sexta-feira, 25 de setembro de 2020

A CLEPSYDRA de 1920


Uma questão recorrente nos debates sobre o livro dos poemas de Pessanha é a seguinte: por que João de Castro Osório não respeitou o número e a ordem dos poemas da Clepsydra publicada por sua mãe, Ana de Castro Osório, em 1920? Essa pergunta se aplica a todos os que não mantém o livro de 1920 preservado, separando-o do conjunto dos demais poemas que se foram encontrando do autor nos anos seguintes – e até os anos de 1960... É uma questão que me foi apresentada várias vezes.

Na edição que preparei em 1995, para a Relógio d’Água, nem havia lugar para tal questionamento, porque ali – como disse explicitamente na introdução – o que me interessava era anotar as variantes todas de todos os poemas e fragmentos, dispondo-os em mera ordem cronológica de conhecimento: ou seja, dispondo-os segundo a datação da primeira versão ou a primeira aparição impressa. É certo que fiz uma concessão. Ou melhor, duas: abri o conjunto com o poema que começa “Eu vi a luz” e o terminei com o que se inicia por “Ó cores virtuais”.  Isso significava que eu não desistia de marcar o desejo de Pessanha de organizar um livro, cujo projeto parecia perdido. De fato, num manuscrito que vi em casa de Carlos Amaro, o poema “Ó cores...” vinha com uma nota entre parênteses: “Última página de um livro em tempos delineado”; e o poema “Eu vi a luz” me pareceu de fato destinado a abrir o conjunto, pois não há dele outro registro além dos autógrafos de 1916, que o poeta deixou com Ana de Castro Osório para publicar. Ali, vinha ele abrindo o conjunto. E que Pessanha pensava num livro e autorizava Ana de Castro Osório a publicá-lo estava patente na dedicatória/procuração que encontrei colada à contracapa da primeira edição. Então fui levado a encontrar essa solução, que ficou meio ambígua, por mais que a explicasse.

Mas quanto à edição de 1920, fui bem claro, eu creio, pois a consulta aos autógrafos mostrava desde logo que as indicações de agrupamento e sequência de alguns sonetos não fora respeitada. E a lista dos poemas a reunir para o livro não os separava em sonetos e poesias.

Sucede ainda que sabemos que Pessanha ficara de enviar de Macau as versões definitivas dos poemas que anotara “de memória”, como ele mesmo registrou nos autógrafos, e nunca o fez.

A conclusão era fatal: primeiro, que Ana de Castro Osório, na boa intenção de preservar a obra do amigo, fez o que podia: ajuntou o que tinha em autógrafos ou em cópias de terceiros e ainda em publicações em jornais, e nos deu a Clepsydra; segundo que deu, ela mesma, a essa edição a sua contribuição, seja separando os poemas por forma (sonetos/não-sonetos), seja não criando os dípticos claramente indicados pelo poeta nos autógrafos que utilizou.

Seu filho, depois, deu continuidade ao que denominou “salvamento” da obra de Pessanha, acrescentando o que pôde encontrar em poder de terceiros ou no “Caderno” de Macau, revelado apenas no segundo pós-guerra – e tomando as liberdades que julgou legítimas, como rearranjar a ordem dos poemas, suprimir algum de uma edição a outra, atribuir títulos e, por fim, juntar fragmentos, reordená-los e dar-lhes um título, como se fossem um poema só – no caso “Roteiro da vida”.

Quanto à edição de 1920, Pessanha, em carta a Ana de Castro Osório, do ano seguinte, agradece a publicação e especialmente o cuidado da disposição e da ortografia. Mas o faz numa carta escrita com outro propósito, qual seja o de apresentar à amiga um companheiro de maçonaria que embarcava para Lisboa: “Mas não quero deixar de agradecer-lhe, penhoradíssimo etc...” – e isso foi tudo.

Eu já tinha repisado esses argumentos muitas vezes, por escrito ou oralmente. E me preparava para fazê-lo mais uma vez, já que faria uma conferência num colóquio na Sociedade de Geografia de Lisboa e ali certamente estariam alguns defensores do respeito à edição de 1920.

Fui dormir, na véspera, pensando em como apresentar de modo novo os mesmos argumentos. Isto é: que a Clepsydra de 1920 não era uma edição de autor, era antes uma coletânea, organizada por uma pessoa com a qual Pessanha tinha uma forte relação afetiva etc. Mas não fui muito longe na elaboração da estratégia e adormeci.

