TEXTOS DISPONÍVEIS

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Sobre haikai na lista Haikai-L

Textos postados na lista de discussão haikai-l e uma homenagem.

Em meados dos anos de 1990, quando a internet ainda engatinhava, por sugestão de Edson Iura pedi ao serviço de computação da Unicamp que me permitisse sediar num dos computadores da instituição uma lista de discussão sobre haikai.
Obtida a autorização, criamos a lista e ela floresceu. Em breve, tínhamos mais de uma centena de membros.
Edson guardou os arquivos todos e me enviou recentemente uma cópia deles. Mas como é homem de computadores enviou numa forma que não consegui ainda decifrar ou descompactar.
Encontrei, entretanto, agora há pouco este arquivo, que eu tinha em tempos postado na página que mantive por vários anos na Unicamp – e que depois terminei por desativar.
Vou postá-lo aqui não apenas porque os tópicos nele desenvolvidos ainda podem ter interesse, mas principalmente como homenagem ao meu companheiro de empreitada e debates, o Edson, cujo livro de ensaios sobre haicai, o "Cesto de Caquis", acaba de ganhar o Prêmio de Ensaio da Biblioteca Nacional.
Parabéns, Edson!

Obs.1: A lista haikai-l ainda existe, graças ao Edson, que a manteve quando outros compromissos impediram que eu continuasse.
Obs. 2: Os textos abaixo estão reproduzidos da forma como foram postados. Optei por essa solução para preservar a informalidade e o clima típicos da lista. Por isso, nem mesmo a grafia das palavras (adaptada aos terminais disponíveis quando foram postados) foi alterada ou corrigida.
Obs. 3: na minha página do Facebook dispus várias outras postagens, um mês depois desta publicação.

Índice:
Métrica em haikai
O carteiro, o poeta e o haikai
Palpite sobre a questao do zen e do haikai
E por falar em teoria...
Haikai e sensação

Date: Sun, 16 Feb 1997 23:53:35 -0300
Sender: haikai-l@cesar.unicamp.br
From: Paulo Franchetti
Subject: Metrica em haikai
Prezados Amigos da Haikai-L:
De vez em quando, volta `a tona a questao da metrica na poesia
de haikai escrita em portugues. Assim, pensei que valeria talvez
a pena discutir mais um pouco esse assunto, ja' que ha' varios
assinantes novos da lista..
O haikai escrito em portugues e, como todos sabem, uma
adaptacao de uma forma japonesa: o haiku.
Haiku e' um termo recente, do final do seculo passado, criado
por Masaoka Shiki: vem da fusao de duas palavras HAIkai e
hokKU. Haikai e' um termo adjetivo, que qualifica um tipo de
renga. Hokku significa aproximadamente \primeira estrofe\.
Haiku, portanto, designa uma estrofe composta nos moldes da
primeira estrofe de um haikai-renga.
Disse acima que hokku significa \aproximadamente\ primeira
estrofe, porque a palavra estrofe tem muitos determinantes que
nem sempre podemos transferir diretamente para um segmento
de poema japones. Ja' aqui comecam os problemas: tanto
podemos compreender o hokku como uma estrofe, quanto
compreende-lo como um verso. Se pensamos que e' uma
estrofe, entao diremos que e' dividido em tres versos de medida
diferente: 5/7/5. Se pensamos que e' um verso, entao diremos
que possui uma cesura na unidade 5, e outra na 12. e' possivel
compreender de ambas as formas o hokku e os demais
segmentos de um renga. Espacialmente, como sabem, um
hokku ou haiku vem distribuido de acordo com as
conveniencias da composicao plastica, sendo disposicao comum
a que o apresenta em uma so' linha.
Mas o problema que nos interessa diz respeito `as unidades que
identificamos, quando dizermos que o hokku tem uma forma 5-
7-5.
5-7-5 o que? A resposta que talvez pareca logica e' a resposta
errada: silabas. De fato, nao se trata de silabas, mas de
duracoes. `as vezes, a silaba e a duracao coincidem; `as vezes,
nao. Exemplos: Basho^ vale, em verso, tres unidades, porque o
\o\ final e' longo. Hon, que quer dizer livro, vale duas unidades,
porque uma silaba nasal e' longa. Nippon conta quatro
unidades (na transcricao, a consoante dobrada indica que a
silaba antecedente e' longa, e o n final indica a nasalacao).
