“apenasmente discípulo fiel de Bashô”, Goga (1)
No canto número 12 da Odisseia, vemos Ulisses ter de tomar uma dura decisão. Ele precisa passar pelo estreito de Messina, que divide a Sicília da Península Italiana. Circe, a feiticeira que se apaixonou por ele, explica a situação. De um lado do estreito vive o monstro Cila. A história de Cila não vem ao caso aqui. Basta saber que ela foi uma bela ninfa, transformada em monstro por uma feiticeira furiosa. O que realmente importa é que Cila atacava os navios, devorando os marinheiros, quando eles passavam muito perto do rochedo onde ela vivia. Mas por que algum navio passaria junto a ela, se o perigo era tão grande? Porque do outro lado do estreito estava um monstro ainda pior: Caríbdis, que de tanto em tanto sugava para uma gruta profunda as águas do mar, para depois cuspi-las. Com isso destruía por completo as embarcações.
Ulisses foi aconselhado por Circe a evitar Caríbdis e ceder parte da tripulação a Cila, o que ele fez, perdendo 6 homens, devorados pelas 6 cabeças do monstro. Desde a Odisseia, “andar entre Cila e Caríbdis” é uma metáfora para os perigos de uma travessia na qual haverá necessariamente perdas e/ou desastres.
Eu poderia ter escolhido uma fábula japonesa de mesmo sentido, se conhecesse uma. Como não conheço, vali-me da nossa própria tradição para falar de algo que me parece importante numa outra travessia: a do haicai japonês para o Brasil, passando pelo estreito do idioma, entre o rochedo da forma fixa e o sorvedouro do exotismo superficial.
Mas antes de prosseguir, gostaria de dizer o que me parece de fato importante nessa navegação, nessa odisseia do haicai, que saiu do Japão quando terminou o isolacionismo da era Tokugawa e veio até a grande floração dos grêmios espalhados pelo Brasil, passando pela orientalização da cultura pop na segunda metade do século passado.
As perguntas que sempre fiz a mim mesmo, desde quando tomei contato com o haicai japonês foram estas: O que há de novo no haicai? O que dele valeria a pena aproveitar e incorporar na nossa própria tradição? E daí a pergunta final: vale a pena fazer haicai em português ou em outra língua ocidental? Se valer, o que a experiência mostra? Quais os frutos?
Na aclimatação do haicai, a primeira questão que se apresentou foi a forma exterior do texto, a sua versificação. A convenção adotada foi que o haicai em português seria um terceto composto por um verso de cinco sílabas, um verso de sete sílabas e um último de cinco. Trata-se de uma convenção que não leva em conta que em japonês o haicai não é composto por 17 sílabas, mas por 17 moras, isto é, 17 unidades de tempo. Uma nasal, por exemplo, conta duas unidades. Em português, as unidades de medida são as sílabas, pronunciadas à maneira normal, com as contrações da oralização. E só se contam até a última sílaba forte, ou tônica.
Para muitos, isso define o haicai: um terceto de 5-7-5 sílabas contadas à nossa maneira. Mas seria isso que ganharíamos com a importação e aclimatação do haicai? Um terceto sem rima nem títulos, com versos contados à maneira portuguesa e de extensão diversa? Não parece valer a pena...
Para um bom poeta como Guilherme de Almeida não valia. Tanto que ele criou dois procedimentos em todos os seus haicais: um esquema interessante de rimas obrigatórias (uma unindo os versos primeiro e terceiro, outra interna ao verso segundo) e um título.
Já para aqueles que se dedicam ao haicai de molde tradicional, o terceto continua sem rima nem título. Para a maior parte dos praticantes, o traço formal que o caracterizaria como haicai é a composição por justaposição ou por tópico-e-comentário. Usualmente, o primeiro ou o último verso constitui uma notação e os dois outros constituem uma frase só. Na maior parte dos casos, a contraposição é feita entre uma anotação genérica e uma que se refere a um dado momento ou sensação precisa. E o registro do momento preciso na sucessão das estações, por meio de uma palavra convencional, é outra determinação formal desse tipo de haicai.