Foi então que, quase ao raiar do dia, sonhei. No sonho, passavam na frente dos meus olhos algumas capas de livros. E depois a da Clepsydra de 1920. Quando acordei, imediatamente vi o que me queria dizer. E me lembrei ainda de uma outra capa, que logo fui conferir, porque tinha faltado no sonho.

São as que seguem. E o que elas me disseram é que, na época de Pessanha, a assinatura vinha no alto da capa. E, no centro, o nome da obra. Com exceção de duas, dentre as sonhadas: a de O livro de Cesario Verde e a de Clepsydra – poêmas de Camillo Pessanha. E então me lembrei do livro de Antero e fui em busca da imagem no Google.

O que o sonho me mostrou foi algo que eu deveria ter visto desde o começo: falta a assinatura de Pessanha, visualmente, na capa da edição de 1920. Como falta na poesia coligida de Cesário. O livro que procurei depois foi o dos sonetos de Antero, organizados por Oliveira Martins. 

E procurei porque me lembrei de que quando Oliveira Martins os publicou, compondo a biografia espiritual do amigo por meio das fases evolutivas, o livro não era mais Sonetos, com o nome do autor no alto da capa, mas sim Os sonetos completos de Anthero de Quental, com a menção em letras menores: “publicados por J. P. de Oliveira Martins”.

Era esse o caso tanto de Cesário, quanto de Pessanha. Se Cesário tivesse ele mesmo publicado seu livro, era provável que víssemos, no alto da página, seu nome; e no centro algo como Canto Meridionais. O mesmo com Pessanha e sua Clepsydra.

Silva Pinto e Ana de Castro Osório poderiam ter anotado, como fez Oliveira Martins: “publicado/s por...”. Não o fizeram de modo explícito, certamente por modéstia. Mas tomaram o cuidado de não inserir no lugar devido a assinatura, o nome do autor, cuja poesia reuniam e publicavam para a posteridade, indicando assim a natureza do que ofereciam ao leitor.











segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Os poemas perdidos de Camilo Pessanha


        O que nos chegou da poesia de Camilo Pessanha resume-se a meia centena de poemas. O número exato não é tão simples de precisar. Por exemplo, João de Castro Osório, na última edição que fez da sua poesia, no volume intitulado Clepsidra e outros poemas de Camilo Pessanha, juntou 3 fragmentos escritos a lápis encontrados no Caderno de Macau a um outro, que lhe chegou não se sabe como, e com eles compôs um poema em três partes, intitulado “Roteiro da vida”. Não ficou mal, para dizer a verdade. Como os fragmentos não se juntavam perfeitamente, o resultado ficou muito moderno e impressivo.

Entretanto, o procedimento é complicado – para dizer o mínimo –, porque nada indica que os quatro textos que ele juntou fossem partes de um mesmo poema (a suposição nasceu do fato de virem a lápis) e porque, a formarem um poema, a ordem em que vinham no Caderno não era a mesma em que os dispôs Castro Osório. Na edição que fiz para a Relógio d’Água, achei que mais prudente oferecer aos leitores e editores futuros o que encontrei nos autógrafos do caderno de Macau.

Se contarmos “Roteiro da Vida” como um só poema em três partes, temos um total de 51 poemas (incluindo dois sonetos de intuito paródico, intitulados “A miragem” e “Transfiguração”). Se não aceitarmos que esses fragmentos possam ser considerados partes de um único poema, mas sim fragmentos ainda em composição, pois não foram passados a limpo, como era costume do poeta, o número cai para 50.

Mas afinal isso foi tudo que Pessanha escreveu, até o final da vida? Não, não foi. Há alguma coisa mais.

Em primeiro lugar, temos dois poemas de que restaram fragmentos na memória de terceiros: do próprio Castro Osório e de Carlos Amaro. Uma ode que começa por “ó Terra doce e boa” e um soneto cujo primeiro verso era “Um fio a desdobar, que não termina”.

Depois, temos um que começava por “Voa o comboio, correria doida”. Num postal que Alberto Osório de Castro enviou a Pessanha em 3 de abril de 1908, ele informa estar de posse do manuscrito. Mas depois não há mais notícia. São já três perdidos.

Numa carta que Pessanha enviou a Henrique Trindade Coelho em 9 de setembro de 1916, com os dois sonetos satíricos que conhecemos, ele diz: “Ainda fiz outros menos complicados – até com um travo agreste a século XV (talvez se chamem ‘Santa Comba’, ou  ‘Santa Ovaia’, porque ‘Santa Comba’ soa a chegada de comboio à estação”. A carta é importante não só por mencionar dois (ou mais) sonetos perdidos, mas também porque mais outra vez mostra como é pouco sustentável a lenda de que o poeta nada mais escrevera desde os primeiros anos de Macau, consumido por uma suposta abulia. Pois ele não só escrevia e revia, mas ainda fazia sátiras... Bom, mas agora já somamos no mínimo 5 (supondo que “outros” indique apenas mais dois).