Portanto: a rigor e' errado dizer que um haiku e' um poema
composto de 3 versos, dos quais o primeiro e o terceiro tem 5
silabas e o do meio 7 silabas.
Como na tradicao portuguesa nao temos outro sistema que nao
o silabico-acentual, quando se tratou de adaptar o haiku `a
nossa lingua, decidiu-se por verte-lo na forma 5-7-5 silabas-
poeticas. (Nem todos, diga-se: Wenceslau de Moraes, o
maior japonista portugues de todos os tempos, verteu os haiku
em forma de quadra tradicional) Ora, uma silaba poetica nao
tem nada a ver com uma silaba gramatical, como sabemos, e a
sua contagem, menos ainda. Os seguintes versos de Bilac,
por exemplo, tem 12 silabas poeticas, que se dividem assim:
Ven/tre/ nu,/ sei/os / nus,/ to/da/ nu/a,/ can/tan/do
Do es/mo/re/cer/ da/ tar/de ao/ res/sur/gir/ do/ di/a,
Ro/ma/ las/ci/va e/ lou/ca, ao/ re/bra/mar/ da or/gi/a,
So/nha/va,/ de/ tri/clí/nio em/ tri/clí/nio/ ro/lan/do. *
e' facil ver que o principio e' mais ou menos fonetico: contam-
se, de modo geral, as silabas que se pronunciam. Mas nao se
contam as que vem depois da ultima tonica. A duracao nao e'
levada em conta, claro: o /a/ atono final de nua vale o mesmo,
metricamente, que uma silaba que tem encontro consonantal ou
um ditongo forcado, ou como a sílaba formada por nio +em. Nem
vale a pena entrar aqui em maiores analises, mas queria dizer
apenas que a propria disposicao em versos cria uma dinamica
de pausas que e' estranha ao verso japones, que quebra as
sequencias por meio de termos que mudam a entonacao e
promovem pausas sintaticas -- as chamadas palavras-de-corte [kireji].
Constatamos assim o obvio: nao ha' nada em comum entre o
sistema metrico japones e o portugues. Nao havendo, porque a
questao da metrica tem tanta importancia em haikai? Porque o
haikai foi trazido para a nossa pratica como forma exotica, mais
ou menos como o pantum malaio, que chegou a ser prova de
virtuosismo no nosso parnasianismo.
Assim sendo, nao creio que devamos qualquer fidelidade a essa
convencao totalmente arbitraria de dividir o haikai em 3 versos
de 5-7-5 silabas poeticas portuguesas.
Muito menos devemos qualquer fidelidade `a forma inventada
por Guilherme de Almeida, que introduziu duas rimas no
terceto e lhe deu um titulo...
O que e' importante, na apropriacao ocidental da forma
japonesa, nao e' a metrica, que foi simplesmente mal
compreendida e mal traduzida. O importante, do meu ponto de
vista, e' a forma interna do discurso, como ja' disse em outros
textos aqui postados e que nao acho valer a pena repetir.
Ja' quanto `a ideia de que haja uma formula para a organizacao
do conteudo do haikai, nos termos da que foi atribuida `a Alice
Ruiz na entrevista do Estadao, ha' tambem o que dizer. A ideia
de que o haiku apresente uma situacao, depois um evento que
interfira nessa situacao primeira e finalmente a resultante entre
o choque do estavel e do transitorio e, se entendo bem,
resultado de ma' leitura dos tratados dos discipulos de Basho.
Numa dada passagem, Toho (se nao me engano) refere-se `a
arte de Basho como a arte que procede dos /fundamentos/,
distinguindo-a de outro tipo de verso, que paga tributo
excessivo ao gosto do tempo, `a moda do momento. Na
sequencia, Toho vai tratar das formas de apreender, no verso,
o que e' eterno e o que e' transitorio. Mas dai' `a pretensa
divisao ternaria do haiku em tese/antitese/sintese, ou em
estabilidade/ transitoriedade/ resultado do choque de ambos vai
um grande abismo, em que parece ter caido ate' mesmo
Octavio Paz, que parece ter sido quem inaugurou essa forma de
compreender o haiku, num ensaio de resto excelente, incluido
em Signos em Rotacao. Na verdade, a ordenacao mais comum
da maior parte dos haiku nao e' essa. e, pelo contrario, binaria:
lendo em japones percebemos que, na maior parte das vezes,
um haiku traz apenas uma palavra de corte e as duas partes
resultantes se resolvem sintaticamente em duas sentencas.
