TEXTOS DISPONÍVEIS

domingo, 16 de julho de 2023

Poesia, pontuação, minúsculas, corte

 Nesta manhã friorenta domingueira, vejo que me marcaram numa postagem do Facebook. E que há ali um enorme debate, por assim dizer. Na verdade, uma série de declarações, a maior parte profissões de fé. Vejo ainda que me marcaram em outra questão. Não me animei a responder ontem. Mas agora, enquanto não me animo a deixar cama, pensei no assunto.


Então: emprego ou ausência de pontuação em poesia; o corte do verso na poesia contemporânea; o uso ou não de maiúsculas em começo de verso ou frase. 
Uma resposta simples, considerando a maior parte dos casos, poderia ser: são marcas de “poesia”. Algo como uma reivindicação de pertencimento a uma categoria. Uma demanda de um modo de leitura: leia-me como poesia – é o que dizem esses procedimentos ostensivos. O que quer dizer, mais ou menos: leia devagar, interprete, faça um investimento de sentido. Ou seja: me leve a sério! 
Isso para a má poesia, alguém poderia dizer. Assim como a medida e a rima foram em outros tempos. E é certo também. 
Será verdade que hoje se produz muito mais má poesia do que em outros tempos? Talvez seja, num sentido específico: o de que as marcas de poesia se tornaram mais fáceis. Não é preciso dominar a contagem das sílabas, nem buscar palavras de final igual ou parecido. A mesma tolice pode ser dita num soneto ou num pseudo-haicai. E este tem, sobre aquele, a vantagem da brevidade. (O que favorece tanto o autor quanto o leitor, diga-se.) Mas sem dúvida é mais difícil fazer (e ler) um soneto do que um poema pequeno de 3 versos sem rima. É certo também que é mais fácil fazer um “poema moderno”, ou modernista, em “versos livres”, frases sem pontuação e sem maiúsculas, do que compor em terza rima, em quadras ou mesmo em estrofes livres, de mesmo metro. 
Má poesia, porém, sempre houve. Não fazemos ideia do que se acumulava nos “álbuns” que muitas pessoas mantinham no século XIX. Mas podemos facilmente ver que o próprio soneto não era barreira suficiente ao derramamento de banalidades. O que muda, eu acho, é que nos dias de hoje a visibilidade é maior, por conta não só do barateamento da produção em papel, mas principalmente porque a eletrônica permite a publicação imediata e praticamente sem custo. E o custo, social ou material, terminava por ser um filtro. De classe, poderiam logo gritar alguns. Sim, mas não só. De qualquer modo, a facilidade de publicação nas mídias sociais é um estímulo à produção, assim como a organização de comunidades de autores-leitores, em grupos, sites, blogs. Nesse sentido, pode ser, sim, que hoje haja muito mais má poesia (desde que se admita que o que se autodefine como poesia seja por isso mesmo poesia) circulando do que em qualquer outra época.
Na poesia clássica, o verso era definido pela medida. Por isso o enjambement, o terminar da ideia, da frase ou o fechamento do sintagma no verso seguinte era muito comum. Como nos primeiros versos da Eneida:

Arma virumque cano, Troiae qui primus ab oris 
Italiam, fato profugus, Laviniaque venit
litora,

Fechando um pouco o foco: em português, o verso foi também por muito tempo definido pela medida. Não já baseada em compassos, mas em número de sílabas. Assim, completada a medida, percebia-se completo o verso. Nesse sentido, a rima era apenas um reforço, do ponto de vista métrico.
Dissolvido o metro como definidor do verso, sobra a rima. E, além dela, várias formas de acoplamento, paralelismos. E ainda, em certo tipo de verso livre, o simples término da frase ou do conceito.
Homero era para ser ouvido. Virgílio já era para ser lido, embora o metro implicasse a oralização, chamasse aquele tipo de cantilena que se pode imaginar como o modo de leitura da poesia antiga e que persistiu, por exemplo, na missa. Já Dante parece sentir a leitura como forma principal de recepção da sua obra épica, uma vez que ao longo da Comédia tematiza o leitor, dirige-se a alguém que lê, não a alguém que ouve. Não obstante, neles é a medida que define o verso. Assim como em Os Lusíadas ou em O Uraguai.
Voltando ao ponto: quando a medida deixa de ser requisito do verso, é preciso buscar outras formas de o definir. E em muitos casos reagir a qualquer definição, tematizar inclusive isso, é uma forma parasitária de verso, que se sustenta e define por oposição, negação da medida. Nesse caso, a marca formal, o mínimo múltiplo comum da variedade é o corte da linha – porque se trata, quase sempre, de escrita.
Até agora, nesta parte, não falei propriamente de poesia, só de verso. Verso que podia ser utilizado inclusive para escrever o que hoje não definimos como poesia.
Então voltando ao ponto: os procedimentos contemporâneos (falta de pontuação, falta de maiúsculas, corte violento e “arbitrário” dos sintagmas e dos vocábulos) são uma reivindicação de “poesia”, isto é, de pertencimento a um gênero. No limite, uma reivindicação de uma forma de leitura que invista no sentido, na necessidade da forma. Ainda quando a falta de sentido e a arbitrariedade da forma sejam ostensivamente buscadas. Porque o que parece definir o gênero, em termos modernos, é a necessidade. A não-arbitrariedade (repetindo: inclusive a não arbitrariedade da encenação de arbitrariedade). 
Na maior parte dos casos, esses jogos se processam no plano da escrita e da leitura silenciosa, atenta à tipografia e à distribuição no espaço do papel ou da tela. Daí que os recitais desse tipo de poesia, a leitura em saraus, sejam normalmente muito aborrecidos. Porque ali a reivindicação de “leia-me como poesia” não se sustenta no texto lido. Daí também o esforço de encontrar alguma diferença no tom de voz, ou de apoiar o texto no ambiente.
A dissociação entre poesia e verso chegou a ser total, em algum momento. Mas mesmo nesse caso, como mostra o fato de que nunca se abdicou da denominação “poesia” ou “poema”, persistiu a mesma reivindicação de pertencimento a um gênero, ou seja, de uma forma de leitura que faça no texto um decidido investimento de sentido. O que cria a necessidade de manifestos e, como eles não bastam, de um tipo de manual ou guia de leitura, que caracteriza alguma poesia de vanguarda e inclusive favorece a criação de uma especial linhagem de poetas-críticos. Muitas vezes, poetas-críticos-e-intérpretes-de-si-mesmos.
Creio, porém, que a divagação domingueira está se afastando muito do tópico daquela postagem. E é hora de ver o sol e aproveitar o dia.

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