Na carta que Pessoa escreve a Pessanha, pedindo colaboração para o número 3 de “Orpheu”, ele menciona dois sonetos sob o título “O Estilita”. Nunca se encontraram. Pessoa menciona ainda “Regresso ao lar”, que eu mesmo acreditei ser o soneto “Quem rasgou...”, mas que, como se verá, talvez não fosse, e sim outro. Sem constar, por enquanto, “Regresso ao lar” como perdido, temos agora já 6.

Um texto não assinado, publicado no “Diário de Lisboa” em 3 de março de 1926, por ocasião da morte do poeta, menciona como suas obras-primas, “Tatuagens”, “Volta ao lar”, e “Coimbra”.  Deste último nunca houve outra notícia. São já 7, portanto, os poemas perdidos.

João de Castro Osório, por fim, diz que Pessanha mencionara a existência de dois outros poemas de que não temos notícia: um segundo sobre o fonógrafo, e uma segunda parte do poema que começa “Voz débil que passas”. A conta agora já está em 9, no mínimo.

Isso era o que eu sabia até 1995. No entanto, quando a lista dos poemas a recolher para a “Clepsydra” descolou-se da contracapa onde vinha presa, revelou-se que, na frente do primeiro verso de alguns desses poemas vinha um sinal de +, indicando que ali se tratava de um díptico. E de fato, havia, nos autógrafos díptico bem marcados com indicação de sequência dos sonetos que começavam “Passou o outono já...”, “Desce em folhedos tenros...”, “Singra o navio...”. O problema é que também havia sinal de + na frente dos seguintes primeiros versos: “Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho” e “Se andava no jardim”. Ora, o segundo de cada um desses nunca foi enviado por Pessanha, nem encontrado por ninguém. O segundo de “Quem poluiu...” talvez seja o “Regresso ao lar”, ou talvez não. Mas trata-se, sem dúvida, de mais um poema perdido, que com a sequência de “Se andava...” soma, com os anteriores, 11.

Sendo assim, o total dos poemas possivelmente perdidos é impressionante, proporcionalmente: são 11 poemas perdidos ou recuperados apenas em parte, contra 50 conservados. Ou seja, 20%. Para uma obra tão exígua, é um percentual muito alto...

Pessanha tradutor

Neste ano em que se comemoram os 100 anos da publicação em livro dos poemas de Camilo Pessanha, já está morto e sepultado um mito abstruso em que tantas boas mentes acreditaram: o do poeta sem escrita.

