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segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Pessanha tradutor

Neste ano em que se comemoram os 100 anos da publicação em livro dos poemas de Camilo Pessanha, já está morto e sepultado um mito abstruso em que tantas boas mentes acreditaram: o do poeta sem escrita.

Como se sabe, isso começou – paradoxalmente – com quem o publicou em 1920. De fato, Ana de Castro Osório declarou textualmente, numa entrevista de 21 de abril de 1921, ao Diário de Lisboa, que “Camilo Pessanha nunca escreveu um só de seus versos. Compõe-nos nas suas horas de inspiração e guarda-os na memória. Só consente em dizê-los às pessoas de mais intimidade”.
É incrível que tal inverdade não tenha sido contestada. Várias pessoas possuíam autógrafos de Pessanha, que ele costumava distribuir, sempre anotando que eram transcritos “de memória”- o que significava que havia um documento escrito e fixado. Carlos Amaro, por exemplo. E Alberto Osório de Castro, irmão de Ana de Castro Osório, que num postal de 1908 dizia: “Trouxe o manuscrito dos seus versos” e listava um grande conjunto de poemas, inclusive um de que nunca mais se teve notícia. E quanto a dizer apenas a pessoas da maior intimidade, faz ainda menos sentido, pois Pessanha não se fazia de rogado para dizer seus versos – e basta a carta que Pessoa lhe enviou para comprovar que ele declamara versos para um jovem desconhecido já num primeiro encontro.
Não obstante, a bobagem foi aceita e muito repetida, até ser levada a sério por quase todo mundo, ou, pelo menos, não ser contestada por ninguém.
Por isso mesmo, quando, no começo de 1985, a revista Persona (número 10), publicou o “Caderno” de Camilo Pessanha, com manuscritos e anotações e muitas correções a manuscritos anteriores e mesmo a textos recortados de jornal, foi um choque. O melhor testemunho do choque foi um artigo de Alfredo Margarido, na Persona 11/12, intitulado justamente “Camilo Pessanha, poeta da escrita”.
Sobre o poeta sem escrita, um abúlico, porque fumava ópio, e portanto seria incapaz até mesmo de escrever e publicar a sua própria obra, escreveu muito bem Alfredo Margarido, na indignação da primeira hora, em 1985:
“Em síntese: a imagem de Pessanha tal como ela tem sido divulgada, reforçada pela enorme massa de tolices acrescentadas por João de Castro Osório não resiste à análise. É certo que Camilo Pessanha se drogava, mostrando-se um bom consumidor de ópio. Mas já alguém pensou em condenar as personalidades dos drogados ilustres da literatura europeia, de Coleridge a Thomas de Quincey, de Baudelaire a Henri Michaux? Não passaria pela cabeça de ninguém a ideia triste de acoimar de ‘abúlicos’ tais criadores, sendo a droga um elemento integrado à criação, como o era também a aguardente de Fernando Pessoa.”
Entretanto, outra lenda persiste. Essa porque ainda não se encontrou outro caderno – que talvez nunca se encontre, dada a incúria dos testamenteiros com o legado do poeta –, mas que foi visto por pelo menos duas pessoas, de cujo testemunho, nesse assunto, não se tem qualquer motivo sério para duvidar. E quanto a isto, Margarido não faz justiça a João de Castro Osório.
Trata-se da lenda de que Pessanha nunca aprendera chinês a ponto de traduzir daquela língua, e portanto não o fez – como se Pound tivesse aprendido chinês a fundo para traduzir o que traduziu...
Ainda hoje se repetem argumentos sem peso, todos baseados na suposta abulia do poeta. E não há nada que pareça convencer os descrentes contumazes nem mesmo a conceder ao poeta o benefício da sua dúvida – que ele, por sinal, orgulhoso como era, certamente desdenharia.
O fato, quanto a mim, é que temos 3 documentos escritos.
O primeiro, em importância, é um artigo que Carlos Amaro, amigo dileto do poeta, publicou quando da sua morte, na revista “Ilustração”. Em certo ponto, escreveu:
“Não é esta a hora da crítica serena à sua obra, demais tanta coisa anda dispersa, tantas composições só começadas, mas tendo, contudo, o bastante para valer bem a pena publicá-las, trabalhos sobre a língua, literatura e poesia chinesas – mais de sete mil páginas vi eu escritas em letra quase microscópica, da última vez que Camilo Pessanha esteve em Lisboa –...”
E João de Castro Osório, em 1969, no meio da massa de comentários a que se refere Margarido, declarou que Pessanha, ao regressar a Macau em 1916, esperava contar com algum auxílio oficial para que se copiassem e publicassem as numerosas traduções de literatura chinesa que ele tinha feito e recolhia num caderno. Caderno esse que Castro Osório examinou e por isso mesmo lamentava que não se tivesse feito “o completo acabamento e publicação, ao menos, das muitas obras que enchiam o volumoso caderno, que tive por algumas horas em meu poder, onde Camilo Pessanha juntara as suas traduções poéticas da literatura chinesa”. E acrescenta: “foi um verdadeiro crime contra a cultura portuguesa ter-se menosprezado o valor desta colaboração”. Um crime que, em certo sentido, se perpetua, ainda hoje, por aqueles que acham mais fácil desprezar dois testemunhos coincidentes, em nome da facilidade da acusação banal de “abulia”.
Por fim, basta ler com atenção a correspondência coligida por Daniel Pires e publicada em coedição pela Biblioteca Nacional e Editora da Unicamp. Lá se encontra, por exemplo, esta declaração de Pessanha a Carlos Amaro, numa carta de março de 1912:
“Em quase vinte anos de Macau, fui-me adaptando ao meio por um trabalho penível, embora em parte inconsciente, que me incapacitou para ser qualquer coisa fora daqui. São quase vinte anos de estudo, mais ou menos assíduo, da língua chinesa, dos costumes chineses, da arte chinesa. A língua principalmente desde que cheguei aqui a última vez, há três anos, tenho-a estudado brutalmente, - no furor de me absorver fosse no que fosse, para ver se conseguia distrair-me de tantas desgraças a que não posso dar remédio e que são a minha obsessão.”
De tudo o que lemos nessa e em outras cartas resulta um perfil atormentado, mas nada que se pareça com a figura do abúlico incapaz de escrita poética ou de aprendizado do chinês ou de tradutor dessa língua. Abúlicos, no sentido mais amplo, talvez sejam os críticos renitentes, na preguiça de enfrentar os lugares comuns desta lenda, como antes não enfrentaram da outra, a do poeta sem escrita.

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