terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Ainda a tradução de poesia



Numa conversa com Thomaz Albornoz Neves, ele escreveu: “Por meu temperamento, quando a versão não me convence poeticamente a descarto. Creio que o meu sarrafo é esse. A literalidade sem poesia não justifica uma tradução, mas a poesia que se afasta do contexto do original tampouco.”

Para começo de conversa, devo dizer que concordo com ele. Não só nesse ponto, mas – até agora pelo menos 🙂 - em quase tudo sobre o que conversamos. Mas é claro que há matizes na concordância. Às vezes, mais que matizes: alteração de algumas cores, sem prejudicar muito o conjunto do quadro. Afinal, sou sobretudo um acadêmico e ele é sobretudo um poeta.

Vejamos. O critério para inclusão de haikais no livro “Haikai – antologia e história” foi mais ou menos este: encontrar o ponto mais próximo entre a sustentação poética dos três versos e o chão oriental em que eles se enraízam. Como as traduções foram o resultado do trabalho das aulas de japonês que tive com a Elsa, ao longo dos meses se acumularam e terminaram por ser centenas. Mas apenas 107 foram acolhidas no livro. Quando, para que o haikai se sustentasse em pé, eu precisasse ou me afastar demais do original ou sobrecarregar o texto de notas, descartei e passei adiante. 

Mas agora vem um matiz importante, que deriva da finalidade talvez, mas não só. Como no livro demos a tradução palavra por palavra, eu poderia ter mais liberdade e fazer uma tradução mais criativa. Não fiz isso, porém. Optei pela mais literal possível, acrescentando o mínimo: sintaxe e nexos subentendidos, a maior parte das vezes. E deixei para notas aquelas informações que eu não poderia incluir na tradução em dois ou três versos breves. Quanto à finalidade e à situação é evidente: por um lado, era um livro algo erudito, embora se destinasse também à divulgação; por outro, a tradução em sintaxe portuguesa não foi pensada para funcionar autonomamente, mas sim em conjunto com a tradução mais literal possível, quase palavra por palavra, com a qual dialogaria. 

A literalidade radical tem, ela mesma, poesia, no sentido que provoca o estranhamento e exige a imaginação tradutória. Por exemplo, no haikai mais famoso de Bashô, em japonês a gente entende que ali, na verdade, há dois segmentos e não três. Um terminado pela partícula expletiva -ya, que é uma “palavra de corte” bem comum; e outro que recobre o resto do haikai. Não se trata, pois, de uma frase nominal, que diz “velho tanque”, seguida de outra frase que diz “rã(s) mergulha(m)”, à qual se seguiria uma derradeira frase nominal, “barulho de água”. A primeira coisa que a vem aos olhos do leitor atento, ao ver a tradução palavra por palavra é o final: oto – literalmente, som. O haikai termina, portanto, com a palavra som, o produto, por assim dizer, de tudo que veio antes. Tudo bem que em inglês se poderia obter algo parecido nesse aspecto. Mas o que a tradução mais literal permite ver é que a “kawazu tobikomu mizu no oto” forma um só bloco, algo como, grosseiramente por conta do uso das preposições: o barulho da água do mergulho da rã. Mas ainda assim, ao inverso, com a rã que pula vindo primeiro, a água onde mergulha no meio e o som no final. Assim, em certo sentido eu diria que a declaração “a literalidade sem poesia não justifica uma tradução” é verdadeira, mas não porque ela seja sem poesia necessariamente, mas sim porque (em uma língua como o japonês ou o chinês, mas talvez em nenhuma outra) eu não consigo completa literalidade em tradução. É uma questão de graus, eu sei, mas queria marcar esse ponto, com algum exagero...

Por outro lado, é verdade que não me dediquei muito à tradução. Sempre fui mais um leitor de traduções. E confesso que o meu modelo de livro, como leitor, é algo como aqueles volumes publicados pela Sabiá (e antes, eu creio, pela Editora do Autor). Foi ali que li, entre outros, Pablo Neruda. Na página, o texto original. No rodapé, com os versos divididos por /, a tradução “literal”. Adorava aquilo: ler o original e depois o literal ou vice-versa e tentar perceber a poesia, sabendo que a minha percepção e mesmo a minha avaliação de um dependia da do outro. Os que trabalham com tradução devem achar isso odioso. É relegar a tradução a um estatuto ancilar. Pois é mesmo como eu penso a tradução, no limite. Ao menos como leitor (e como tradutor, a julgar pelo Haikai – Antologia e História). Agora eu poderia, se fosse imprudente, passar a dizer a minha impressão de algum tipo de intervenção e produtos de alguns tradutores recriadores. Mas paro a tempo, lembrando-me da temperança, da prudência que não tive na juventude e talvez devesse começar a ter na velhice.

O dilema do tradutor


Li, ao acaso, num livro sobre o qual pretendo ainda escrever algo, um hokku de Bashô. O livro é Oriente, de Thomaz Albornoz Neves. E o hokku, lá, é o seguinte:


Se eu a tomasse nas mãos

derreteria em lágrimas

Geada outonal


A cena é objetiva. Derreter-se em lágrimas é uma bela imagem. A geada, no calor das mãos, derreteria. As lágrimas, portanto, são da geada – ou melhor são a geada derretida. A solução é realmente muito boa e o hokku se sustenta.


***


Entretanto, como Bashô o publicou? Foi num escrito de viagem. E precedido do seguinte texto em prosa:


“Era o começo do Mês Longo, quando cheguei à minha terra natal. [...] Tudo estava mudado, e meus irmãos com cabelos brancos e rugas em volta dos olhos. “Bom, aqui estamos, os que continuam vivos” – foi tudo o que conseguimos dizer. Meu irmão mais velho abriu um relicário e disse: ‘Aqui está uma mecha do cabelo branco da nossa mãe – apresente seu respeito.’[...] Nós todos então choramos.


Nas mãos derreteria

Sob as lágrimas quentes –

Geada de outono.”


***


No Haikai – antologia e história, traduzimos assim:


Se a tomasse nas mãos

Derreteria sob as lágrimas quentes:

Geada de outono.


 Mas creio que essa última tradução acima, para os fins deste texto, fica até melhor.

 

 E então, que dilema é esse? 

 É o que se apresentou ao Thomaz, certamente, pois ele refere na bibliografia, entre outros, o livro que fiz com a Elza, no qual o hokku vem com uma nota explicando o seu lugar no diário e o sentido privilegiado (quase diria: determinado) pela sua apresentação naquele texto.

 Os hokku de Bashô, entretanto, não só entre nós, mas também no Japão, costumam vir apresentados isoladamente. Nesse caso, é preciso decidir. Anotar? Ou não anotar? Se não anotar, será necessário recompor algum sentido coerente, imanente ao próprio terceto, mesmo que se afaste do previsto no escrito de viagem. Se anotar, será quase uma confissão de que a tradução sozinha não se sustenta (foi o nosso caso). Ou uma indicação de que o “poema” não foi concebido para ser lido isoladamente (foi também a nossa intenção). Mas aí já seria uma discussão que não caberia num livro destinado a leitores não especializados e não interessados, em princípio, nesse tipo de coisa.

 O dilema é difícil. Não sei, sinceramente, qual a melhor opção.