O que o haiku tem a oferecer para nos, ocidentais que o
praticamos, e, penso eu, uma forma de trabalhar com as
palavras que e' muito especifica, que e' diferente do que
chamamos de poesia. O haikai e' tambem uma pratica coletiva,
uma pratica dirigida, que se processa a partir de orientacoes
gerais bastante claras e que, por isso, pode ser aprendida. Para
muitos, e' tambem um caminho de vida, um jeito de ser e estar
no mundo.
Nada ganhamos portanto, se nos esforcarmos para manter uma
coisa que e' banal e nada significa: a forma 5-7-5. Tambem,
quando o haikai e' bem feito, nada perdemos em observa-la,
por respeito a uma tradicao que, embora risivel em muitos
aspectos, e' afinal uma tradicao. Mas nao vale a pena, estou
convencido disso, ficar preocupado com a forma metrica do
haikai. e' certo que, mesmo em japones, o haiku e' uma forma
breve -- e a brevidade extrema tem importancia para a
ordenacao e apresentacao do discurso. e' tambem certo que os
kireji ocorrem normalmente na 5 ou na 12 posicao. Portanto:
ha, de fato, uma organizacao do haiku em tres segmentos
virtuais de 5-7-5 unidades que talvez valha a pena observar --
a ordenacao em tres segmentos, digo --, porque contribui para
a ordenacao e apresentacao do discurso. Quando ao numero de
silabas, se tivessemos de adotar alguma convencao, parece-me
boa, por exemplo, a que o Edson adota para os haikais
submetidos `a sua pagina (Caqui on line): mais ou menos 17
silabas. Assim, evita-se um derramamento que seria prejudicial
`a concisao do haikai. Mas ainda acho que o numero de silabas
nao tem qualquer importancia real.
Era isso, meus caros. Aguardo os comentarios e discussoes.
* nota: substituí, nesta edição, os versos de Bandeira, que dera
como exemplo na primeira postagem, por estes, de Bilac, mais
tradicionais, e que por isso oferecem menos dificuldades à escansão.
Date: Mon, 12 Aug 1996 20:10:38 -0300
From: PAULO FRANCHETTI
Subject: o carteiro, o poeta e o haikai (texto longo)
To: haikai-l@cesar.unicamp.br
Ha' poucos dias, Edson postou um texto sobre a metafora.
Tinha como subject, eu acho, O carteiro e o poeta .
Ao que me lembre, so' o Feitosa respondeu, num manifesto
de liberdade poetica. Muito bem. Como ninguem mais
tratou do tema, que e' espinhoso, achei que devia voltar a
ele. Pelo menos para levantar a poeira...
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Pois bem, Edson, e' verdade que naquele filme
poesia ficou como sinonimo de metafora. E isso parecia
bem, porque a poesia de Neruda e' mesmo eminentemente
metaforica. Basta abrir um livro dele ao acaso para perceber
que a sua poesia tem uma base metaforica muito forte. Esta
Ode a la cebolla, por exemplo:
Cebolla,
luminosa redoma,
petalo a petalo
se formo tu hermosura,
escamas de cristal se acrescentaron
y en el secreto de la tierra oscura
se redondeo tu vientre de rocio.
Bajo la tierra
fue el milagro
y cuando aparecio
tu torpe talo verde,
y nacieron
tus hojas como espadas
en el huerto,
la tierra acumulo su poderio
mostrando tu desnuda transparencia,
y como en Afrodita el mar remoto
duplico la magnolia
levantado sus senos,
la tierra
asi , te hizo,
cebolla,
clara como un planeta
y destinada
a relucir,
constelacion constante,
redonda rosa de agua,
sobre
la mesa
de las pobres gentes.
(...)
Aqui o registro e' basicamente metaforico. Quero
dizer: o poema se organiza a partir das semelhancas entre as
coisas: no geral, sao metaforas. Mas tambem temos ai' uma
figura muito proxima da metafora, que e' a comparacao.
Quando o poeta diz que a cebola e' uma redoma luminosa,
temos uma metafora, no sentido proprio. Quando diz que as
folhas nasceram como espadas no quintal, uma comparacao.
Mas e' facil ver que a forma da percepcao e' a mesma: isto
e' igual `aquilo, ou isto e' como aquilo. Ha' nesse poema
algumas metaforas belissimas: redonda rosa de agua,
constelacao constante, escamas de cristal, ventre de orvalho.
