TEXTOS DISPONÍVEIS

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Autoplágio



A manhã já vai a meio. Faço uma pausa para um café e divago. E me vem à cabeça o conceito de autoplágio, que só existe porque o produto do pensamento passa a ser tratado cruamente como mercadoria. Creio que o conceito e sua aplicação têm origem dupla: por um lado, a lógica perversa do sistema de revistas científicas internacionais, que vivem de vender assinaturas. O intelectual ali aliena o produto do seu pensamento, mas sem remuneração. Sua instituição ou uma agência de fomento paga a ele para estudar e pesquisar, e sem seguida os resultados de seu trabalho é cedido aos periódicos. Mas a cessão não é gratuita nem remunerada ao pesquisador ou instituição: trata-se de uma inaudita cessão na qual o cedente paga ao cessionário pelo direito que lhe transfere. Para maior estranhamento, uma vez cedido o direito, a instituição, num circuito perverso, paga para ter acesso a ele por intermédio do periódico. Também nessa categoria de negócio ficam as editoras, mas com dignidade na maior parte dos casos, pois o editor de fato investe capital e trabalho na produção do livro e paga os direitos autorais. Dessa forma, ocorre uma relação clara e limpa entre o produtor, o intermediário e o público. Entretanto, há também muitas editoras caça-níqueis, que no Brasil se apresentam como Qualis A ou B, e que só publicam mediante pagamento dos custos de produção. Nesse caso, como os periódicos, se apropriam gratuitamente do produto intelectual, mas ao menos em geral pagam os direitos autorais em exemplares ou, mais raramente, em pecúnia. De outro lado fica a cultura do produtivismo, que se dispensa de verificar o mérito ou o caráter de cada publicação. Como não se lê nada nem se verifica a situação e o lugar de publicação, e como se traduz tudo em números, o posterior uso do produto pelo produtor, isto é, do texto pelo seu autor, fica alienado assim que publicado, sendo a republicação, no todo ou em parte, considerada uma fraude.
Entretanto, ao menos na nossa área, alguns trabalhos fundamentais, que atravessam os anos, poderiam ser banidos da produção do professor ou pesquisador sob alegação de autoplágio. Refiro-me aos livros que reúnem artigos publicados em periódicos ou na imprensa de massa. Mas não é só o caso de clássicos como os livros de Antonio Candido, que são reuniões de artigos e conferências. Ocorre também na escala miúda. Eu mesmo sou um autoplagiador. Por exemplo, no livro que resultou da minha livre-docência, o primeiro capítulo tinha sido publicado um ano antes num livro de homenagem a Óscar Lopes. E em uma conferência sobre Pessanha utilizei esse mesmo capítulo para exposição oral. Creio que utilizei ao menos uma parte dele em algum lugar. Um trabalho sobre I-Juca Pirama saiu num livro da Edusp e depois foi incluído numa coletânea de trabalhos, junto com artigos de jornal e outros textos já publicados. Na verdade, quase nada há inédito em “Estudos de Literatura Brasileira e Portuguesa”. Ou seja, esse é um livro que deveria pontuar 0, se algum metrificador o lesse e visse nele a referência da publicação anterior de cada parte. Além disso, um programa que algumas editoras usam para verificar se alguma parte de um livro já foi publicada certamente encontraria nos capítulos de livros e artigos de periódicos rastros e trechos mais ou menos longos de publicações que fiz no meu blog. Tanto é que uma editora recente, para publicar um livro, condicionou a publicação à retirada do ar de textos em que o programa encontrou partes idênticas ou quase idênticas. O que, sendo uma relação comercial clara, não me pareceu absurdo. E cumpri.
Voltando ao ponto: a origem dessa polícia é fácil de entender. É a pressão para os professores e pesquisadores produzirem muito. Uma pressão irracional, que produz forte distorção em algumas áreas, como a dos estudos literários, que demandam tempo de amadurecimento e redação (porque o estilo é parte importante e porque dificilmente tem interesse a publicação apressada e precoce de resultados parciais de uma reflexão em curso). Mas não só. Nas áreas “duras”, essa pressão resulta em oportunismo: dados falsificados, conceitos errados e resultados fantasiosos. Se a origem é essa, a função dessa polícia é ratificar a alienação promovida pelos periódicos internacionais e pelo sistema de avaliação matemática da produção da pesquisa.
Uma consequência grave da visada produtivista é o desprestígio da docência. Um bom professor que não publica muito passa a ser condenado. Mas não um péssimo docente que publica um artigo após o outro. É que a docência não se mede numericamente. Na situação atual, dar 10 aulas ruins pode parecer melhor do que dar 4 aulas fundamentadas. Além disso, a docência é cheia de autoplágio: de outras aulas e de artigos e ensaios que o professor publicou. A docência, assim, não é mensurável, a não ser quantitativamente ou, pior, por questionários aos alunos. Daí que as pessoas sejam contratadas nas universidades como “professores”, mas que a sua valorização para auxílios, bolsas e promoção na carreira seja basicamente pela divulgação de sua produção de pesquisa. E na avaliação do pesquisador não se incluem os ganhos intelectuais obtidos na preparação e no desenvolvimento dos cursos. 
Um amigo a quem envio estes textos esparsos me diz sempre que é perda de tempo. Estamos depois do fim. O fim já aconteceu. É, portanto, irreversível. Escrever sobre isso é como desenhar na água ou num pote de geleia. Talvez ele esteja certo. Mas Anchieta não o fazia na areia? Então, com predecessor tão ilustre, não me sinto mal rabiscando no nosso pote de geleia, enquanto a brisa forte da manhã vai amenizando o calor neste final de um estranho inverno.

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