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quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Memórias: Danilo Barreiros


O que vem a seguir, em três partes, é um extrato de um texto mais longo e nunca publicado.

Enviei-o a Pedro Barreiros, quando ele começou a redigir a biografia do pai. Enviei junto as cartas nas quais Danilo terminou a narrativa, pois ficou interrompida pela minha volta ao Brasil.

O encontro com ambos, a que se acrescentou depois o conhecimento da mulher de Pedro, Graça, foi uma das grandes alegrias que tive em Portugal.

 

 

I

 

            Em 1989, de passagem por Lisboa, perguntei a vários conhecidos se ainda vivia e se morava em Lisboa o Dr. Danilo Barreiros. Ninguém sabia responder. A única pessoa que com ele estivera ultimamente, disseram-me, andava agora por Macau, em busca dos rastos de Camilo Pessanha para compor uma fotobiografia.

            O homem era para mim uma referência bibliográfica. Tomei certa vez um avião em São Paulo e voei ao Rio de Janeiro para consultar, na Biblioteca Nacional, A paixão chinesa de W. de Moraes. Tinha dele algumas outras notícias, que me levavam a procurá‑lo. Uma, que morara longos anos em Macau, onde convivera com o grande sinólogo José Vicente Jorge, companheiro e professor de Pessanha. Outra, que se casara com uma filha de Jorge, aluna de Pessanha no Liceu de Macau, herdeira de muitas recordações do mestre e de uma bela coleção de arte chinesa do pai.

            Sobre um móvel de canto, na sala de televisão do hotelzinho, estava a lista telefônica. Na letra B, o nome de minha principal bibliografia sobre Wenceslau de Moraes. Telefonei‑lhe, apresentei‑me e desliguei, surpreso, com uma entrevista marcada para segunda‑feira às duas horas da tarde. Era sexta‑feira, e o programa do final de semana era uma festa de touros Tejo acima, em Alcochete.

            Quando voltei dos touros, fui à casa de Danilo Barreiros. Dona Henriqueta, bem-disposta e elegante, abriu‑me a porta do apartamento da rua Coelho da Rocha e entrei em uma sala grande, que tinha ao fundo um retrato de Vicente Jorge e uma infinidade de outros objetos que só aos poucos pude observar com atenção. Enquanto aguardava, entretive‑me com as peças mais impressionantes e que eram, nesta exata ordem, um biombo de madeira escura coberto de baixos-relevos, um console chinês esculpido e um buda sorridente, que segurava um colar de contas. Todo em bronze, Sakhiamuni vinha ladeado por dois leõezinhos simpáticos, gorduchos, de boca escancarada.

            Não terminara ainda com o sino que ficava mais à esquerda e já Danilo Barreiros chegava, maldizendo a ciática que o castigava muito nos últimos dias. Embrulhado em uma espécie de robe‑de‑chambre arroxeado, que mal se acomodava sobre os pijamas largos, pediu logo ao menino ‑‑ que era eu ‑‑ que o ajudasse a se sentar junto à janela, numa cadeira de braços. Ficamos ali por alguns minutos. O motivo de minha visita, sua disposição em me ajudar, a falta de memória de sua mulher... Nisso sobe as escadas um rapaz magricela e miúdo, que vem consultar o advogado Dr. Barreiros sobre um ponto obscuro na interpretação de uma lei. De minha cadeira, agora à vontade para olhar detidamente o sino, a floreira e os pormenores do console, acompanho a exposição do artigo do Código Civil. É uma explanação clara e enxuta e o pequenino advogado ou estudante de Direito em breve se atira pela escadaria abaixo. Como o calor aumentasse muito, deslocamo‑nos para uma outra pequena sala, de mobília mais chinesa e luz mais escassa. Dizendo‑lhe eu que queria saber a sua vida, o porquê de ter ido a Macau e o que vira por lá pouco depois da morte de Pessanha, propôs‑me Danilo Barreiros o seguinte procedimento: ele iria dizendo o que lhe lembrava; eu anotaria o que me interessasse. Acrescentou, enigmaticamente, que nada ocorria por acaso e que, por isso, podia eu ter certeza de que algo me havia levado até ele naquela tarde quente de segunda‑feira; tínhamos uma missão por cumprir.

            Colocado junto à janela, onde havia mais luz, concordei com a primeira ideia. O calor externo estava realmente insuportável. Passaria ali a tarde, ouvindo as lembranças de Danilo Barreiros e logo mais, à noite, iria vagabundear na Baixa.

            Comecei a tomar notas. Disse‑me ele que nascera em 11 de outubro de 1910, em Lisboa, seis dias depois de proclamada a República. O local era a Rua Arco Marquês de Alegrete, na Mouraria, junto à capela. Era filho de Gregório da Costa Barreiros, originário de Trás‑os Montes. Esse Gregório viera muito cedo a Lisboa e ingressara ainda criança na vida artística, com o nome de Eduardo Barreiros. A respeito do pai, disse‑me que nenhum dos dois nomes era correto, porque o segundo era falso e o primeiro deveria ter sido Gregório Barreiro da Costa.