A comparacao com Afrodite e' tambem excelente e anuncia
a dimensao cosmica que a cebola vai adquirir logo depois,
para por fim aportar na mesa das pessoas pobres. Lembra,
alias, aquele poema de Bandeira sobre a maca num quarto
pobre de hotel.
Mas as questoes que voce apresentava eram duas:
toda poesia e' metaforica? o haikai nao pode ser
metaforico? E, subentendida, havia uma terceira,
dependendo das respostas: o haikai e' poesia?
Bom, a primeira e' a mais facil de responder. E a
resposta e' um redondo nao. Alguma poesia e. Mas este
poema, do proprio Neruda, e' intenso e muito diferente da
Ode `a cebola, porque nao se faz sobre metaforas:
El Culpable
Me declaro culpable de no haber
hecho, con estas manos que me dieron,
una escoba.
Por que' no hice una escoba?
Por que' me dieron manos?
Para que' me sirvieron
si solo vi el rumor de cereal,
si solo tuve oidos para el viento
y no recogi el hilo
de la escoba,
verde aun en la tierra,
y no puse a secar los talos tiernos
y no los pude unir
en un haz aureo
y no junte' una cana de madera
a la falda amarilla
hasta dar una escoba a los caminos?
Asi' fue :
no se' como
se me pasO' la vida
sin aprender, sin ver,
sin recoger y unir
los elementos.
En esta hora no niego
que tuve tiempo,
tiempo,
pero no tuve manos,
y asi, como podia
aspirar con razon a la grandeza
si nunca fui capaz
de hacer
una escoba,
una sola,
una?
Aqui, e' minima a estrutura metaforica. O que
temos e, isso sim, a construcao de uma situacao simbolica,
muito claramente analisavel e inteligivel.
A segunda questao: o haikai e' metaforico?
Tambem aqui a resposta e' nao, ate' onde posso ver. Na
verdade, a tentativa de ler o haikai de modo metaforico foi
uma das nossas tentativas de entende-lo, de traze-lo para o
nosso universo de leitura.
O velho tanque -
Uma ra mergulha.
Barulho de agua.
Ler isto num registro metaforico sO' empobrece o
texto. Num registro simbolico ou alegorico, tambem.
E porque? Bom, isso e' sempre o mais dificil...
responder porque...
Mas como este espaco pretende ser um lugar de
debate, de livre curso das intuicoes, e nao um estrado
academico, vamos la . Acho que o haikai nao e' metaforico
porque e' muito objetivo, muito preso `a sensacao e `a
notacao direta de uma percepcao. Entretanto, ha' uma
componente metaforica na concepcao do haikai. Quando
dizemos: vento de outono, ou: libelula, ou: flores caidas -
nao temos um traco metaforico (que na verdade deve ser
evitado, mas que permanece como uma forma de acorde, de
harmonico do que o haikai diz)? Quero dizer, quando um
poeta diz:
em solidao,
como a minha comida -
e sopra o vento de outono
o vento de outono nao e' uma especie de metafora
da velhice, ou um simbolo dela? E quando outro poeta
escreve:
a lua cheia
gentilmente ilumina
o ladrao de flores
essa lua cheia nao e' uma especie de simbolo da
justica divina, ou da indiferenca da natureza face aos valores
humanos? Finalmente, a lua nao e' ai' personificada, o que
tambem e' uma manifestacao metaforica?
Na arte sutil do haikai, entretanto, tanto os
simbolos quanto as metaforas ficam em surdina. O haikai
nao e' bom (dizem-nos os comentarios japoneses, quando
bem lidos) porque tem um conteudo simbolico bem
realizado. Pelo contrario. Um haikai e' bom apesar do
conteudo simbolico e metaforico. e' bom quando esse
conteudo fica em surdina e pode ser absorvido inteiramente
por uma leitura objetiva. Por isso, justamente o poeta que
mais nos parece familiar, K. Issa, `as vezes parece
sentimental para alguns comentadores: porque em seus
poemas, como o ultimo que transcrevi, `as vezes e' dificil
manter a pura leitura objetiva. Ja' no caso daquele haikai
anterior, e' possivel: o sujeito esta' solitario e esta' ventando
frio, o que aumenta a sensacao de solidao. Os harmonicos
velhice , proximidade da morte , morte das pessoas da sua
idade nao sao necessarios para o entendimento literal. Sao
acrescimos...
Finalmente, o haikai e' poesia? Bom, o nosso, o
ocidental, e. O outro, quando lido por nos, tambem e.
