Jornal (2)
ISSA
Kobayashi Issa nasceu em 1763, em
uma aldeia do atual distrito de Nagano, e faleceu em 1827. Sua obra tem sido
objeto de avaliações bastante divergentes, e entre os grandes haicaístas do
Japão certamente nenhum gerou mais controvérsia do que ele. Para o leitor
ocidental, Issa é talvez o mais acessível dos grandes haicaístas. É mais fácil
lê‑lo e gostar dele do que de Bashô ou Buson.
Alguns críticos japoneses e ocidentais pensam que isso
se deve ao que consideram “sentimentalidade excessiva” ou “excessiva subjetividade”
dos seus versos. Essa tem sido uma opinião moderna, que ganhou força após a
"restauração" do haicai empreendida por Masaoka Shiki (1867‑1902).
Os críticos que defendem tal julgamento insistem em
retraçar a sua biografia para explicar o tom específico do seu haicai: perdeu a
mãe aos dois anos, teve uma vida marcada pelas desavenças familiares, pela
morte de vários filhos e outros desgostos. Daí que leiam nos seus versos o “complexo de inferioridade”, a sensação de
“rejeição”, a “consciência de ser o enteado”, o “desamparado” etc. Ou
seja: daí que pensem que foi essa biografia conturbada que tornou Issa incapaz
de evitar a exposição de sentimentos e afetos que não combinariam bem com o
haicai.
Mas será que tais explicações, fundadas num psicologismo
tão banal, têm ainda algum interesse?
Mesmo que tivessem, não dariam conta
do fato de que também no Japão, até hoje, Issa é um dos poetas de haicai mais
lidos, sendo majoritariamente considerado um dos “quatro grandes” da sua arte.
Uma outra vertente crítica vê como
virtude o que é visto como defeito pelos que se apóiam em Shiki. René Sieffert
e Reginald H. Blyth, por exemplo, não apenas consideram Issa um dos “quatro
grandes”, mas ainda afirmam que ele é um dos poucos poetas japoneses ‑‑
senão mesmo o único ‑‑ a ombrear com Bashô. No entendimento desses dois
reconhecidos estudiosos do haicai, o “sentimentalismo” de Issa é um alargamento
das fronteiras da poesia de haicai, uma novidade positiva, que revitalizou o
gênero.
O sucesso de Issa entre leitores de
todas as idades e nacionalidades parece dever-se principalmente ao efeito de
humor franco e simples de boa parte de seus textos e à sua preferência por
temas ligados à vida e comportamento de animais e insetos. Isto é: ao seu
excelente domínio do registro humilde. É isso também o que explica a sua maior
acessibilidade aos leitores não-japoneses: por não utilizar o registro
“elevado”, ele quase nunca se vale do procedimento mais comum da poesia
japonesa, que é a alusão a fatos, locais, poemas e personagens das obras
clássicas chinesas e nipônicas, indecifráveis para a maior parte dos leitores
ocidentais.
Para que se possa ter uma amostragem
significativa do estilo de Issa, seguem-se alguns textos do autor, comparados
com outros, escritos por diferentes poetas japoneses.
As
dez noites do Nambutsu
Ah, o som sagrado.
O chá também diz da‑bu da‑bu
- estas dez noites!
(Buson)
A noite é longa.
É muito, muito longa:
Namuamida. (Issa)
Os dois haicais têm como tema a
recitação do Namuamidabutsu (Glória ao Buda Amida), palavra que é
incessantemente repetida nos templos da seita da Terra Pura, durante dez
noites, em outubro. O de Buson permite duas leituras: uma, a de que todas as
coisas, cada qual a seu modo, dizem as palavras sagradas e participam da mesma
ordem; outra, a de que o poeta, cansado de ouvir o nembutsu, começa a
ouvi‑lo por toda a parte, mesmo no borbulhar do chá para fora da chaleira. A
primeira leitura é piedosa; a segunda, enfatiza a ironia; e a graça do poema é
justamente a oscilação entre ambas. Já o de Issa, embora possa ser lido como
levemente irônico, é sobretudo pungente. O que nele triunfa é a percepção de
abandono do homem no meio das trevas de onde emergem as palavras sagradas e,
com elas, a possibilidade de encontrar algum sentido nas coisas, por meio da
graça concedida pelo Buda.
Os dois textos são profundamente diferentes: o de
Buson é sobretudo espirituoso, evidentemente trabalhado; o de Issa, mais
empenhado num tom despojado, coloquial, direto.
