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terça-feira, 18 de junho de 2013

O Mandarim, de Eça de Queirós




O Mandarim

[prefácio a uma edição escolar do livro, de 1998]


Eça de Queirós vem referido, nos manuais escolares, como introdutor e maior expoente do Naturalismo português. É verdade. Mas também é verdade que Eça não perman­ceu fiel a vida toda aos princípios definidores daquele movimento de idéias. De fato, se por Naturalismo entendermos o romance de análise e crítica social, baseado na investigação das determinações que o meio físico, os costumes e a herança genética impõem às personagens, apenas poderão ser denominadas naturalistas duas novelas queirosianas: O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio. Suas outras obras pouco ou nada têm a ver com o Naturalismo, como podemos ver no rápido esboço da sua evolução literária, que apresentamos a seguir.
Seus primeiros textos, escritos por volta de 1865 e só reunidos postumamente sob o título de Prosas Bárbaras, são narrativas breves, marcadas pela influência de nomes emblemá­ticos da literatura fantástica – Nerval, Poe, Hoffman, Heine -- e sobretudo pelo espiritualismo de Vítor Hugo. Impregnadas de um forte sentimento panteísta, nem nos temas nem na forma trazem essas Prosas qualquer indicação de que o seu autor será, passados uns poucos anos, o convicto defensor do Naturalismo artístico.
Entretanto, já em 1871, na famosa conferência do Casino Lisbonense, Eça vai renegar conjuntamente a prosa fantástica e o romance histórico, e proclamar que o requisito básico da literatura moderna era a verdade; seu método, a análise; e seu objetivo, a melhora da sociedade por meio da crítica e da denúncia dos costumes. Era o triunfo da perspectiva naturalista, que logo produzirá os dois romances que nomeamos há pouco.
Mas seria rápido esse intermezzo programático. Em 1880, apenas dois anos depois de O Primo Basílio, Eça vai dar a público O Mandarim – uma novela fantástica, em cujo enredo tem participação decisiva uma figura declaradamente romântica: o Diabo.
Numa carta ao editor da Revue Universelle, que serviu de prefácio à publicação francesa da novela, Eça se mostrava bem consciente da singularidade do livro face à tendência estética dominante: “tendes aqui, meu Senhor, uma obra bem modesta e que se afasta consideravelmente da corrente moderna da nossa literatura, que se tornou, nestes últimos anos, analista e experimental”. Isso porque O Mandarim era “um conto fantasista e fantástico, onde se vê ainda, como nos bons velhos tempos, aparecer o diabo, embora vestindo sobrecasaca, e onde há ainda fantasmas, embora com ótimas intenções psicológicas”. A percepção do escritor é claríssima: apesar da atualização do ambiente da trama, o enredo fabuloso, o gosto pronun­ciado do exotismo, a ausência de interesse nos vários condicionalismos que determinam a ação dos indivíduos e a intervenção do sobrenatural configuram uma narrativa de molde romântico, ou neorromântico.
Nessa mesma carta, prosseguia Eça de Queirós com uma frase que vale a pena transcrever: “entretanto, justamente porque esta obra pertence ao sonho e não à realidade, porque ela é inventada e não fruto da observação, ela caracteriza fielmente, ao que me parece, a tendência mais natural, mais espontânea do espírito português.” Pode ser que a frase se aplique também ao espírito português, mas o que realmente importa é observar que se aplica perfeitamente ao espírito do próprio Eça, que, a partir de O Mandarim, vai abandonar progressivamente os caminhos do Naturalismo e retomar algumas características que já se encontravam nos seus primeiros textos: o gosto pelo exotismo das paisagens e civilizações e o pendor alegórico e moralizante. São essas características – centrais no texto de O Mandarim – que no final da vida de Eça de Queirós irão dar origem às impressionantes vidas de santos.