Quero dizer: nao temos outra forma de ler, senao as que a
nossa tradicao nos deu e que, mesmo modificada por nos,
continua orientando a nossa visao. Para os japoneses do
seculo XVII era poesia? Esta' ai' uma pergunta que nao faz
muito sentido, se nao for bem explicada: o nosso conceito de
poesia, hoje, foi feito incluindo tambem o proprio haikai...
E inclui conceitos que, certamente, nunca fizeram parte da
cultura japonesa... Portanto, e' muito dificil dizer...
Bom, chega de falar... Quem continua?

Date: Mon, 1 Jul 1996 23:12:04 -0300
Sender: haikai-l@cesar.unicamp.br
From: PAULO FRANCHETTI
Subject: meu palpite sobre a questao do zen e do haikai
Prezados colegas da haikai-l:
ha' algumas semanas, o Edson postou aqui um
comentario sobre o zen no haikai, ou melhor, sobre o
zen na critica e no entendimento ocidentais do haikai.
Depois, o Gabriel postou um texto que parecia
uma contestacao, meio obliqua, ao Edson. E o assunto
morreu. Por fora da lista, sei que ha' pelo menos mais
uma pessoa que tem algo a dizer sobre o assunto, mas
que nao tem achado tempo de o fazer.
Assim, resolvi por a minha opiniao para girar,
enquanto outros nao se pronunciam.
Pois bem. Acho que eu concordo e nao
concordo com o Edson. Concordo com ele e com o
autor que citou no que diz respeito ao exagero zenista
que assola o haikai fora do Japao. Tudo e' zen, e fala-se
indistintamente de haikai e de zen, ou de ikebana e zen,
porque o que importa e' esse indefinivel e inatingivel
zen. Vi uma vez, em Sao Paulo, um conferencista que,
depois de dizer que o zen e' a base indefinivel, passou
a defini-lo nos termos mais bizarros: um mosquito e' o
zen, um beijo e' o zen, o nada e' o zen, isto aqui e' o
zen, a chuva, o sol, a poesia, o sexo, o amor, etc. Sei que
alguns estao pensando que o homem era um iluminado
e eu um boboca que nao pude entender que o meu
proprio umbigo tambem era o zen. Mas a minha reacao
foi de pasmo e depois um incontrolavel ataque de riso
que fez com que tivesse de sair, chorando e com dor de
estomago, para gargalhar do lado de fora. E onde
pensam voces que se deu tal conferencia? Num
Encontro de Haikai, no Centro Cultural Vergueiro, em
Sao Paulo. Era tudo por conta do haikai...
Quero dizer: ja' ouvi tanta bobagem sobre o zen
quanto qualquer outro, e tambem me irrita essa coisa de
meter a palavra em tudo. Nesse sentido, zen e, para os
ouvidos, um termo pior do que dialetica , quero dizer:
usado ainda mais confusa, vaga e indiscriminadamente.
E obviamente tenho de concordar que e' possivel fazer
bons haikais sem nunca ter queimado as pestanas sobre
um texto de divulgacao do que seja o zen .
Tambem, e' claro, fiquei ja' irritado com a
identificacao simplista de zen com imediatismo
espontaneista, ou com o irracionalismo.
Nesse aspecto, achei perfeito quando um
monge da Terra Pura me disse, com um sorriso bastante
ironico, que os homens do zen dizem que o melhor e'
o silencio e que o zen nao se pode definir, ao mesmo
tempo em que escrevem rios de livros para dizer o que
e' e como e' o zen.
Por outro lado, e' preciso ver tambem que a
palavra zen significa, nas varias linguas do Ocidente,
alguma coisa muito diferente, muito especial.
Para nos, essa palavra tem uma historia cheia
de beleza. De minha parte, quando penso no zen, no
conceito de zen ocidental, penso com respeito, e com
emocao.
Pouco me importa, nesse nivel, o que seja o zen
no Oriente. Isto e, aquele particular ramo do Budismo,
com tais e tais sutras como base e tais e tais patriarcas.
O nosso zen e' outra coisa. e' aquilo que D. T. Suzuki
nos ensinou? E, sem duvida: seu Zen and Japanese
Culture sempre sera' um livro admiravel. E' tambem
aquilo que nos ensinaram todos aqueles chatos
religiosos, como o intragavel Taisen Deshimaru, que fez
tantos proselitos? E', sem duvida. Isso nao se discute.