Isso é o que temos, formalmente. Então eu pergunto, como sempre me perguntei: é só isso o que queremos importar, quando nos pomos a fazer haicai em português?
Não creio. Penso que há algo mais no haicai que nos chama a atenção e nos faz querer incorporá-lo.
Guilherme de Almeida apontou esse algo mais, quando definiu o haicai desta maneira: “o haikai é a anotação poética e sincera de um momento de elite”. (2) E frisou um ponto importante ao particularizar: “anotação breve e poética. E pela sua qualidade de ser poesia espiritual, sincera, não pode deixar de ser feita no momento: no verão não se faz um haikai da primavera. Além do mais, é de um momento de elite.”
Há aqui dois pontos a destacar. O primeiro é que o haicai é uma “anotação”. Guilherme de Almeida captou bem esse lado do haicai japonês: um registro, uma anotação, algo feito no momento. O segundo é que o que é anotado é um momento especial. Ele diz “de elite” como quem diz: um momento de melhor qualidade. E a questão da qualidade aparece logo ligada ao espiritual. Haicai é anotação de um momento especial, singular, e é anotação sincera, imediata.
Nisso, ele está de acordo com a mais importante atitude definida pela escola de Bashô, que é aquela que diz que quando se está embebido de haicai, o espírito seleciona da realidade externa aquilo que se casa com o momento, e a poesia flui. Se fosse na linguagem de T. S. Eliot, diríamos que o haicai é a composição que se faz pela anotação imediata dos correlatos objetivos.
Do meu ponto de vista, estamos agora já em plena travessia do Japão para o Brasil, pois já temos algo novo: anotação imediata de um momento espiritual, estrutura bipartida do poema composto por justaposição, e pertencimento a uma estação do ano (que Guilherme de Almeida muito corretamente vincula à sinceridade e imediatez da anotação)
Algumas décadas depois de Guilherme de Almeida, vimos a orientalização da cultura pop no mundo todo. Desde a Califórnia, o Budismo zen se espalhou pelo Ocidente. D. T. Suzuki e Alan Watts vincularam o haicai ao zen, no que foram precedidos pela figura maior na difusão do haicai no Ocidente. R. H. Blyth.
Blyth impregnou a contracultura americana e derivada. No icônico romance Vagabundos iluminados, de 1958, Jack Kerouac o menciona como leitura inspiradora. Entre nós, Paulo Leminski dizia que por mais de 10 anos o livro de Blyth tinha permanecido como seu livro de cabeceira.
Conhecendo profundamente o japonês, Blyth não se preocupou, nas traduções, com a métrica. Centrou sua atenção na atitude espiritual – que ele denominava Zen – e nos sentidos que derivavam da composição por justaposição.
No Brasil, depois de Guilherme de Almeida, dois poetas responderam pela divulgação do haicai. E tiveram o mérito de fazer do haicai um interesse geral.
O primeiro foi Millôr Fernandes, que denominou haicai um terceto sem métrica, sem justaposição e sem palavra de estação. Seu haicai reside inteiramente na “sacada”, na anotação de um momento de elite, se nessa definição incluirmos a percepção humorística.
O segundo foi o já mencionado Paulo Leminski, que também praticou um haicai sem determinação formal, igualmente centrado na “sacada”, na esteira de Millôr. Mas nele a “sacada” não é mais anotação de momento de elite, como ainda é, em grande medida, para Millôr; mas anotação “esperta”, animada, que pode se sustentar apenas num trocadilho, num jogo de palavras, numa alusão política ou numa sonoridade interessante. Nos seus melhores haicais, entretanto, a “sacada” busca também um alcance existencial, almeja a algum tipo de iluminação.
Outras perspectivas também sopraram o barco do haicai entre nós.
