozijo do núncio do vestibular com a novidade, ele realmente espera que, pelo estado de São Paulo afora (se não mesmo pelo Brasil), o ensino das escolas literárias, possa ser feito, de agora em diante, depois da decisão libertadora da USP, em clave variada. Afinal, a identidade é um deus de muitas faces e há várias maneiras de servi-lo.
Ao mesmo tempo, a notícia traz um testemunho torto. O de que o lugar do literário é ainda um podium de prestígio ou de autoridade. Por isso mesmo é zona de combate. Terra em disputa. Inserir ali, esta ou aquela obra, esta ou aquela identidade, é ainda um gesto pleno de sentido, de reivindicação. Mas não é algo como dar uma cotovelada e encontrar um lugar entre tantos. É no limite combater o próprio lugar.
Por isso, o testemunho não é favorável. No prazo mais longo, acho que tenderá a se esvaziar ou diminuir o lugar literário, fazendo com que seja um desperdício o esforço ou mesmo o simples gesto de ali inserir ou de lá retirar algum autor ou obra ou filtro de identidade.
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