Entretanto, o que me comove de verdade nao e'
nenhum desses textos, nenhum desses missionarios que
vieram do Oriente para nos fazer ver o verdadeiro
zen. O que me comove e' o zen que foi refabricado no
Ocidente, a partir das nossas necessidades e do nosso
esforco de conquistar uma alteridade que nos conviesse.
Estou falando, agora, de gente como Allan Watts, R. H.
Blyth, E. Herrigel e tantos outros. O zen que conta para
nos e' o de Herrigel. Seu relato do aprendizado da arte
do arco e flecha e' uma maravilha. E' o de Watts, esse
genio brilhante que era tambem um tanto charlatao e
um escritor de primeira linha. Seus textos sobre o zen,
bem como a sua biografia, ajudaram a moldar aquilo
que depois chamamos de orientalizacao da
contracultura. E e' o de Blyth, que nos abriu os olhos
para uma coisa que ele chamou de zen, mas que poderia
ter chamado de qualquer outra coisa, pois a reconhecia
tanto em Wordsworth quanto em Basho; em Issa e em
Shakespeare. Sua interpretacao de haikais e' `as vezes
desfocada? E , ao que dizem. Mas isso nao tem
importancia real: em regra, seu comentario ilumina o
verso que comenta e ilumina muito mais que ele: mostra
a atitude que esta' na sua origem, defende um jeito de
estar no mundo e de fazer e ler a poesia em geral.
Blyth, Watts e Herrigel chamaram de zen
aquilo que encontraram ou julgaram encontrar no
Oriente e que quiseram trazer para o nosso mundo.
Eram educadores, reformadores. Nesse caso, a verdade
do que foi o seu zen e' garantida pela sua obra, pelo
destino que tiveram os seus livros. Depois deles, o zen
passou a fazer parte da nossa cultura, e' o nosso zen .
Aos eruditos academicos, esses homens causam
um esgar de desprezo. Mas quem aguenta os scholars
budistas? Quem quiser tentar, assine a lista Buddha-L
ou a Buddhism: ambas sao de uma chatice, um
pedantismo e um profissionalismo de matar. Fala-se
ali de Budismo como se se falasse do calculo de
resistencia de materiais. Isto e, academicamente,
embalsamadamente. Para eles, e' vital saber qual era o
termo exato que compareceu na terceira traducao para
o chines de um dado texto sanscrito. E isso e' realmente
louvavel, enquanto metodo e ciencia academica. Mas o
que aqueles senhores tem a dizer sobre o Budismo ou
sobre o zen e muito pouco e quase sempre de uma
perspectiva que faz com que o seu assunto nao interesse
a quase mais ninguem... O zen que se mexe e que leva
as pessoas a mudarem formas de ver ou de se
comportar, por menores que possam ser essas
mudancas, e' o zen de Watts, de Blyth e de Herrigel.
E' o que vem revestido daquilo que talvez nem seja
muito zen : a paixao.
Desse ponto de vista, portanto, discordo do
tom que vem no texto transcrito pelo Edson. O haikai,
para muitos, e' um exercicio de zen . Desse zen
ocidental, meio tingido de beatnik, meio lavado de
exotismo, certamente contestador, libertador, cheirando
a anos 50. Que seja! Desde que se faca boa poesia.
Por outro lado, e' verdade que a maior parte
dos japoneses que pratica o haiku esta' pouco
preocupada com o zen. No Brasil, entao, talvez nao haja
um mais que um ou dois isseis ou nisseis que facam haiku e se confessem
adeptos do zen.
Compreende-se, entao, o espanto com que
recebem a nossa pergunta fatal sobre o zen...
Compreende-se mesmo que possam revoltar-se com a
insistencia na ignorancia.
Mas o que normalmente um ocidental quer
dizer, quando fala em zen e nao e apenas mais uma
vitima das modas culturais, e' muito menos e muito
mais do que um japones ou chines usualmente entende
pela palavra. E' muito menos porque e' uma palavra
vaga, sem precisao historica nem filosofica nem
filologica. E e' muito mais porque por ela se designa
quase sempre uma grande parte do que aprendemos a
reconhecer como o que e' especifico, do ponto de vista
cultural, do Extremo-Oriente. Uma comparacao
grosseira: um viajante de outro planeta (a comparacao
tem de ser essa, porque desde o seculo passado o
Ocidente e' onipresente em nosso mundo) poderia
chegar a identificar como a base da ocidentalidade o
pietismo cristao. Convencido disso, poderia, por
exemplo, dizer que a poesia de um sujeito
confessadamente ateu era crista, porque nela
reconheceria tracos culturais que provem do universo
que identificou como cristao. Estaria errado? Nao acho.