Uma delas foi a formalista, herdada da aproximação de Haroldo de Campos ao haicai. Para Haroldo, informado pelo trabalho de Fenollosa sobre o ideograma chinês, o haicai é basicamente ideogramático. Sua tradução busca trazer à superfície os sentidos insinuados ou entrevistos nos elementos que constituem os kanjis. Essa perspectiva me parece menos interessante, principalmente porque o uso de kanji ou hiragana na anotação do poema depende seja de quem anota o poema dito pelo poeta, seja da necessidade formal de composição do quadro em que o haicai surge, em diálogo com a imagem. Finalmente, em parte oriunda da mesma fonte, uma pressuposição que se tornou muito difundida. Se, para Pound, poesia é condensação, então o haicai seria o suprassumo da poesia, porque ele seria essencialmente síntese, no sentido de dizer o máximo com o mínimo – e nisso os kanjis desempenhariam um papel central. Mais ou menos como uma fórmula física como E = MC2 sintetiza toda uma dedução longa.
De minha parte, como disse, não é a mais interessante, pois perde a diferença, perde aquilo que vem de fora do nosso universo referencial, a essência do exotismo como percepção dos nossos limites, como experiência radical de alteridade.
Com Leminski, Watts, Suzuki e Blyth, eu acredito que se destaca algo que o haicai de Bashô pressupõe e nos ensina, como prática coletiva ou individual: que a poesia pode ser um caminho de desenvolvimento espiritual. Ora, para isso, como vemos nos livros da escola de Bashô, é preciso um intenso treinamento, seja da forma, seja da atitude. A forma pode ter interesse, mas é a atitude que me encanta mais: o apagamento do “eu”, a simplicidade, a disposição generosa frente ao mundo. Desse ponto de vista, haicai (para repetir uma fórmula criada há tempos) não é a arte de dizer o máximo com o mínimo, mas sim a arte de, com o mínimo, produzir o suficiente para a integração do leitor no texto e na experiência que o originou.
E aqui voltamos a Guilherme de Almeida: anotação sincera de um momento de elite. E voltamos ao começo desta apresentação, à metáfora com que abri estas reflexões. Porque de fato eu entendo que o haicai brasileiro navega ainda hoje, como navegou desde sempre, entre Cila e Caríbdis.
O monstro mais perigoso, do meu ponto de vista, é a obsessão da forma fixa. Digo isso porque muitas vezes a obsessão do 5-7-5 termina por descuidar ou mesmo por matar uma parte importantíssima da tripulação do navio: em nome da métrica às vezes se sacrifica a naturalidade de expressão, com supressão de artigos e formação de frases que parecem produzidas por um falante de outra língua; sacrifica-se também frequentemente a anotação plena, porque a descrição pode exigir mais sílabas, ou mesmo, em direção contrária, a economia da linguagem, porque se a descrição ou o registro é breve o poeta não deveria se ver obrigado a preencher a medida.
O mesmo perigo de formalismo, eu creio, se encontra quando se tem exagerada obsessão pelo kigo. No Brasil não temos tradição generalizada de palavras de estação, porque o país é muito vasto em latitude e também em longitude. Por exemplo: o que é inverno no Amazonas e o que é inverno em Santa Catarina? Como é o registro das chuvas e dos ventos no Pantanal, no interior de São Paulo, na região de Pelotas ou no Nordeste? E as festas populares? Sem a preparação adequada – trabalho ainda em curso, cujo primeiro passo foi dado por Goga e Teruko Oda – e sem vincular decididamente o kigo a um clima espiritual ou sensação bem definida, o haicai brasileiro poder perder mais esse tripulante tão importante (o seu piloto, por assim dizer), que é a imediaticidade da notação, pois ninguém anota espontaneamente um nome científico ou pouco conhecido de uma árvore ou flor, e é difícil fazer do centro do poema um fenômeno sazonal desconhecido da maior parte dos leitores. Mas se essa é Cila, devemos notar que mesmo com tripulantes a menos, o barco do haicai tem navegado muitas milhas, de norte a sul, pois todos os anos são publicados muitos volumes. A quantidade, entretanto, não nos deve esquecer do destino que queremos para esse barco, e até onde gostaríamos de chegar.