Do ponto de vista da evolução literária de Eça de Queirós O Mandarim representa, portanto, um momento de virada: aquele em que o escritor abandona a “preocupação naturalis­ta”, que, segundo o próprio Eça, embora tivesse servido para lhe disciplinar o espírito, também “o condenara a reprimir, muitas vezes sem vantagem, os seus ímpetos de verdadeiro romântico que no fundo era”.
Determinado seu lugar na produção queirosiana, observemos rapidamente essa obra singular. O Mandarim é antes um conto que uma novela, pois sua trama se concentra à volta de uma só personagem e a ação se reduz a um único acontecimento central, que implica todos os desenvolvimentos posteriores. O registro genérico é o da farsa moralizante, e o ponto de partida é um problema moral que era conhecido, no século passado, como o “paradoxo do mandarim”. Formulado em 1802 por Chateaubriand, consistia numa pergunta: se você pudesse, com um simples desejo, matar um homem na China e herdar sua fortuna na Europa, com a convicção sobrenatural que nunca ninguém descobriria, você formularia esse desejo? Vários autores glosaram esse tema ao longo do século passado, e o texto de Eça é talvez o seu último e mais literal desenvolvimento.
Do ponto de vista da crítica moral, lendo O Mandarim percebemos que há duas linhas independentes de desenvolvimento. A primeira é a mais simples. Mostrando-nos que todos o tratam de acordo com o dinheiro que possui, Teodoro nos vai apontar a hipocrisia que domina as relações pessoais e sociais. A segunda é a mais complexa, porque envolve a auto-representação do narrador. A ideia geral é a de que o crime não compensa, independentemente de qualquer outra consideração. Como ilustração desse princípio é que Teodoro narra aos seus leitores o seu caso exemplar: ao longo do tempo, após o crime que lhe propicia a riqueza, foi-se tornando infeliz, a tal ponto que o retorno à vida rotineira e medíocre de hóspede pobre da pensão chega a parecer-lhe uma forma de conseguir alguma paz de espírito.
Do ponto de vista da estruturação da narrativa, há igualmente duas observações a fazer. No que diz respeito à história da obra queirosiana, talvez valha a pena lembrar que O Mandarim é a primeira obra relativamente extensa escrita em primeira pessoa. Essa observa­ção pode reforçar o argumento, desenvolvido acima, de que o conto representa um momento de rejeição do modelo naturalista, que propunha a narrativa em terceira pessoa, mais adequada à análise objetiva. Já no que diz respeito à história do tratamento literário do paradoxo, a novidade do texto de Eça é a viagem à China. No seu texto, a China não é apenas o lugar abstrato, incógnito e remoto, onde vive um homem desconhecido cuja vida é destruída por um ocidental. Pelo contrário, ganha concretude e responde por cerca de metade do número de páginas da história. Da mesma forma que o Médio-Oriente em A Relíquia, a China é praticamente tudo em O Mandarim. Mas a diferença é que, enquanto em A Relíquia Eça descreve um ambiente e civilização que observara pessoalmente, em O Mandarim nos apresenta um lugar construído a partir de relatos de terceiros, de leituras e, principalmente, pela livre imaginação. Daí, justamente, o interesse da viagem de Teodoro, que nos conduz a uma China colorida, mirífica, bastante bizarra, em que encontramos uma espécie de súmula da visão europeia do que fosse o Extremo-Oriente.
Para o leitor de hoje, como para o de ontem, sem dúvida a parte mais atraente de O Mandarim continua a ser a viagem chinesa. O resto do conto tem um sabor conhecido e um registro genérico em que o desfecho é bastante previsível. Assim, é mesmo a fantástica viagem ao Império do Meio o que constitui o núcleo do texto e o mantém vivo e interessante. É também a viagem que singulariza esse texto na literatura portuguesa do final do século, fazendo dele um delicioso capítulo na história do exotismo orientalista que percorreu toda a cultura europeia da segunda metade do século passado.


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