Numa conversa com Thomaz Albornoz Neves, ele escreveu: “Por meu temperamento, quando a versão não me convence poeticamente a descarto. Creio que o meu sarrafo é esse. A literalidade sem poesia não justifica uma tradução, mas a poesia que se afasta do contexto do original tampouco.”
Para começo de conversa, devo dizer que concordo com ele. Não só nesse ponto, mas – até agora pelo menos 🙂 - em quase tudo sobre o que conversamos. Mas é claro que há matizes na concordância. Às vezes, mais que matizes: alteração de algumas cores, sem prejudicar muito o conjunto do quadro. Afinal, sou sobretudo um acadêmico e ele é sobretudo um poeta.
Vejamos. O critério para inclusão de haikais no livro “Haikai – antologia e história” foi mais ou menos este: encontrar o ponto mais próximo entre a sustentação poética dos três versos e o chão oriental em que eles se enraízam. Como as traduções foram o resultado do trabalho das aulas de japonês que tive com a Elsa, ao longo dos meses se acumularam e terminaram por ser centenas. Mas apenas 107 foram acolhidas no livro. Quando, para que o haikai se sustentasse em pé, eu precisasse ou me afastar demais do original ou sobrecarregar o texto de notas, descartei e passei adiante.
Mas agora vem um matiz importante, que deriva da finalidade talvez, mas não só. Como no livro demos a tradução palavra por palavra, eu poderia ter mais liberdade e fazer uma tradução mais criativa. Não fiz isso, porém. Optei pela mais literal possível, acrescentando o mínimo: sintaxe e nexos subentendidos, a maior parte das vezes. E deixei para notas aquelas informações que eu não poderia incluir na tradução em dois ou três versos breves. Quanto à finalidade e à situação é evidente: por um lado, era um livro algo erudito, embora se destinasse também à divulgação; por outro, a tradução em sintaxe portuguesa não foi pensada para funcionar autonomamente, mas sim em conjunto com a tradução mais literal possível, quase palavra por palavra, com a qual dialogaria.
A literalidade radical tem, ela mesma, poesia, no sentido que provoca o estranhamento e exige a imaginação tradutória. Por exemplo, no haikai mais famoso de Bashô, em japonês a gente entende que ali, na verdade, há dois segmentos e não três. Um terminado pela partícula expletiva -ya, que é uma “palavra de corte” bem comum; e outro que recobre o resto do haikai. Não se trata, pois, de uma frase nominal, que diz “velho tanque”, seguida de outra frase que diz “rã(s) mergulha(m)”, à qual se seguiria uma derradeira frase nominal, “barulho de água”. A primeira coisa que a vem aos olhos do leitor atento, ao ver a tradução palavra por palavra é o final: oto – literalmente, som. O haikai termina, portanto, com a palavra som, o produto, por assim dizer, de tudo que veio antes. Tudo bem que em inglês se poderia obter algo parecido nesse aspecto. Mas o que a tradução mais literal permite ver é que a “kawazu tobikomu mizu no oto” forma um só bloco, algo como, grosseiramente por conta do uso das preposições: o barulho da água do mergulho da rã. Mas ainda assim, ao inverso, com a rã que pula vindo primeiro, a água onde mergulha no meio e o som no final. Assim, em certo sentido eu diria que a declaração “a literalidade sem poesia não justifica uma tradução” é verdadeira, mas não porque ela seja sem poesia necessariamente, mas sim porque (em uma língua como o japonês ou o chinês, mas talvez em nenhuma outra) eu não consigo completa literalidade em tradução. É uma questão de graus, eu sei, mas queria marcar esse ponto, com algum exagero...
Por outro lado, é verdade que não me dediquei muito à tradução. Sempre fui mais um leitor de traduções. E confesso que o meu modelo de livro, como leitor, é algo como aqueles volumes publicados pela Sabiá (e antes, eu creio, pela Editora do Autor). Foi ali que li, entre outros, Pablo Neruda. Na página, o texto original. No rodapé, com os versos divididos por /, a tradução “literal”. Adorava aquilo: ler o original e depois o literal ou vice-versa e tentar perceber a poesia, sabendo que a minha percepção e mesmo a minha avaliação de um dependia da do outro. Os que trabalham com tradução devem achar isso odioso. É relegar a tradução a um estatuto ancilar. Pois é mesmo como eu penso a tradução, no limite. Ao menos como leitor (e como tradutor, a julgar pelo Haikai – Antologia e História). Agora eu poderia, se fosse imprudente, passar a dizer a minha impressão de algum tipo de intervenção e produtos de alguns tradutores recriadores. Mas paro a tempo, lembrando-me da temperança, da prudência que não tive na juventude e talvez devesse começar a ter na velhice.