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quinta-feira, 7 de junho de 2012

Lavoura arcaica - depoimento


BALIZA E FAROL



[Depoimento publicado no jornal Rascunho, de 15 jan. de 2006]





Li Lavoura arcaica assim que foi publicado, em 1975. Pareceu-me, de imediato, uma obra grandiosa e diferenciada do que então eu podia ler do que se publicava.

Impressionaram-me, em primeiro lugar, a potência e a riqueza das imagens, e o tônus daquele discurso torrencial, que se derramava intenso página, após página, mesclando a simbologia dos elementos básicos da vida rural e o acervo das parábolas bíblicas com um vocabulário organicista, quase naturalista, de gosto meio mórbido. Uma mistura que me lembrava, também por representar a irrupção do desejo carnal e profanatório no meio de um universo construído com as tintas violentas do sagrado, a leitura a que me dedicava com mais entusiasmo naquele último ano de faculdade: a poesia e a prosa confessional de Baudelaire.

Também me causou forte impacto a cerrada fatura da novela, com os vários planos nos quais se modulam a voz do narrador e a voz das personagens, principalmente a voz do pai, que é glosada, imitada, incorporada e, ainda assim, a cada passo, combatida pelas explosões de ira e de incontinência da voz da personagem narradora.

Quando li o livro, o país vivia ainda sob a ditadura. A leitura dos textos contemporâneos tendia, por costume e por desejo, ao registro alegórico. Nalguns, a denúncia alegórica era lida de modo mais explícito. Em outros, do que então se chamava “realismo mágico”, a operação era mais difícil e nem sempre bem sucedida. Ao mesmo tempo, era sensível certa desconfiança em relação a textos nos quais os dramas da consciência e das paixões aparecessem ostensivamente desvinculados da situação política pela qual o país passava. Talvez fosse possível ver na figura opressiva do pai e no isolamento da família, uma alegoria da situação do país, na qual mesmo o espaço privado era submetido a uma autoridade feroz, e a saída era a loucura ou o crime. Mas isso nada valia frente ao sentido “arcaico” do livro, isto é, face à sua força específica, que vinha de se apresentar como um texto fora do tempo, no qual o que contava eram as paixões humanas, uma espécie de revivescência de mitos, medos e anseios terríveis, isto é, uma espécie de tragédia.

Lavoura arcaica, naquele momento, assim, teve então para mim um sentido e um ar de família que não sei se hoje eu me atreveria a reconhecer. Mas na época em que li o livro recém-lançado, a minha impressão era a de que se tratava de um escritor que eu só podia aproximar, no momento, da forma de escrever de Clarice Lispetor.

Desde 1975, quando o li duas vezes em seguida, não tinha mais lido o livro.  Agora, para este depoimento, li-o pela terceira vez.

A impressão do poder verbal se renovou inteiramente. Mas já agora a impressão geral de potência e de beleza feroz se deixou em parte empanar pela evidenciação dos procedimentos narrativos. O desenvolvimento ternário das notações, em forma de amplificação, por exemplo, o paralelismo ostensivo entre as frases ao longo de um mesmo parágrafo, que me haviam passado despercebidos nas leituras juvenis, agora vieram para primeiro plano e tiveram um efeito de cansaço, de alguma monotonia, que estava ausente. Especialmente o processo de repetição ternária, para amplificar uma imagem ou registro, que se torna mais recorrente ainda no último terço do livro.

São, porém, passados 30 anos entre uma leitura e outra. E se esse foi todo o desgaste causado ao livro, tendo em vista os muitos textos que ele gerou, não creio que haverá outros mais, e que Lavoura arcaica terá ainda um longo tempo como baliza e farol para a escrita em prosa contemporânea no Brasil.

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