Eu mesmo, ora meio ateu, ora meio vagamente budista,
ora coisa nenhuma claramente identificavel, sei que
nunca deixarei de ser cultural e psicologicamente
cristao...
Este meu posting chega aqui, de subito e sem
conclusao, ao seu final. Desculpem la' se falei de
um modo quase compulsivo. So' queria, na verdade,
complicar um pouco a discussao...
Date: (maio de 1997)
Sender: haikai-l@cesar.unicamp.br
From: Paulo Franchetti - IEL/Unicamp
Subject: e por falar em teoria...
Primeiro, o que é o haikai? Sem torneios acadêmicos, podemos dizer: quanto
à forma, é um poema de três versos curtos; quanto ao conteudo, é um poema
que expressa uma percepção da natureza.
Se quisermos aprofundar as questões: como são os três versos do haikai?
São, em princípio, assim: o primeiro e o terceiro têm 5 sílabas; o do meio
tem 7 sílabas. Como se organizam as frases nesses três versos? Aqui só há,
ditada pela experiência, uma regra: não devemos dispor uma frase em cada
verso. Por exemplo:
O sol poente.
O campo seco.
O frio da tarde.
Isso é ruim. Há muitos elementos um ao lado do outro, e não percebemos uma
ligação entre as partes. Seria melhor assim:
O sol poente.
O frio da tarde atravessa
O campo seco.
Ou então:
Ao pôr-do-sol,
O frio da tarde atravessa
O campo seco.
Embora já seja um texto um pouco mais interessante, há ainda dois
problemas: muitos elementos e ligação artificial entre eles. Mas não vamos
falar disso agora.
De tudo isso se pode concluir que, quanto à definição, um haikai é um poema
de três versos, que trata da natureza e que é composto de uma ou duas
frases; raramente de mais do que duas.
A segunda questão é a mais complicada: quais são as qualidades do haikai? O
que é um bom haikai? É uma questao espinhosa...
Tinha dito que o texto do exemplo anterior não era bom. E eis os motivos: a
percepcao visual nao é boa. O poema não nos faz visualizar um cena; nem
tampouco nos transmite uma sensação imediata; quanto ao frio, não parece
que exista aqui a expressão de uma sensação concreta - o frio continua
sendo apenas uma palavra. Quero dizer: não vejo nesses versos uma
transcrição em palavras de algo que se percebe de uma só vez, como se fosse
uma faísca que saltasse entre dois pólos. Talvez então a idéia em si mesma,
quero dizer, a formulação da cena em palavras, esteja errada, ou nao seja
capaz, no meu estado atual, de produzir um bom poema. Tudo isto é exemplo.
Entao suponhamos que eu tivesse visto essa cena de um campo seco, num final
de tarde em que o tempo estava virando e ficando mais frio. Vi o campo, vi
o pôr-do-sol, senti o frio. Daí que tivesse escrito assim: o frio da tarde
atravessa o campo. Mas eu é que olhava o campo, meu olhar é que o
atravessava, porque não tinha vegetação alta, etc. A sensação do frio foi
talvez aumentada pela visão do pôr-do-sol e do descampado. Mas ela não
coube no meu poema, não ficou bem como conjunto. Talvez porque eu a tivesse
tentado reproduzir animando o frio, fazendo o frio passear pelo campo.
Aquele "atravessa" parece-me agora ruim, afetado, um mero jogo de palavras
para juntar o frio e o campo seco, fazendo um desempenhar uma ação sobre o
outro.
Se eu tivesse ido por esse caminho, o que me restaria era aprender da
experiência e jogar o poema fora, porque em haikai ou a gente sente que
conseguiu expressar uma sensação ou uma percepção, ou não temos nada ali,
naquele poema tao curtinho.
Mas se eu tivesse ido por outro caminho, e tivesse me concentrado numa
sensação, talvez teria chegado mais perto do que é um bom haikai. Neste
exemplo, não é o frio o mais importante, mas a cena toda visual:
Fim de tarde:
o sol poente atravessa
o campo seco.