Como se sabe, isso começou – paradoxalmente – com quem o publicou em 1920. De fato, Ana de Castro Osório declarou textualmente, numa entrevista de 21 de abril de 1921, ao Diário de Lisboa, que “Camilo Pessanha nunca escreveu um só de seus versos. Compõe-nos nas suas horas de inspiração e guarda-os na memória. Só consente em dizê-los às pessoas de mais intimidade”.
É incrível que tal inverdade não tenha sido contestada. Várias pessoas possuíam autógrafos de Pessanha, que ele costumava distribuir, sempre anotando que eram transcritos “de memória”- o que significava que havia um documento escrito e fixado. Carlos Amaro, por exemplo. E Alberto Osório de Castro, irmão de Ana de Castro Osório, que num postal de 1908 dizia: “Trouxe o manuscrito dos seus versos” e listava um grande conjunto de poemas, inclusive um de que nunca mais se teve notícia. E quanto a dizer apenas a pessoas da maior intimidade, faz ainda menos sentido, pois Pessanha não se fazia de rogado para dizer seus versos – e basta a carta que Pessoa lhe enviou para comprovar que ele declamara versos para um jovem desconhecido já num primeiro encontro.
Não obstante, a bobagem foi aceita e muito repetida, até ser levada a sério por quase todo mundo, ou, pelo menos, não ser contestada por ninguém.
Por isso mesmo, quando, no começo de 1985, a revista Persona (número 10), publicou o “Caderno” de Camilo Pessanha, com manuscritos e anotações e muitas correções a manuscritos anteriores e mesmo a textos recortados de jornal, foi um choque. O melhor testemunho do choque foi um artigo de Alfredo Margarido, na Persona 11/12, intitulado justamente “Camilo Pessanha, poeta da escrita”.
Sobre o poeta sem escrita, um abúlico, porque fumava ópio, e portanto seria incapaz até mesmo de escrever e publicar a sua própria obra, escreveu muito bem Alfredo Margarido, na indignação da primeira hora, em 1985:
“Em síntese: a imagem de Pessanha tal como ela tem sido divulgada, reforçada pela enorme massa de tolices acrescentadas por João de Castro Osório não resiste à análise. É certo que Camilo Pessanha se drogava, mostrando-se um bom consumidor de ópio. Mas já alguém pensou em condenar as personalidades dos drogados ilustres da literatura europeia, de Coleridge a Thomas de Quincey, de Baudelaire a Henri Michaux? Não passaria pela cabeça de ninguém a ideia triste de acoimar de ‘abúlicos’ tais criadores, sendo a droga um elemento integrado à criação, como o era também a aguardente de Fernando Pessoa.”
Entretanto, outra lenda persiste. Essa porque ainda não se encontrou outro caderno – que talvez nunca se encontre, dada a incúria dos testamenteiros com o legado do poeta –, mas que foi visto por pelo menos duas pessoas, de cujo testemunho, nesse assunto, não se tem qualquer motivo sério para duvidar. E quanto a isto, Margarido não faz justiça a João de Castro Osório.
Trata-se da lenda de que Pessanha nunca aprendera chinês a ponto de traduzir daquela língua, e portanto não o fez – como se Pound tivesse aprendido chinês a fundo para traduzir o que traduziu...
Ainda hoje se repetem argumentos sem peso, todos baseados na suposta abulia do poeta. E não há nada que pareça convencer os descrentes contumazes nem mesmo a conceder ao poeta o benefício da sua dúvida – que ele, por sinal, orgulhoso como era, certamente desdenharia.
O fato, quanto a mim, é que temos 3 documentos escritos.
O primeiro, em importância, é um artigo que Carlos Amaro, amigo dileto do poeta, publicou quando da sua morte, na revista “Ilustração”. Em certo ponto, escreveu:
“Não é esta a hora da crítica serena à sua obra, demais tanta coisa anda dispersa, tantas composições só começadas, mas tendo, contudo, o bastante para valer bem a pena publicá-las, trabalhos sobre a língua, literatura e poesia chinesas – mais de sete mil páginas vi eu escritas em letra quase microscópica, da última vez que Camilo Pessanha esteve em Lisboa –...”
E João de Castro Osório, em 1969, no meio da massa de comentários a que se refere Margarido, declarou que Pessanha, ao regressar a Macau em 1916, esperava contar com algum auxílio oficial para que se copiassem e publicassem as numerosas traduções de literatura chinesa que ele tinha feito e recolhia num caderno. Caderno esse que Castro Osório examinou e por isso mesmo lamentava que não se tivesse feito “o completo acabamento e publicação, ao menos, das muitas obras que enchiam o volumoso caderno, que tive por algumas horas em meu poder, onde Camilo Pessanha juntara as suas traduções poéticas da literatura chinesa”. E acrescenta: “foi um verdadeiro crime contra a cultura portuguesa ter-se menosprezado o valor desta colaboração”. Um crime que, em certo sentido, se perpetua, ainda hoje, por aqueles que acham mais fácil desprezar dois testemunhos coincidentes, em nome da facilidade da acusação banal de “abulia”.
Por fim, basta ler com atenção a correspondência coligida por Daniel Pires e publicada em coedição pela Biblioteca Nacional e Editora da Unicamp. Lá se encontra, por exemplo, esta declaração de Pessanha a Carlos Amaro, numa carta de março de 1912:
“Em quase vinte anos de Macau, fui-me adaptando ao meio por um trabalho penível, embora em parte inconsciente, que me incapacitou para ser qualquer coisa fora daqui. São quase vinte anos de estudo, mais ou menos assíduo, da língua chinesa, dos costumes chineses, da arte chinesa. A língua principalmente desde que cheguei aqui a última vez, há três anos, tenho-a estudado brutalmente, - no furor de me absorver fosse no que fosse, para ver se conseguia distrair-me de tantas desgraças a que não posso dar remédio e que são a minha obsessão.”
De tudo o que lemos nessa e em outras cartas resulta um perfil atormentado, mas nada que se pareça com a figura do abúlico incapaz de escrita poética ou de aprendizado do chinês ou de tradutor dessa língua. Abúlicos, no sentido mais amplo, talvez sejam os críticos renitentes, na preguiça de enfrentar os lugares comuns desta lenda, como antes não enfrentaram da outra, a do poeta sem escrita.