            Não sabia exatamente por que anotava tudo isso, nem por que ele me contava sua história ab‑ovo. Se devíamos chegar a Macau, o caminho seria muito longo, pensei, e não se vai nesse passo horas a fio com uma ciática tão cruel.

            Fui interrompido, quando divagava nessas questões, por uma observação completamente esdrúxula. Danilo Barreiros, olhando‑me fixamente, disse quase gritando: ‑‑ "O senhor é judeu!" Eu me espantei, é claro. Árabe, sem dúvida, por parte de avô. Judeu era novidade. Disse que não, bati a ponta da caneta no caderno, mostrei que estava a postos para anotar. Só faltava dizer: ora, deixe de brincadeiras, Dr. Danilo, tomemos logo o vapor para Macau! Mas ele me lembrou de que nada sucedia por acaso. Disse que meu perfil jamais o enganaria. A linha da testa, o queixo ‑‑ ou era o traçado do nariz? ‑‑ lhe indicavam claramente o sangue judeu em minhas veias. Falava com tal convicção, que me dispus a encarar o assunto. Pus o caderno sobre a mesinha e esperei. Perguntou‑me se tinha ascendência portuguesa. Disse que sim, que minha avó paterna era uma Teresa Barreira, de Trás‑os‑Montes. Apoiado em boa erudição e maior entusiasmo, o Dr. Danilo explicou‑me de chofre nosso obscuro parentesco, pois não havia dúvidas de que éramos marranos fugidos para Trás‑os‑Montes. Explicou‑me, de entremeio, que os enchidos sem carne, de que eu gostava tanto, eram criação dessa gente que para ocultar a origem matava também o seu capado nos dias previstos e pendurava bem à vista os enchidos ‑‑ sem carne, só aparência, para fugir à perseguição. Mostrou‑me a seguir, apoiado em altas especulações genealógicas e etimológicas, que éramos da mesma família e que, mesmo passados tantos anos e muitas gerações, nem por isso deixávamos de ser primos. Primo! Eu que chegara a ele pela lista telefônica era agora gente da casa! Nessa nova condição, fui novamente apresentado à aluna de Camilo Pessanha, que acorrera ao chamado emocionado de meu parente, trazendo com ela uma mulher que também era da família, além de minha colega. Era judia da gema e professora de uma universidade em Tel‑Aviv. Quase em seguida, chegou um neto do Dr. Danilo que era também, consequentemente, meu primo. Depois outro primo, pai deste, médico e pintor, filho de Danilo. Nessa altura, já tínhamos interrompido as lembranças e as anotações. Voltando à sala grande fizemos alguma festa, com uísque e cerveja. Afinal, desde o tempo de D. Manuel I que a família não se reunia! Cheio de emoção e de bebida, saí de casa de meu primo completamente trôpego, sem qualquer outra utilidade por aquele resto de dia que não fosse dormir despachadamente. Nem mesmo pude ir passear na Baixa e beber a brisa do Tejo. Devo ter descido sem acidentes as escadas, porque acordei ainda eufórico e inteiro, na terça‑feira de manhã.

 

 

II

 

            À tarde fui, na mesma hora, visitar os parentes. D. Henriqueta me recebeu com a cara um pouco mais fechada. Desejava por certo que não se repetisse a pândega do dia anterior, temerosa pela saúde e pelos setenta e nove anos do marido. Este já me esperava na saleta. Mal consegui instalar‑me, começou a contar que sua mãe, que se chamava Carolina Alice Nunes, era atriz e tinha dezoito anos quando ele nasceu. Fui anotando os dados e de novo me veio o pensamento de que aquilo não acabaria mais. Estávamos na segunda tarde de trabalho e meu primo mal acabara de nascer. Nesse ritmo, pensei, mal chegaríamos à primeira adolescência antes do prazo previsto para minha volta, que era dali a uns dez dias. Contou‑me a seguir o seu batizado na Igreja da Mouraria, e nomeou os padrinhos: meu compatriota Leopoldo Fróis, de Niterói, fundador da Casa dos Artistas, solteiro, e uma cantora lírica espanhola chamada Dolores Rentine. A respeito desta, disse‑me ainda que era de origem italiana e de família circense. Declarou ainda que a própria rainha de Espanha a mandara para o Conservatório de Madri, onde deveria apurar a voz maravilhosa. Ora, essa Dolores foi certa feita ao Brasil, numa companhia organizada por um grande empresário português que era também seu marido. No Rio de Janeiro, conhecera Dolores o Dr. Leopoldo Fróis, delegado de polícia. Viram‑se, apaixonaram‑se e ele deixou tudo para segui‑la a Portugal. De modo ‑‑ disse‑me o primo ‑‑ que na sua Certidão de Batismo a única pessoa casada era a madrinha, mas com outro homem. Fróis não era marido dela, nem de ninguém, e o meu tio não se havia casado ainda com a minha tia.