O verbo atravessar agora representa não um esforço de juntar coisas, mas
uma ação real: a luz do sol poente realmente atravessa o campo seco de uma
ponta a outra, porque não há mato alto, nem árvores. A primeira frase
funciona agora como um pano de fundo: anuncia, situa, mas é na verdade a
mesma coisa que o sol poente. Temos entao só dois elementos: o campo seco e
a luz do sol poente.
E o poema é agora melhor. Ou não?
As reflexões a seguir foram colocadas no ar, eu creio, em 96 ou 97. Não tendo uma cópia da mensagem, apresento aqui apenas o texto original, tal como estava escrito para ser disbribuído:
Já que a lista está no começo, e poucas pessoas estão pondo textos para circular, aqui vao
algumas reflexões soltas sobre o que seja o haikai. Quem sabe animem a conversa.
Acho que o aspecto mais importante da poesia de haikai não é a sua forma. Apesar das
várias definições que circulam por aí, acho que podemos ficar com uma descrição vaga, se quisermos
recobrir tudo o que hoje se publica no Brasil sob essa denominação. De modo geral, portanto, ao nível
formal, creio que podemos definir o haikai como um poeminha em três versos, sem rima, dos quais
o segundo é ligeiramente maior do que os outros, somando todos os três mais ou menos 17 sílabas.
Mas todos sabemos que só fazendo um poema assim não temos um haikai. Quero dizer: não
temos um poema que a maior parte das pessoas reconheceria como haikai. Portanto, acho que não
é a forma que define essa poesia, mas a maneira de organizar o texto, a orientação do seu discurso.
Normalmente, nos haikais encontramos uma forma de composição que podemos definir
como justaposição, isto é, a colocação, lado a lado, de estruturas verbais sem nexos sintáticos
explícitos entre si, de modo que o leitor tenha de descobrir a relação entre elas. Mas a especificidade
do haikai não está apenas na justaposição, pura e simples. Essa é a forma, por assim dizer, externa da
articulação do haikai. O que o define, pelo menos de meu ponto de vista, é a atitude que embasa a
escolha e a apresentação dos termos justapostos. Essa atitude, eu acho, consiste na busca de uma
percepção muito ampla ou intensa por meio de uma sensação.
Penso que nunca é demais reafirmar o caráter central que a sensação tem no haikai,
e se não atentarmos para esse ponto perderemos de vista boa parte da especificidade desse tipo de
poesia. Parece muito claro que é do contraste entre a fugacidade da sensação e o seu ecoar nas
diversas cordas da sensibilidade e da memória que nasce boa parte do que é mais característico na
poesia de haikai. Na minha opinião, como leitor de haikai há vários anos, os melhores poemas desse
gênero são aqueles em que uma sensação muito concreta -- visual, tátil ou auditiva -- funciona como
disparadora de associações, sentimentos e dados da memória. Freqüentemente lemos duras
condenações ao sentimentalismo em haikai. É verdade que a pura expressão do sentimento o mais das
vezes produz, em haikai, um efeito bastante lamentável. Mas quando o sentimento provém de uma
sensação e funciona no sentido de promover uma união entre o sujeito e o objeto, temos sempre bom
haikai, como neste exemplo de Issa:
Meu pai também
Viu assim estas montanhas --
Retiro de inverno.
Ou neste haikai de Masuda Goga, do Grêmio de Haicai Ipê:
Ah! Mosca de inverno
-- questão de dia ou de hora --
seu último instante?
São, porém, de fato muito raros os casos em que uma tal exposição de sentimento
produz bom efeito em haikai. No mais das vezes, o que acontece é que se desfaz o delicado equilíbrio
entre a percepção individual e a dimensão mais ampla em que essa percepção tem de encontrar um
lugar para funcionar como fonte de prazer poético.
Para conseguir esse objetivo, evidencia-se toda a importância da palavra de estação
(kigo) no haikai. É do kigo que decorre quase todo o haikai. Em muitos casos, o kigo representa o
aqui e o agora que originou uma dada emoção; em outros tantos, permite criar, muito
economicamente, o mood característico que envolve uma dada percepção da realidade.
Na concretude do poema, a técnica de manipulação do kigo é vital para gerar a atitude de espírito
que caracteriza o haikai: ele permite o reconhecimento, através de uma sensação objetiva, de um
conjunto mais amplo em que essa sensação se encaixa e atua significativamente. E é esse o sabor
mais característico da poesia de haikai.
Mas chega de teoria: acho que já falei muito por hoje.
Desculpem lá, mas já que ninguém falava nada...

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