Os
olhos da libélula
É quase nada
a cara da libélula:
somente
olhos. (Chisoku )
Nos
olhos da libélula
refletem‑se
montanhas
distantes. (Issa)
A libélula é um inseto que se associa tradicionalmente
à estação do outono e à idéia de mobilidade e de transitoriedade. Estes dois haicais
se constroem sobre a observação dos enormes olhos do inseto. No entanto, a
diferença é muito grande. No poema de Chisoku, o sujeito observador e o objeto
observado estão rigidamente separados e a “objetividade” leva a uma observação
cômica. No de Issa, todas as coisas se compreendem, se refletem e correspondem:
o símbolo da mobilidade é capaz de conter, ao menos nos grandes olhos, a imagem
da permanência e solidez das grandes montanhas distantes. É, portanto, um poema
"piedoso". Do mesmo tipo de piedade que Bashô ensinou a um seu aluno,
, quando lhe censurou o seguinte haicai: “uma libélula – tirando-lhe as asas,
uma pimenta!”. À violência e ao riso, Bashô preferiu outra coisa, e por isso
refez assim os versos do discípulo: “uma pimenta – pondo-lhe asas, uma
libélula!”. Também Issa, ao invés de opor e reduzir, tratou aqui de integrar e
de ampliar.
A
paisagem branca
A neve cai mais forte
quando me detenho
de noite na estrada.
(Kitô)
Não há céu nem terra,
apenas a neve
caindo sem parar.
(Hashin)
Nós contemplamos
Até mesmo os cavalos
Nesta manhã de neve!
(Bashô)
Apenas estando aqui,
estou aqui,
e a neve cai.
(Issa)
De todos esses haicais, o de Issa é
o que apresenta menos elementos, E, no entanto, é muito impressivo. Produz, num
ambiente budista, um grande efeito de “sabedoria” ou “desenvolvimento
espiritual”, de que foi necessário "envelhecer" muito para
simplesmente poder estar ali, inteiramente ali, enquanto algo acontece.
A
arte de "apenas estar desperto"
É contra esse mesmo pano de fundo do
pietismo e da “iluminação” budista – isto é: num quadro tradicional, e não em
função da biografia do poeta, ou num quadro psicologista –, que se devem ler
alguns dos seus versos mais famosos, como os que aqui são publicados.
Com ou sem humor, tratando de temas
que podem ou não ser colocados em função da sua biografia, o que de fato
importa no haicai de Issa é a maestria com que atualizam, numa dada forma
literária, elementos centrais da tradição budista.
O despojamento da linguagem, a facilidade dos poemas,
o “sentimentalismo”, a ausência de alusões eruditas e até a biografia
atormentada (que Issa é o primeiro a explorar em diários e em poemas) são,
assim, elementos que não podem ser considerados separadamente, mas como parte
de uma “poética”. Ou seja, são elementos organizados por um ponto focal e que
têm, por isso, uma determinada ação sobre o leitor. E esse ponto focal é o que
ecoa a resposta de Buda à pergunta sobre o que o tornava Buda: "Apenas
estou desperto".
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Breve
antologia do haicai de Kobayassi Issa:
Venha brincar
comigo,
Pardalzinho
Sem pai e sem mãe.
Dia de Ano‑Novo.
Que sorte, que
grande sorte:
Um céu azul‑claro!
Em solidão,
Como a minha comida
–
E sopra o vento do
Outono.
Vou sair.
Divirtam-se fazendo
amor,
Moscas da minha
cabana.
A neve está
derretendo –
A aldeia está cheia
De crianças.
Chuva de primavera
–
Uma criança
Ensina o gato a
dançar.
A lua da montanha
Gentilmente ilumina
O ladrão de flores.
Da ponta do nariz
Do Buda do campo
Desce um filete de
gelo.
Primeiras neves:
Meu maior tesouro
É este velho
penico.
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Para
saber mais:
Nos
livros:
Blyth, R. H. Haiku. Tóquio:
The Hokuseido Press, 1972.
Franchetti,
P. et al. Haikai – antologia e história. Campinas: Editora da Unicamp,
1996.
Leminski,
P. Matsuó Bashô. São Paulo: Brasiliense, 1983.
Verçosa,
Carlos. Oku – viajando com Bashô. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo,
1996.
Na
internet:
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Quem?
O quê?:
Haicai
-- ou haiku: poema japonês breve, que apresenta objetivamente, em linguagem
quotidiana, uma cena ou um evento natural.
Matsuó
Bashô (1644-1694): o criador do gênero tal como ainda se pratica no Japão.
Yosa Buson (1715-1783): um dos quatro grandes mestres do haiku (os outros são Bashô,
Issa e Shiki).
Masaoka
Shiki (1867-1902): é tido como o restaurador do haiku nos tempos modernos.
[Publicado na página LIVROS, do jornal Correio Popular, de Campinas, em 09 set. 2000]