            Por parte de pais, os avós de Danilo Barreiros eram jornaleiros de Peso‑da‑Régua e Mesão‑Frio, nomes sugestivos, mas dos quais minha ignorância geográfica nunca tivera menção.

            Dizia‑lhe a sua mãe que o pai quisera que ele nascesse na Mouraria para que, se fosse homem, viesse a ser fadista. Pessoalmente, confidenciou, não acreditava nela e jogava a frase à conta de sua megalomania. A mãe fora filha de um operário que morreu tuberculoso no Hospital São José e de uma lindíssima senhora, de cujos olhos azuis e cabelos louros jamais conseguiu saber a origem exata. Chamava‑se essa sua avó Virgínia.

            O pai de Danilo Barreiros, que era considerado o melhor tenor português do tempo, conheceu Dolores Rentini e Leopoldo Fróis e com eles foi para o Porto, pois Dolores organizara uma companhia teatral dedicada a operetas e montara naquela cidade do norte a Viúva Alegre. Na peça, Leopoldo era Danilo Danilovitch e Eduardo Barreiros era a personagem secundária, o tenor. Dessa atuação e dessa amizade, veio o nome de meu primo, Leopoldo Danilo. Pouco depois do nascimento, foi a companhia para o Brasil, onde atuaria no célebre Teatro do Pará. No Brasil, a Companhia Dolores Rentini foi dizimada pela febre amarela. O pai de Danilo morreu, ficando sepultado no Pará. Faleceu também Dolores, pouco depois, e foi enterrada no Recife. A mãe de Danilo, que era muito bonita, continuou no Brasil como atriz secundária e lá faleceu, muitos anos depois, como viúva do General Hilton Fontoura, que era apenas um ano mais novo do que meu primo.

            Quando este se levantou para ir até a estante de livros, notei que estava exausto. Trouxe‑me de lá um volume: As mil e uma vidas de Leopoldo Fróis, de Raimundo de Magalhães Jr. A história desses tristes acontecimentos está toda aí, disse‑me. Aproveitando a pausa, disse‑lhe que seria melhor interrompermos nesse ponto a narração e continuarmos no dia seguinte, se não houvesse problema.

 

III

 

            No caminho do hotel, pensei que aquela era uma situação muito estranha. Fora a casa do Dr. Danilo para obter informações sobre Pessanha e Wenceslau e estava agora biografando o biógrafo. E num ritmo tal, que na melhor das hipóteses, viajaria para o Brasil deixando meu primo ainda a poucos anos da adolescência. Macau ficava cada vez mais longe. No entanto, a viagem pelo passado estava agradável. O Dr. Danilo tinha muito estilo e muito humor. Era bom estar naquele terceiro andar cheio de lembranças da China. Resolvi continuar.

            Quando voltei, feitos os cumprimentos de praxe, recomeçou o primo seu relato como se entre a última frase e esta não houvesse um dia inteiro, mas apenas alguns minutos. E como visse que me dispunha a tomar muitas notas, começou ele a falar bem pausadamente, num quase ditado, que fui taquigrafando como pude:

            [...]

            Nesse ponto, provavelmente lembrado dos motivos que me haviam trazido até sua casa, Danilo Barreiros deu por encerrada a sessão da tarde, prometendo cenas picantes para o dia seguinte. Apanhou então, da estante, um vasto arquivo sobre Wenceslau de Moraes, onde colecionara tudo o que pôde sobre o eremita de Tokushima. De uma gaveta, sacou uns papéis velhos que também me deu. Eram três cartas inéditas de Moraes ao seu amigo João Vasco. Passou‑me ainda uma terceira pasta, amarrada com barbantes de armazém, em que havia uma infinidade de recortes de notícias variadas sobre o Japão, publicadas na imprensa portuguesa ao longo dos últimos trinta anos. Disse‑me que poderia fotocopiar os arquivos e publicar as cartas de Moraes ‑‑ por conta, é certo, de nosso parentesco. Como também me disse que podia publicar suas memórias, tudo o que disse e também o que não disse e eu julgasse que deveria ter dito. Passamos o resto da tarde a falar de Moraes e de Pessanha e saí dobrado sobre uma sacola de feira cheia daqueles papéis. Como fosse a Sintra no dia seguinte, marcamos para segunda‑feira a continuação dos trabalhos. Ele me prometeu que chegaríamos, em uma tarde, a Macau. Não acreditei. Não fazia mais, também, questão alguma.

            Na segunda‑feira, meu primo estava mal. Aumentara a dor da ciática e uma complicação do estômago o deixara muito debilitado no final de semana. Queria, porém, continuar ditando. Insistiu, por isso, que me acomodasse em uma cadeira de balanço ao pé de sua cama, pediu um abajur a D. Henriqueta e, lembrado de que paramos quando de suas furtivas excursões para fora do Colégio, recomeçou a história.

            [...]

 

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