Depois de muitos anos, conversei ontem por WhatsApp com Zina Bellodi. Zina foi minha professora em Araraquara.
Durante a conversa, lembrei-me daqueles anos em que me deparei com o maior tesouro: uma enorme biblioteca com acesso livre. Nada de pedir o livro no balcão, aguardar, folhear, decidir que não era aquilo e galopar até o fichário para conseguir os dados para outro pedido.
Entrar naquela biblioteca acolhedora, principalmente no novo campus, era uma coisa; sair, era outra. A serendipity fazia o seu trabalho com perfeição.
Aquelas manhãs e tardes na biblioteca e o canto altíssimo das cigarras são as memórias mais persistentes daqueles anos de formação.
No que toca à formação propriamente dita, ou melhor, das aulas, persistem as memórias das longas horas sob o comando do Jorge Cury – com sua rabugice tão famosa, quanto a sua paixão pela literatura lusa –, da lenta decifração francesa dos contos e poemas de Gérard de Nerval e outros poetas a quem me afeiçoei, e das aulas de Teoria Literária – que, naqueles tempos, significava basicamente o livro de Wellek e Warren. Veio daí a minha formação eclética, em que eu combinava sem contradição aparente (e contra os preceitos da professora de Teoria Literária) a explicação de textos francesa (muito externa, às vezes, e biográfica) e a nova crítica americana.
Quando me pus a refletir sobre isso, deparei com um texto em que Antonio Candido em que ele também afirma que a junção desses dois polos também animava o seu trabalho. Foi numa entrevista de 2011: “talvez eu seja aquilo que os marxistas xingam muito que é ser eclético. Talvez eu seja um pouco eclético, confesso. Isso me permite tratar de um número muito variado de obras.” Se pusermos esse paradigma eclético a serviço de uma perspectiva marxista, para a qual o objetivo último da análise literária é a compreensão do movimento social, temos o segundo momento do Candido – momento esse em que não o segui. Não por ter alguma prevenção contra o marxismo, mas porque eu preferi, sempre que foi o caso, fazer o caminho inverso: ter a compreensão da obra literária como objetivo último (e único, talvez) do meu trabalho, colocando a seu serviço o que for preciso, inclusive a compreensão possível do movimento social.
Isso, penso agora, deve ter sido ainda produto da impregnação wellekiana, daqueles verdes anos.
Por isso mesmo, num texto de um livrinho sobre o ensino da literatura escrevi isto: “Ao mesmo tempo numa disciplina denominada Teoria da Literatura, líamos o livro de René Wellek e Austin Warren, que marcou época no Brasil, promovendo a crítica dos métodos que atenderiam à “demanda extrínseca do estudo da literatura” e valorizando aqueles que promoviam o seu “estudo intrínseco”. [...] Olhando agora o meu velho exemplar dos tempos da faculdade, vejo nas profusas anotações a lápis nas margens do capítulo sobre mito e metáfora (e em outros) o quanto a clareza do vocabulário e o rigor analítico da exposição foram um deslumbramento para mim. Como foi também muito importante outro manual, igualmente marcado pela perspectiva formalista, Análise e interpretação da obra literária, de Wolfgang Kayser, que desempenhava um papel complementar ao de Wellek.”
A disciplina de Teoria Literária, poderia ir sem dizer, era a da Profa. Zina, com quem conversei ontem à noite, conversa essa que despertou em mim novamente, naqueles momentos em que não se está plenamente desperto, nem totalmente adormecido, estas velhas recordações do campus calorento e sua biblioteca infinita.