Do outro lado do estreito está Caríbdis, que identifiquei com o exotismo superficial. Ali reside, por exemplo, a arrogância de tantos iniciantes que se arvoram o direito de chamar de haicai o que nada tem a ver com o haicai japonês. “Haicai é o que eu chamo de haicai” – dirá essa Caríbdis, ansiosa por auferir os lucros do nome sem o ônus do esforço espiritual. Mas há também outra, que é a que reduz o haicai a pura “sacada”, a puro “lance zen”. Suas vítimas, aqui também, são a naturalidade da expressão, e principalmente a modéstia, a contenção que caracterizam o haicai da escola de Bashô.
Mas chega de metáforas, de Cila e de Caríbdis. O barco do haicai não afundou no redemoinho, nem sua tripulação foi dizimada. Continuou a travessia desde o Japão para a língua portuguesa e a cultura do Brasil. Somos a prova, e somos a tripulação atual. Algumas partes de nós foram, em algum momento – e digo isso tomando a mim mesmo como exemplo –, ameaçadas por um daqueles monstros. Nossa espontaneidade e nosso treinamento espiritual foram às vezes ameaçados pela vaidade de ser “autor” ou pela vaidade de acreditar que só nós temos a chave para o cofre do haicai. Mas o esforço prevalece e nos reunimos em busca de apoio mútuo e ensinamento, em muitos grêmios, concursos e reuniões como esta.
Quanto a mim, o destino e a carga preciosa que o barco do haicai nos traz são claros. Seu destino é a nossa consciência, nossa forma de usar a linguagem, de estar no mundo e mesmo de estar na linguagem. Sua carga valiosa é o exercício da modéstia, a postulação da arte como caminho de vida, a radicação da poesia na experiência sensória e o ideal de produzir um poderoso efeito estético e emocional pelo agenciamento dos correlatos objetivos, pela seleção daquilo que o espírito, embebido de haicai, recorta da realidade exterior e faz confluir para a forma do verso.
Se eu fosse ousado o suficiente, comporia um haicai para encerrar esta fala com um elogio do registro objetivo do aqui-e-agora como razão suficiente para essa poesia que nos fascina.
Como não sou, faço falar por mim um conhecido haicai de Issa:
Apenas estando aqui,
Estou aqui –
E a neve cai.
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* texto lido na Bunkyo, no dia 09/11/2024
Referências:
(1) Goga. Frase final no documentário “Goga, discípulo fiel de Bashô”
Disponível em: https://www.kakinet.com/caqui/gogav.shtml#parte2
(2) Guilherme de Almeida. “Haicai – poesia de estação”. Entrevista concedida a Genésio Pereira Filho em 29 de setembro de 1941.
Reproduzida em: https://www.kakinet.com/caqui/gaen.htm
Muito obrigado pela sua dedicação nesta arte que encanta-nos, como eterno aprendiz sinto-me honrado de assimilar seu texto.
ResponderExcluirExcelente leitura/escrita crítica sobre o haicai, Paulo. Realmente, o barco não afundou, e a presença do haicai na nossa cultura vem crescendo ainda mais. Assim como coloca no seu texto, o motivo está nessa consciência e na capacidade de sua forma de expressar o mundo por uma linguagem objetiva e rica em materialidades poéticas.
ResponderExcluirApós escrever trocentas laudas e perder com um comando errado, ficarei com o um suprassumo! Texto impactante, rico, profundo e instigante, que nos convida a confrontá-lo com o que entendemos por haicai. Vive-se hoje um momento no haicai brasileiro, em que cada um tem o seu haicai, muitas vezes dissociado do mínimo que se entende por ele. Obrigado.
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